domingo, 2 de dezembro de 2012

SOBRE ANJOS, DEMÔNIOS E AS RESPOSTAS QUE O PT ESTÁ DEVENDO





Espero que me compreenda. Trago para este texto memórias afetivas, angústias, críticas, muito mais que respostas. É um fragmento desencontrado de desilusões, umas anunciadas, outras nem tanto, mas estranhamente é também um mosaico de renovação de esperanças. Busco aqui meu divã, a exorcizar anjos e demônios para fazer, quem sabe, a alma e as entranhas doerem um pouco menos. Razão e emoção se misturam, se sobrepõem. Assim, se quiser, chame o post de desabafo. É um pouco assim mesmo. Caso sirva para ajudar a travar o bom debate, já estarei satisfeito. Porque o cenário político exige esse exercício profundo de reflexão. 

Por um acaso talvez não tão casual, acabo de sair da leitura de "Marighella". Na biografia do revolucionário, o jornalista Mario Magalhães, com maestria, resgata os tempos generosos e terríveis de lutas contra a ditadura militar, quando a imaginação pretendeu chegar ao poder. Décadas mais tarde, o poder de fato seria alcançado - mas a imaginação virou resignação. E o Partido dos Trabalhadores, ator político fundamental para a derrubada dos anos de terror, vive - mais um - momento crítico de sua história. Como escreveu o jornalista Mino Carta, "o PT foi antes envolvido por oportunistas audaciosos, depois por incompetentes covardes". 

Posso dizer que vi o PT nascer, mesmo sem ter consciência daquela aurora bonita e promissora. Morava em São Bernardo no final dos anos 1970, tinha seis anos quando as greves estouraram, adorava quando a gente saía mais cedo da escola (pura inocência infantil) e morria de medo quando via a tropa de choque e a cavalaria da Polícia Militar com caras de poucos amigos nas ruas. Foi assim que o PT começou a representar os sonhos e as utopias de parcelas significativas da sociedade brasileira. Sem medo de ser feliz, vislumbrava construir verdadeira democracia popular (o PT era isso, um partido do povo, nascido de baixo para cima), viabilizando as estruturas e os atores de uma sociedade socialista.

Lula, a grande liderança do partido, é incontestavelmente uma das figuras políticas mais importantes da História do Brasil, nos séculos XX e XXI. O migrante nordestino que passou fome e sede, apanhou do pai, perdeu a primeira esposa, o dedo no torno mecânico, que foi vítima dos mais vis preconceitos e discursinhos nojentos, preso pela ditadura militar, chegou à Presidência da República por meio do voto popular, o primeiro operário a ocupar a cadeira. Eis aqui um sujeito porreta, danado de bom, por quem guardo profunda admiração. Carinho. A trajetória dele é fascinante.

Mas, no poder, Lula ficou maior que o PT. E o lulismo - misto de medidas econômicas conservadoras, políticas sociais e de distribuição de renda, amplo arco de alianças políticas e base social sustentada pelos menos favorecidos da pirâmide - acabou rendendo-se e adaptando-se à real politik. Para o cientista político André Singer, "o lulismo existe sob o signo da contradição. Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo movimento". Nessa dinâmica pendular, em nome da governabilidade, o PT acomodou-se. Começou a gostar do jogo - de um jogo que toca a bola de lado, administrando resultados, sem ousadia e alegria. O PT conciliou. Conchavou. Aos poucos, muitas bandeiras de luta petistas foram ficando para trás, perdidas na estrada - a reforma agrária talvez seja o exemplo mais gritante e lamentável. A transformação radical das estruturas foi substituída pela premissa das reformas, suaves. O lulismo caiu nos braços do capitalismo. Como projeto político, assumiu viés messiânico, distribuindo ordens, passando tratores e impondo verdades, a sugerir infalibilidade, a fomentar e comemorar o culto à personalidade, como se fora do lulismo não houvesse salvação possível para a sociedade brasileira.  

