domingo, 8 de abril de 2012

UMA VIAGEM POR 100 ANOS DE FUTEBOL ARTE

Nem bem havíamos chegado em casa e a mãe perguntou:
- Daniel, gostou do filme?
- Sim, é bom.
- Tem músicas?
- Tem o hino do "sou o alvinegro da Vila Belmiro".
- Tem os jogos?
- Sim. Vários contra o Corinthians, mãe.
- Ah, é? Aquele do 7 x 1?, provocou a mãe, corinthiana.
- Não, né, mãe! Você acha que ia ter vitórias do Corinthians num filme do Santos?! 
A irmã insistiu:
- Então foi bom?
- Foi lindo. Fala da final da Liberta, do Pelé, dos velhos tempos do Santos...

E "Santos - 100 anos de futebol arte" é assim mesmo - um filme repleto de histórias, de um time que tem muita história para contar. Enquanto a trajetória do glorioso alvinegro praiano era cantada em verso e prosa na telona, um filme em menor escala se desenrolava nas minhas memórias. Porque desde criança ouvia meu avô narrar, enquanto acompanhava os programas esportivos da rádio Atlântica, os feitos do time de branco que chegou até a parar guerra na África, no final dos anos 1960, para apresentar seu futebol arte, encantando e deixando boquiabertas platéias do mundo todo. Mais tarde, já moleque, e agora um quarentão, passei a ser personagem de vários dos episódios narrados no documentário.

Nas primeiras cenas do filme, dois santistas ilustres conversam sobre os hinos do Santos. Cosmo Damião, fundador da Torcida Jovem, não esconde a euforia por finalmente ver ser cantado a a plenos pulmões nas arquibancadas o hino oficial, aquele que lembra que "nascer, viver e no Santos morrer é um orgulho que nem todos podem ter". Até muito recentemente, os santistas entoavam apenas o "Leão do Mar", que diz que "agora quem dá a bola é o Santos", mas é uma espécie de segundo hino, extra-oficial, uma música de homenagem aos títulos - que, para o rapper Mano Brown, tem melodia muito mais bonita. Pode até ser, Mano. Mas é mesmo emocionante ver o ritmo de "sou alvinegro da Vila Belmiro" ser marcado com palmas e assobios nos estádios.

A história é contada de forma cronológica - a fundação, na mesma noite em que o Titanic afundaria (14 de abril de 1912), os vice-campeonatos paulistas no final dos anos 1920 e 30, o primeiro Paulistão (1935), o ataque dos cem gols. A Era Pelé, e nem poderia ser diferente, é protagonista de boa parte do documentário, com as conquistas do hexa brasileiro, do bi da Libertadores e do bi Mundial de Clubes. Pausa para cena inusitada: é curioso perceber, na imagem do jogo contra o Vasco, na noite de 19 de novembro de 1969, os zagueiros cariocas tentando cavar um buraco na marca do pênalti, na tentativa de atrapalhar a cobrança de Pelé. A artimanha, como conta a história, não deu certo, e o rei converteria ali seu milésimo gol.

Sobre o tento histórico, aliás, mais uma história saborosa, que na tela aparece contada pelo próprio Rei: na partida anterior, o Santos tinha jogado em Salvador, contra o Bahia. Houve uma jogada - e foram tantas, era tão comum, natural - em que Pelé disparou em direção ao gol, driblou um zagueiro, tirou o goleiro de cena e, quase sem ângulo, bateu para o gol. Praticamente em cima da linha, e antes que a pelota pudesse cruzá-la, o lateral esquerdo, depois de emendar um pique sensacional, conseguiu tirar a bola e evitar o gol santista. Cena rara: levou uma sonora vaia de praticamente todos os torcedores que estavam no estádio. Os soteropolitanos queriam ter o privilégio de ver o milésimo de Pelé.

Foi no dia do jogo de despedida de Edson Arantes do Nascimento que o escritor e roteirista José Roberto Torero tornou-se santista. O pai dele avisara: "vamos para a Vila Belmiro, vai ser o último". Era o dia 2 de outubro de 1974. Meu irmão, também santista, nasceria dois dias depois. Meu avô, como de costume, estava no estádio. E me contava que, no segundo tempo, repentinamente, sem ninguém avisar, Pelé pegou a bola no centro do gramado, ajoelhou-se e se virou, braços abertos, agradecendo, para os quatro lados do campo. O pai de Torero, mineiro discreto, que dizia "homem não chora", não conseguiu evitar as lágrimas. O estádio todo chorava. E Torero virou santista. Foi pego pelo coração.

Mano Brown lembra que, a partir de então, passamos todos a ser chamados de "viúvas do Pelé". E ficou um vazio mesmo. "Durante 18 anos, fomos casados com a musa da época, a Sophia Loren. E ela foi embora. Como fica?", compara o rapper. Os títulos começaram a rarear. Em 1978, ainda surgiriam os Meninos da Vila, representados pela irreverência black power de Juari, que na tela aparecem ao som da disco music da época ("Stayn' Alive", dos Bee Gees). Chico Formiga, técnico daquela equipe, confessa que não gostava de ver seus comandados dançar depois dos gols, nas comemorações. Mas rendeu-se à criatividade artística que marca até as comemorações santistas. Em 1984, mais um título paulista, contra o Corinthians, com gol dele - Serginho Chulapa, que diz no documentário que jamais perderia aquela partida contra o arqui-rival.

