sexta-feira, 13 de abril de 2012

ABORTO DE ANENCÉFALOS - VITÓRIA DA CIVILIZAÇÃO. MAS AS TREVAS...

Nestes dias de apreensão, acompanhando o julgamento sobre a possibilidade de interrupção da gestação em casos de fetos anencéfalos (sem cérebro), ocorrido no Supremo Tribunal Federal (STF) nas sessões de quarta e quinta-feira, confesso que houve momentos em que me senti como alguém que vivesse em plena Idade Média. Era como se voltássemos aos tempos de hegemonia bruta e intolerante do tribunal da Santa Inquisição, um obscurantismo vociferante e militante, que pretende desconstruir os fundamentos do Estado laico e democrático para substituí-lo pelo fundamentalismo excludente de um Estado teocrático, sempre e em qualquer circunstância autoritário, porque parte do pressuposto de que a "minha religião é sempre melhor que as outras", recusando-se a aceitar ainda aqueles que são ateus e não professam qualquer crença ou mesmo os agnósticos.

Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, escreveu que "o sofrimento da mãe pode e deve ser mitigado pela medicina, a psicologia, a religião e a solidariedade. Além disso, é um sofrimento circunscrito no tempo; mas a vida do bebê, uma vez suprimida, não pode ser recuperada; e também a dor moral decorrente de um aborto decidido pode durar uma vida inteira. Além do mais, o alívio de um sofrimento não pode ser equiparado ao dano de uma vida humana suprimida". Pergunto, intrigado: sofrimento com prazo de validade, que passa com o tempo? As marcas não ficam para sempre? A mulher consegue mesmo esquecer a experiência? Vida humana suprimida? De um feto que, já no útero, e com todos os recursos e tecnologias de que a medicina atualmente dispõe, é diagnosticado como sem cérebro - ou seja, sem efetiva possibilidade de viver? 

Em entrevista publicada pelo "Correio da Cidadania", dom Odilo reconhece o fato inexorável de o feto anencéfalo não ter qualquer chance de sobrevivência; ainda assim, insiste na gestação. Diz o religioso que "a mulher que gera um filho com anencefalia pode passar por um drama grave e por muitos sofrimentos, sabendo que o feto pode morrer ainda no seu seio, ou então, morrerá logo depois de nascer. Temos que ter muita compreensão para com essa mãe e a sociedade dispõe de muitos meios para ajudá-la. Mesmo o risco para a saúde da mãe pode ser controlado pela medicina. O sofrimento da mãe, no entanto, não é justificativa suficiente para tirar a vida do filho dela. Além disso, fazer o aborto, nesses casos, pode marcar a mãe com um segundo drama, que ela vai carregar para o resto da vida. Abortar um filho não é solução, mas é um problema a mais para a mãe. Melhor, neste caso, é deixar que a natureza siga o seu curso natural". Interpretação minha: entenda-se "curso natural" como "vontade divina". É como se a mãe precisasse passar por esse tipo de provação para alcançar a plenitude da dignidade humana, para ser merecedora do reino dos céus, quando o dia do juízo final chegar (algo como a "purificadora fogueira da Santa Inquisição"). Seria uma espécie de tragédia pedagógica-educativa. Cruel demais. De que humanidade afinal falamos?

Importante lembrar - e quase precisei desenhar esse cenário nas redes sociais - que o que o STF votou foi a  POSSIBILIDADE legal de interrupção da gestação, se o feto for anencéfalo e se essa for a decisão da mãe. No entanto, se a mulher decidir levar adiante a gravidez, terá também esse direito garantido. Ninguém vai colocar uma espada na cabeça dela e obrigá-la a fazer aborto. Ou seja, o Estado laico tem por princípio respeitar a diversidade, as não crenças e as convicções religiosas - de todos, e não apenas de alguns.

Como vozes lúcidas que se levantaram contra as trevas (insisto, é estarrecedor que estejamos travando esse debate em pleno século XXI), registro aqui os votos de dois dos oito ministros que, com civilidade tolerante e democrática, ajudaram a aprovar a legalização do aborto em casos de fetos anencéfalos. 