É legítimo argumentar e questionar se Lula teria conseguido governar caso não tivesse enveredado por esse caminho do consenso. A dúvida procede. São as mazelas e armadilhas do presidencialismo parlamentarista de coalizão brasileiro, representação no Congresso pulverizada e distribuída por mais de 20 partidos, forças hegemônicas do mercado a pressionar e financeirizar a esfera pública. Sem os acordos, há quem defenda, a administração teria sido trucidada, teriam feito pó dela, em pouquíssimo tempo. Para superar as resistências, entra em cena a tal da "aliança sob hegemonia programática do PT". Será que, sem esse arco, o destino inevitável teria sido o desgoverno? Tenho cá minhas dúvidas. 

E, se for assim mesmo, então de que vale o poder, se, quando conquistado, significa apenas a inexorável capitulação e o imediato escorregar pelos dedos de desejos por mudanças, para finalmente tornar-se palatável e amigável aos de sempre? Nas redes sociais, tomou contornos na semana que passou a seguinte discussão, resumidamente: seria melhor o PT falando fino no governo ou gritando grosso na oposição? Guardadas as devidas proporções, parece-me um tanto com o infindável debate "futebol de resultados e vencedor versus futebol arte, mas suscetível a derrotas". Não dá para jogar bonito e levantar taças? Não dá para falar grosso também no governo? 

Fagocitado gradativamente pelo lulismo, e provavelmente deslumbrado com as benesses agudas e sedutoras oferecidas pelo governo, picado pela mosquinha, o PT apequenou-se. Diante do dilema tensionar para avançar ou pactuar para consolidar-se como porto seguro, optou pelo segundo caminho. Como escreveu Mino Carta, "o PT atual perdeu a linha, no sentido mais amplo. Demoliu seu passado honrado.  Abandonou-se ao vírus da corrupção, agora a corroê-lo como se dá, desde sempre com absoluta naturalidade, com aqueles partidos que nunca foram". O mensalão, em 2005, colocou o partido à beira do precipício. Naquele momento dramático, faltou construir uma narrativa que combinasse de maneira inteligente e honesta considerável pitada de humildade com ênfase e firmeza de princípios - aqueles que desaguaram na fundação do PT. 

Faltou vir a público para, sem metáforas, zombarias ou oportunismos, sem tergiversar, dizer "erramos, assumimos os erros, relançamos o pacto para, daqui em diante, materializar ações políticas contundentes para coibir tais práticas". Como calibrar o tom desse discurso? Tarefa para os dirigentes partidários e para os intelectuais historicamente ligados ao partido, como sugere Elisa Marconi, companheira de todas as horas. Não seria uma fala puramente moral, mas um acordo político, republicano, embasado pelo repeito e cuidado irrestritos com a coisa pública. Ao calar-se e omitir-se, ao insistir no prato feito do "não tenho nada com isso, não fizemos nada que outros já não tenham feito", o PT permitiu que outro discurso fosse forjado. Perdeu ali a guerra de narrativas. O que viesse depois seria paliativo, remendo. Espaço vazio é espaço ocupado. 

O resultado foi o implacável massacre midiático, que incutiu na opinião pública (ao menos em parte dela, a publicada) o pressuposto que dizia que o único resultado aceitável para o julgamento do mensalão seria a condenação a penas máximas de todos os líderes e representantes do PT (com os outros réus, a preocupação era bem relativa). De preferência, que saíssem do Supremo Tribunal Federal algemados, com requintes de crueldade, direto para presídios de segurança máxima, com "direito" quem sabe à tortura e pena de morte. A artilharia mirava fundamentalmente José Dirceu, o demônio em forma de gente. O roteiro foi desde sempre conhecido - a Veja denuncia, a Folha repercute no final de semana, o Jornal Nacional da Rede Globo amplifica e fatia durante a semana. Ainda que não como antes, e sim com fissuras e resistências, esses veículos continuam a pautar a agenda pública. Ou não? Exagerei? Alguém duvida? 