Surgem então breves menções aos anos das vacas magras. E foram longos dezoito anos de fila, vendo times muito ruins desfilar pelos gramados. Era difícil ser santista, ser zoado pelos colegas na escola. Mas não arredávamos pé. Continuei frequentando os estádios. O período é muito bem definido no documentário pelo jornalista Xico Sá: "O casamento continuava, nos tornamos companheiríssimos. Mas não tinha mais sexo". 

Mas aí apareceu um tal de Giovanni, a nos mostrar que o futebol arte resistia, dava de novo o ar de sua graça. Quem estava no Pacaembu naquele final de tarde/começo de noite de 7 de dezembro de 1995 sabe do que estou falando. Naquela inesquecível vitória por 5 x 2 contra o Fluminense, arrasadora, semi-final do Brasileirão, vi um amigo de infância lascar um beijo na careca de um sujeito que tinha uns dois metros de altura, depois do quinto gol do Peixe. O cara não só não reclamou como abraçou meu amigo... Não queríamos sair do estádio. Cantamos e gritamos até a voz faltar. 

Esperaríamos ainda longos sete anos para desvirar as faixas nos estádios, na conquista do Brasileirão de 2002, novamente contra o Corinthians, deliciosamente contra o Corinthians, quando vi, no Morumbi, "um neguinho de canelas finas" pedalar oito vezes antes de ser derrubado na área e abrir caminho para a vitória. Robinho e Diego, muito obrigado! (A dupla, aliás, protagoniza um dos momentos mais engraçados do documentário, quando contam as brincadeiras e zoações que faziam nos vestiários, antes das partidas). Era o segundo raio que caía na Vila Belmiro. E trazia definitivamente de volta o DNA ofensivo, o futebol arte. A nossa vocação.

O terceiro raio não demoraria - em 15 de março de 2009, Neymar marcaria seu primeiro gol como profissional pelo Santos, na vitória por 3 x 0 contra o Mogi Mirim, no Pacaembu. Eu e Daniel estávamos lá, obviamente. De lá para cá, já foram 95 gols, o quarto maior artilheiro depois da Era Pelé. Vi também Paulo Henrique Ganso, o maestro, dizer "não vou sair de campo", na final do Paulista de 2010, contra o Santo André, além de bater um escanteio para ele mesmo, em jogada genial, que o documentário resgata. Pelé-Coutinho. Robinho-Diego. Neymar-Ganso. Três raios implacáveis - os três a despencar na Vila Belmiro.

Chega então a explosão derradeira. A conquista da Libertadores de 2011 é outro momento mágico do documentário, já nos minutos finais do filme. As imagens do estádio Centenário, em Montevidéu, são lindas e impressionantes - as arquibancadas tremendo em amarelo e preto. Os Meninos da Vila não tremeram, trouxeram de lá valioso empate. E o mar branco do Pacaembu respondeu com a mesma intensidade, quarenta mil corações pulsando de nervosismo e tensão, quarenta mil vozes cantando "é um orgulho que nem todos podem ter", para finalmente explodir no grito de "tricampeão". Revivi cada segundo daquela noite mágica de 22 de junho - a letra do Ganso, a arrancada do Arouca, o chute seco e rasteiro do Neymar, o passe do Elano, a batida em curva do Danilo, a taça nas mãos do capitão Edu Dracena, o Muricy correndo pelo campo sem rumo, abraçado ao Rei Pelé. 

A essa altura, no cinema, como havia acontecido no Pacaembu, já não era mais possível segurar as lágrimas. Daniel nem se mexia na poltrona, olhos atentos. A última cena do filme é enigmática e promissora: Neymar num Pacaembu em êxtase hipnotizante, já campeão da Libertadores, ajoelha no gramado e chora, cobrindo o rosto com a camisa. Ousadia e alegria. Tela preta. Créditos finais. Antes que a luz se acendesse, aplausos e gritos de "Santos!". 

A história termina na telona. Consigo perguntar ao Daniel: "que parte você mais gostou?". Ele nem pensa para responder: "a final da Liberta. No Pacaembu". Foi a história que ele mais gostou. Porque essa também já é a história dele - e como ele torceu e sofreu naquela decisão contra o Peñarol.

Pois é, filho, temos uma semana para nos recuperar das fortes emoções. Sábado que vem, 14 de abril, tem mais, muito mais. É o dia do aniversário do Santos. Estaremos em Santos, para as comemorações oficiais, fazendo parte da história, e vendo a história acontecer. São 100 anos de futebol arte. Arte. "Tolstói, Dostoiévski, Santos... entram nessa categoria", como define Xico Sá. De fato, um orgulho que nem todos podem ter.

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"Santos - 100 anos de futebol arte"
Cine Livraria Cultura, Sala 2, sessões diárias, 14h
Conjunto Nacional - Avenida Paulista, 2073.
Até sexta-feira, 13 de abril.

Veja o trailer oficial do documentário

3 comentários:

  1. Ao Santos o que é do Santos, Chiquilão.

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  2. Não me canso de dizer: nascer, viver e no Santos morrer, é um orgulho que nem todos podem ter. Não vejo a hora de receber o meu DVD.

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  3. Zoado? vc foi o unico cara no mundo cujo grupo de amigos tinha maioria santista! Pois viva o Santos, que remédio...

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