Disse o relator da matéria, Marco Aurélio de Mello, que “a incolumidade física do feto anencéfalo, que, se sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher. É inadmissível que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça em detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe, todas previstas na Constituição. Obrigar a mulher a manter esse tipo de gestação significa colocá-la em uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, deixando-a desprovida do mínimo essencial de autodeterminação, o que se assemelha à tortura".

O ministro Ayres Britto afirmou em seu voto que “levar às últimas consequências esse martírio contra a vontade da mulher corresponde a tortura, a tratamento cruel. Ninguém pode impor a outrem que se assuma enquanto mártir. O martírio é voluntário.  A gravidez se destina à vida, e não à morte.  No caso da gestação que estamos a falar, a mulher já sabe, por antecipação, que o produto da sua gravidez, longe de, pelo parto, cair nos braços aconchegantes da vida, vai se precipitar no mais terrível dos colapsos.  Se a mulher for pela interrupção da gravidez, essa decisão é ditada pelo mais forte e mais sábio dos amores: o amor materno. E o amor materno é tão forte, tão sábio, tão incomparável em intensidade com qualquer outro amor, que é chamado por todos de instinto materno. Essa decisão da mulher é "mais que inviolável, é sagrada".  

Como escreveu a jornalista Mariluce Moura em sua página no facebook, "ainda é pouco, mas é um passo importante no reconhecimento da autonomia plena da mulher sobre o seu corpo. Falo da votação do Supremo favorável a que seja de livre escolha da mulher interromper ou prosseguir a gravidez de um feto anencéfalo. Um ato civilizatório!". 

Certamente há motivos para comemorar, até porque, como afirmou à Folha de São Paulo o advogado Luis Roberto Barroso, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, "a questão da liberdade reprodutiva da mulher e do custo social da criminalização do aborto esteve presente em todos os votos", abrindo brechas importantes para o debate mais amplo a respeito do aborto como um direito das mulheres. 

No entanto, eis meu temor: paira no ar também um desavergonhado sentimento obscurantista, que respinga e se manifesta na organização das bancadas religiosas no Congresso Nacional, nos afagos feitos às religiões com vistas às eleições municipais de outubro, no combate truculento ao kit anti-homofobia, no ensino do criacionismo em aulas de ciências em um número cada vez maior de escolas, na humilhação e execração de aluno que se recusa a rezar o pai-nosso... O ovo da serpente. Sempre perigoso.

Um comentário:

  1. Chico,

    Sou mais otimista que você, e concordo com o advogado Luis Roberto Barroso: a decisão de ontem, do STF, abriu várias brechas para que os demais casos de aborto sejam discutidos posteriormente, desta vez, pelo Congresso Nacional, espero. O reconhecimento do machismo como causa desta "suposta criminalização da conduta" foi um ponto positivo, como também o reconhecimento de que a mulher é soberana, ela é o principal sujeito de direitos a ser protegido, a dignidade da pessoa humana feminina tem que ser preservada. Estes dois reconhecimentos são importantes para o movimento feminista, para o mundo do direito, e para o amadurecimento da nossa sociedade. E no julgamento já houve um adiantar da discussão sobre colocação de artigos religiosos em órgãos públicos, reforçando o Estado como laico. Foi sensacional!
    Se escolhesse dois votos pra comentar, comentaria destes dois homens mesmo do seu texto. Pq o relator abarcou as várias discussões do tema, o que demonstrou seu estudo. E o Ministro Ayres declarou, em frases inesquecíveis, o que nós, mulheres, sempre quisemos ouvir. Foi sensível.
    Sinto que estamos amadurecendo, e sinto ainda que a atuação do STF, nestes últimos julgamentos, tem demonstrado pra que serve uma Corte Constitucional.
    Os esperneios religiosos vão continuar a existir. O bom é saber que agora não somos só nós que refutamos este tipo de manifestação, mas também uma instituição pública. São as notícias de um país melhor!
    beijos.

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