Foi a partir dessa agenda que o STF associou-se convenientemente à histeria forçada midiática, rendendo-se a específico clamor popular sanguinolento. O plenário da Corte foi transformado no cenário ideal para um show folhetinesco de exageros e de sensações próprias do mundo do entretenimento. Caras, bocas, polêmicas gratuitas, transmissões ao vivo, holofotes... Foi preciso desencavar - e usar às avessas - uma tal teoria do domínio do fato para condenar, mesmo sem provas disponíveis nos autos (o que é diferente de afirmar que elas não existam). A maioria do Supremo, capitaneada pelo mais novo herói e justiceiro da nação, pesou a mão na dosimetria e foi implacável com o núcleo político do PT. José Dirceu pegou quase 11 anos; José Genoíno, quase sete; e João Paulo Cunha, mais de nove anos, se nada mudar nos recursos. Os que só aceitavam sangue aplaudiram efusivamente. Soltaram rojões.

A carnificina da mídia e os desvios do Supremo não isentam nem justificam os erros do PT. Gente grande no partido sujou as mãos. Cometeram crimes, que careciam de julgamento, à luz e sob o rigor das leis e do Direito, não dos perigosos exercícios de suposições, ilações e do "não é possível que não soubesse". Tal comportamento só faz enfraquecer a democracia e abre delicadíssimos precedentes. Minha convicção: o mensalão foi um nome fantasia de forte apelo popular, a referendar o jogo midiático. Comprar meia dúzia de parlamentares, de deputados que já faziam parte da base aliada, quando eram necessários ao menos 308 votos para aprovar emendas constitucionais, como era o caso? Não parece um despropósito, uma tolice, se pensarmos na relação custo-benefício?

Em minha análise, o que aconteceu foi caixa 2, arrecadação irregular de recursos para pagamento de dívidas de campanha, inclusive de partidos aliados. O que, novamente, não absolve o PT. Também não lhe dá o direito de alegar que "todos os partidos são assim, não foi exclusividade nossa, estamos pagando por aquilo que todos fazem, é do jogo político, foi assim desde sempre e ninguém foi punido". Se era (é) assim, o PT foi eleito para fazer diferente. E o financiamento público de campanhas, por exemplo, bandeira que o partido empunhava? Se havia fantasmas no armário, o PT chegou ao governo para exorcizá-los, não para esparramar novas assombrações. 

Na hora de contar as histórias de terror, é relevante observar que a escolha dos fantasmas que serão publicamente anunciados é seletiva - a mídia que procura e acha lá é a mesma que, para dizer o mínimo, se cala cá, empurrando alguns fatos rapidamente ao fundo do oceano, na expectativa de que sejam esquecidos. O PT é surrado; o PSDB, preservado - ou, vez ou outra, toma um pontual pito público. O mensalão petista teve origens e mantém relações umbilicais com o mensalão tucano em Minas Gerais, a envolver figurões como Aécio Neves e Eduardo Azeredo. Enquanto o primeiro tornou-se mantra repetido aos quatro cantos, o segundo é solenemente ignorado pelo jornalismo nacional. Daqui a alguns anos, quem resgatar os jornais de hoje não saberá que aconteceu no Brasil algo gravíssimo conhecido como privataria tucana. 

O falar sobre um mas não a respeito de outro esquema criminoso é apenas uma das cenas de um roteiro de perseguição (veremos em breve as razões) que ficou estabelecido desde a posse do primeiro mandato do ex-presidente Lula. O PT acreditou mesmo que seria diferente, que poderia convencer, com sua bela estrela vermelha, as empresas de comunicação a mudar de lado? Imaginou que receberia outro tratamento, tapete vermelho estendido, fartos afagos? Passou em algum momento pelas cabeças dos dirigentes petistas que os nobres sobrenomes que estampam os cabeçalhos de nossos jornais e revistas e os créditos finais de nossos telejornais deixariam assim tão facilmente de frequentar os luxuosos edifícios dos bairros nobres para se deliciar com as vielas das periferias visitadas pelo sapo barbudo? Sem respeitar limites, a mídia muitas vezes atua como Estado paralelo.

O pecado original: o PT e o governo Lula tiveram medo, não bancaram uma Lei de Meios, o controle social da informação - que, muito longe de estabelecer censura, garante o exercício responsável e plural do jornalismo, a definir deveres e direitos, e a proibir a propriedade cruzada dos veículos. Sequer o projeto chegou a ser encaminhado ao Congresso Nacional. Bem ao contrário, continuam a adular os mandarins da mídia, como chamaria Mino Carta, a abarrotar os cofres destas empresas com verbas públicas, por meio de campanhas de estatais e inserções publicitárias muito bem pagas. A vítima financia o algoz. Dorme com o inimigo. Que masoquismo é esse? Por fim, numa manobra covarde e lastimável, joelhos dobrados, o partido patrocinou a retirada do nome de Policarpo Junior, da Veja, do relatório final da CPI do Cachoeira, na semana que passou. 

Esse jornalismo caduco já não manda mais, temos as redes sociais e os blogs, alguns responderão. É mesmo espaço democrático fundamental, que questiona, inverte mão de direção e, vez ou outra, é capaz de obrigar os jornalões a correr atrás do prejuízo. Mas ainda é insuficiente para travar a disputa em igualdade de condições, balança equilibrada. Pode ser que esse dia chegue. Ainda não é a realidade. A azeitada engrenagem Folha-Veja-Globo é implacável e invariavelmente aponta o que merece ser discutido ou não - e como vai ser travado esse debate. Provocação de botequim: se já tivéssemos conseguido superar essa armadilha, será que estaríamos falando de mensalão ou de pareceres forjados, com as abordagens que estamos usando? Quem nos canta o ritmo e dita a letra dessa canção? Pois então.

Quando nos damos conta, estamos mais uma vez surfando nas ondas midiáticas, discutindo a corrupção que assola o país, mas a partir exclusivamente de componente moralista, e da pior espécie. É um purismo que fotografa mocinhos e bandidos (isoladamente, sem contextos ou outras variáveis), como se "o ser correto e andar na linha" fosse monopólio dos iluminados e bem formados da sociedade, e como se os "bons costumes" correspondessem à única e absoluta medida de "qualidade da vida social". Permanecem camufladas variáveis políticas da corrupção - um sistema presidencialista com superpoderes (farta distribuição de cargos de confiança), refém de cartórios instalados no Parlamento e dependente das corporações e dos especuladores nacionais e internacionais para financiar campanhas e estruturas de marketing com custos estratosféricos. Eis o debate de fundo - não enfrentado. Porque a grita moralista contra a corrupção foi o que restou à desidratada e apática oposição partidária no Brasil, que tem assim seu papel de contraponto naturalmente substituído pelos meios de comunicação. No Brasil, não há atualmente partidos de oposição, mas jornalismo de oposição.

Presas ao mimimi do "cansei", por má fé, incompetência e/ou oportunismo, não querem as oposições reconhecer ou admitir que o Brasil mudou profundamente durante a chamada Era Lula. Sim, mesmo rendendo-se ao capitalismo, e até por civilizá-lo aqui e acolá, o metalúrgico fez deste outro país, com consideráveis avanços, quando as comparações são estabelecidas com os governos anteriores. Por esta razão também, é o presidente até aqui mais bem avaliado, idolatrado pelo povo, que foi diretamente beneficiado pelas políticas lulistas. O país deixou de ser devedor do Fundo Monetário Internacional (FMI) e pagou a dívida externa. Em oito anos, foram criados 15 milhões de empregos formais, com carteira assinada. O salário-mínimo conheceu ganho real de quase 60%. 

Nasceram o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Minha Casa, Minha Vida, o Luz para Todos. O Bolsa-Família, que dinamiza realidades locais e impulsiona a pequena economia, atendia 13 milhões de famílias em 2010, com orçamento de 13 bilhões de reais. Aproximadamente 28 milhões de brasileiros saíram da miséria e boa parcela deles foi imediatamente parar no grupo das "novas classes médias". O PIB cresceu 7,5% em 2010 - ritmo chinês. Em 2011, atingimos o menor índice de desigualdade social da história - entre 2001 e 2011, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a renda dos 10% mais pobres subiu 91,2%; a dos mais ricos, 16,6%. A base da pirâmide tornou-se estreita, enquanto a região intermediária dela tornou-se robusta.

O risco Brasil despencou. Foram criadas 14 universidades federais, além do ProUni. Na ciência e tecnologia, somos reconhecidos como "global player". O país voltou a ser respeitado em fóruns e organismos internacionais, a ser ouvido por lideranças mundiais, até chegar ao ponto de o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ter afirmado publicamente que "Lula era o cara". 

Estarão rigorosamente corretos aqueles que, em contrapartida, afirmarem que, durante a Era Lula, a reforma agrária empacou, o agronegócio prosperou exorbitantemente, o clima esquentou, os bancos acumularam ainda mais riqueza, o setor privado da educação nadou de braçada, etnias e tribos indígenas foram condenadas à própria sorte, a violência contra negros aumentou, homossexuais padeceram nas mãos de bancadas religiosas. Faço coro com quem traz à tona tais constatações. "Foi um governo conservador, com inclinação de centro-direita, com ausência de participação popular e uma presença e atuação muito fortes de lideranças empresariais burguesas liberais, que foram o marco do governo", já afirmou o sociólogo Chico de Oliveira. 

Negar que o país mudou e avançou, no entanto, me parece leviano, ainda que não tenha sido no ritmo desejado, com a profundidade que gostaríamos, e mesmo que tais transformações já não mais correspondam àquelas originalmente anunciadas pelo PT nos primeiros anos de lutas do partido. É equivocado ainda afirmar que o projeto do PT é o mesmo do PSDB - o primeiro movimentou-se ao centro, com pitadas de social-democracia; o segundo abraçou euforicamente a direita reacionária e udenista. Mas atenção, PT: as mudanças sociais não serão televisionadas. É burrice política tratar como aliado alguém que se faz de morto para engolir o governo na primeira oportunidade. Sempre que puderem, velhacos midiáticos vão produzir factoides, inventar declarações de fontes, exagerar em entrevistas, manipular dados. Jogam sujo.

Está em marcha no país - e não é fenômeno novo, vem desde a posse primeira, como escrito acima - uma tentativa torpe de recontar a história dos anos recentes no Brasil, a partir da ótica do andar de cima. Para tanto, é fundamental implodir imagens públicas (especialmente algumas delas) e desconstruir reputações. O alvo é Lula.

É preciso fazer dele um ator político inofensivo, para que não possa atuar com impacto nas próximas eleições presidenciais, relativizando e diminuindo ainda o que o governo do barbudo representou para o Brasil. Torna-se imperativo escancarar que "Lula não é o cara". Pior: é um cara nefasto, um impostor, lobo em pele de cordeiro. Não uso - e não vou usar aqui - a expressão PIG (Partido da Imprensa Golpista). É rótulo pouco preciso que serve para aliviar a barra e não raro justificar bobagens cometidas do lado de cá. Ajuda a vitimizar. Mas não vou aliviar para os meios de comunicação, que não escondem o gigantesco desejo de escantear Lula.

Minha hipótese política é: a mídia nativa nutre pelo ex-presidente profundo ódio de classe, por conta da origem social dele, das relações estabelecidas com o povão e as periferias, pelo fato de terem sido quebrados os guetos que separavam a casa grande da senzala e, principalmente, porque Lula mostrou que a democracia brasileira pode funcionar para o populacho, e não apenas para os abastados. As elites brasileiras, donos da mídia aqui incluídos, adoram a democracia - desde que ela não tenha o desagradável cheiro de povo.

É por isso que não entra na minha cabeça: por que dar de ombros, ignorar esse cenário, resignar-se diante dele e ainda por cima insistir em repetir erros primários, em cometer crimes, entregando o ouro a quem está do outro lado do balcão, que tem orgasmos políticos múltiplos a cada novo escândalo anunciado? O ex-presidente teve a chance de mudar a cultura política do país, de reforçar e qualificar relações e práticas republicanas. Mas não deu conta desse desafio.

Vá lá, a Polícia Federal opera com independência, os crimes de colarinho branco têm sido também investigados. Ponto para o governo. No conjunto da obra, no entanto, fechou-se os olhos para práticas antigas, o clientelismo, a troca de favores, a indicação de apadrinhados, a confusão entre o público e o privado. Não é por acaso que, agora e mais uma vez (lições não foram aprendidas?), é publicizada nova investigação da PF a respeito de relações escabrosas envolvendo gente muito próxima do ex-presidente. Nada me importa a vida privada de Lula. Não quero saber com quem ele dormia ou acordava. É a intimidade dele, a ser respeitada. A discussão é de outra natureza quando os braços dessa privacidade invadem a esfera pública.

Não adianta chorar, espernear, brigar com os fatos. Havia uma chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo com poder para barganhar - e conquistar - nomeações em agências reguladoras, além de pareceres forjados, negócios e contratos privilegiados, parentes contratados, diplomas falsos, sistemas do Ministério da Educação fraudados, mensagens eletrônicas falando de pagamentos, pressões por indicações. São os fatos. E não adianta recorrer à política do avestruz e dizer "não é comigo, eu não sabia". A batalha das narrativas será novamente perdida. Não é momento para soberbas, para posturas do tipo "estou acima do bem e do mal, o povo está comigo". Quem cala, consente. É perigoso apostar numa pretensa relação direta com as massas, que estará nas ruas para defender o líder popular quando e se alguém gritar 'é golpe'.

A sensação que resta é de irritadiço abandono. Porque, aqui embaixo, continuamos dando a cara a tapa e apanhando, enquanto os bailes nababescos seguem no andar de cima. Se de lá as respostas não chegam, como ficamos aqui? Se os graúdos não explicam, por que nós deveríamos fazê-lo? Tornamos-nos órfãos políticos. Porque o que em tese nos restaria é uma suposta esquerda também com cara de forte moralismo udenista e um anti-petismo tão ressentido quando rancoroso. Batem no peito para se apresentar como os donos da ética. São os "socialistas puros", os verdadeiros, que agora começam a se deparar com o monstro-devorador de ideologias da real politik. É um projeto que não me serve, não é meu número.

Com tantas confusões se misturando, e embora não tenha vocação alguma para profecias, me parece que a História está sendo generosíssima ao oferecer ao PT mais uma oportunidade - talvez a derradeira - de vir a público para um 'erramos' sincero, rotundo (como diria Leonel Brizola) e político. Pedir desculpas não é vergonha. Foi o jornalista Ricardo Kotscho quem matou a charada: chegou a hora da verdade para o PT. Para ele, "é preciso ter a grandeza de vir a público para tratar francamente tanto do caso do mensalão como do esquema de corrupção denunciado pela Operação Porto Seguro, a partir do escritório da Presidência da República em São Paulo, pois não podemos eternamente apenas culpar os adversários pelos males que nos afligem". 

Cobramos explicações. Exigimos respostas. Sem mais demoras ou enrolações. Temos a consciência das perseguições, do ódio de classe, mas recusamos a ladainha do "coitadinhos somos nós". Novamente inspirado na leitura recente da biografia do Marighella, faço como os estudantes franceses no maio de 1968, depois reproduzidos em todo mundo: sou realista, peço o impossível. Vamos continuar sonhando e lutando. Com ou sem você, PT. 

9 comentários:

  1. Bicudo,

    Pungente, quase épico, creio ter sido um texto escrito não só com a mente, mas com o coração.

    Assim, naturalmente, não comporta - ao menos ao meu ver - adesões irrestritas. Mas confesso que me identifiquei, vibrei e até me emocionei com diversas passagens - e concordo em gênero, número grau com a recusa à auto-vitimação e com a chamada à responsabilidade, tão bem resumidas neste trecho: "Se havia fantasmas no armário, o PT chegou ao governo para exorcizá-los, não para esparramar novas assombrações".

    Bravo!

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  2. Bravo mesmo! Chega de discursos maniqueístas, já subestimaram a nossa inteligência o suficiente...

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  3. O PT se tornou um partido de direita, e, pior, sequer controla Dilam ou Lula, que usam a legenda, no sentido mais básico do termo. Ela deixou isso claro, quem manda é ela e o PT se limita aseguí-la em suas polítics higienistas, criminosas. LGBTs sendo mortos, indígenassendo mortos, projetos da ditadura retornando com mão de ferro, remoções, privatizações... E nem dá pra dizer que é culpa dos aliados, pois Belo Monte é projeto PESSOAL de DIlma. Privatização de aeroportos, estradas e afins (tão criticadas quando era o Serra a fazê-las) é idéia e iniciativa pessoal de Dilma. Com o PT apoiando e pagando uma turba de fanáticos para dizer "amém" a tudo. Reforma agrária? Vendida pra Kátia Abreu. Até o elogiado programa Anti-AIDS está sendo destruído por Dilma. Se o PT n é Dilma ou Lula é bom acordar e deixar isso claro. Aliás, algo que sempre questiono é: Se é pra governar como direita e para a direita, qual a diferença do PT ou do PSDB no poder? Ao menos o PT era excelente na oposição. E quanto à mídia, não esqueça, é Dilma/gov federal/pt quem a financia. Veja, Folha, Globo e cia. Se quisesse diferente não teríamos Paulo Bernardo como ministro, não teríamos milhões indo pra mídia, mas sim democratização. Onde está o MArco Civil? Porque para privatizar Dilma enquadra a base, mas para garantir nossa liberdade ela não tá nem aí? Se Dilma não é o PT, alguma coisa está muito errada. E quando tme a faca e o queijo na mão, no caso do Cachoeira, com Policarpo e cia com a corda no pescoço o que o PT faz? Recua! Se acovarda, como SEMPRE faz quando pressionado. MAs quando pressionado por quem tem poder, pois Belo Monte parece ser impossível de parar. Podemos e devemos reconehcer avanços com Lula, mas compreender o víes desses avanços. Entender o sopão dado aos pobres para que não se revoltassem. Educação, mas de UniEsquina. Bolsas, mas sem preparar para o depois - crítica do Frei Betto, aliás -, consumismo. Basicamente o governo fez tudo para que o povo consumisse e só. Mora em barraco sem saneamento, mas tem TV nova, carro e faz Uniban. É melhor que nada? Sim, mas isso não torna Lula um deus, como disse Marta e como repetem hordas de fanáticos nas redes sociais. Foram criadas 14 universidades, precárias, cm professores contratados como temporários, tratados como lixo. Greves criminalizadas, salários ridículos, desrespeito aos funcionários públicos e o golpe final: A privatização de sua previdência. Está na hora do PT decidir se continuará a caminhar para a direita, mas com tons de esquerda em projetos sociais com força consumista, ou se se voltará para a esquerda, para os movimentos sociais. Eu acredito que o caminho é irreversível e gasta-se muito tempo em um projeto falido, onde Dilma se mostra milhares de vezes pior que Lula e teremos a generala por mais 6 anos... E seu texto é excelente para nos fazer pensar.

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  4. Texto fantástico. Daqueles que só sai assim pq, como o Caleiro citou, o coração ficou do lado da mente. Que gire e seja lido por todos.

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  5. "Vamos continuar sonhando e lutando. Com ou sem você, PT."

    PSOL 2?

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  6. Chico,

    brilhante como sempre.

    Você escreve com maestria sobre o sentimento de todos aqueles que acreditaram, lutaram e sofreram sempre ao lado do saudoso PT, na esperança de um Brasilmelhor e mais justo.
    rafa bicudo
    Irmão Primo vc é demais!

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  7. O texto é bom, mas chega tarde (ainda que antes tarde do que nunca, no dizer popular). Chega tarde, por que a 06 ou 07 anos, antes de votar na reeleição do Lula, eu o subscreveria, na vez de Dilma votei e defendi o voto nulo.

    Agora uma situação muito mais grave. Tendo a concordar com Raphael Tsavkko Garcia, na irreversibilidade do quadro do doente. Curvaram-se definitivamente a vontade do PMDB, das oligarquias, dos banqueiros, dos ruralistas e dos partidos de direita.

    Por fim curvaram-se aceitando o partido do Kassab, o PSD, Ex-DEM, completando o espectro, só faltando o PSDB, cujas bases, o que há de mais escroto no cenário nacional, vai da Ruralista ex-UDR, Kátia Abreu, defensora do trabalho escravo moderno, passando por Empreiteiras, banqueiros, montadoras, as mafias dos empresários de ônibus, do lixo.

    Enfim, todos aqueles cuja atividade depende de negociatas e generosidade do governo, e que respondem com generosas doações de campanha. Pra mim, bom texto, tardio, porém certamente, deve servir de reflexão e referencia para muitos que cultuam cegueira politica até hoje.

    Parabéns ao autor.

    Fundador do PT, em minha cidade, Campinas. Abri os olhos em 2003/4, não me recadastrando, afastei-me. Com muita desilusão, e com o nariz tapado, tentei creditar na tese do governo em disputa e nas intenções populares do PT nas eleições/2006, sem fazer campanha.

    A partir dali, "...deu pra mim, baixo astral..." Reginaldo Bispo, Fração Movimento Negro Unificado de Lutas, Autônomo e Independente.

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  8. Caríssimo escritor

    O Senhor faz uma "mea culpa", mas no meu entender deveria ser mais honesto.
    Sou uma eleitora comum, uma dona de casa, mas gosto de politica gosto que herdei do meu pai. Gostaria então de dar uma opinião.

    1. Todas invocações do senhor em relação aos ganhos do governo Lula, nada mais é do que decorrentes de governos anteriores com as tentivas de reprimir a inflação. Lula teve a sorte de chegar ao poder no momento certo, em céus de brigadeiro.

    2. Todos os programas evocados pelo sr. foram do gov. de FHC e apenas tiveram o nome trocados.

    3. Vimos o PT no congresso nacional se colocar contra muitas medidas que eram importantes para o Brasil, como a lei de responsabilide fiscal e mesmo o plano real.

    4. O gov Lula pagou uma divida no FMI, aliás na oposição era contra pagar, pregava o calote....mas aumentou a dívida interna e voltou a tomar dinheiro do FMI e hoje temos outra dívida tanto interna como externa...que vantagem há nisso?

    5. OS Bancos estão cada vez mais ricos, os juros do cartão de crédito chegou a 15%, as instituições aparelhadas, o Banco do Brasil acabou de receber mais um golpe de milhões para patrocinar o Corintians.

    6. O mst cria do Lula está descontrolado invadindo tudo que ve pela frente, se aporta na terra para receber as benécias do gov que repassa milhões....veio tambem os sem tetos invadindo prédios.

    7. A lista de escandalos é enorme o sr. conhece.

    8. O mais grave é a descontrução moral que o PT faz das nossas instituições, apequenando-as....STF, AGU, CORREIOS,BCO BRASIL...

    9. O PT acusa o gov aterior de privatizar e privatiza tudo, com
    uma vigarice intelectual para enganar, dizendo concessão ou PPP.


    5.Qdo o sr. fala do último escandalo não diz que a funcionária do alto escalão era amante do Lula a 19 anos, e que todos nós estávamos a sustentá-la com nossos impostos. Não é a mídia que quer destroná-lo sinto muito, ele desde sempre vem fazendo isto através de suas atitudes gravíssimas.

    Eu poderia discorrer muito mais....mais quero concluir dizendo..
    lá atrás o LUla e os seus mais próximos, enganou sua militância,
    eles nada queriam do que diziam...o projeto era tão somente de poder de vaidade....quem odeia elite não pode se tornar elite não tem consenso....quem odeia corrupçao não se corrompe nem aos outros corrompe...princípios, valores, caráter não se barganha....ou voce tem ou não tem, são princípios.

    Na eleição que Lula ganhou, não votei nele, tinha um pé atrás, meu marido votou. Eu não conseguia entender porque ele era contra tantas medidas que eu como leiga sabia que ia ser bom para o Brasil, diga-se que ele chamou a bolsa do FHC de esmola.
    Pensei não acredito nas intenções deste sr se ele é um idealista, se é patriota, porque não aceita participar das coisas boas para o Brasil? Acertei! não era bem intencionado...pense bem foi tudo uma FRAUDE!!

    Jane marques- MT

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