quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

EM SÃO PAULO, INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA É MAIS UMA MEDIDA ESTÉTICA


Não sou especialista, mas, como curioso cidadão do mundo, tenho procurado ler um tanto a respeito da internação compulsória de dependentes químicos, prática agora assumidamente incentivada pelo governo paulista (sob os movimentos silenciosos e cúmplices do Ministério da Saúde).

De tudo o que consegui reunir, me parece que há consenso médico: em situações-limite, extremas, complicadíssimas, torna-se necessário recorrer à compulsória. Mas é isso: exceção da exceção, último recurso, não regra. Não se vai sair por aí internando qualquer um e todo mundo. Deve ser medida avaliada com responsabilidade por qualificada e bem formada equipe multidisciplinar - e a mesma dimensão de atendimento multiprofissional e de longo prazo deve ser posteriormente garantida aos usuários nessa condição.

O intuito, aqui, é permitir que a pessoa que, por diversas e diferentes razões, está mergulhada na merda absoluta possa ter resgatada sua condição humana, para então ter a prerrogativa de decidir se quer ou não continuar o tratamento. É uma questão de direito humano, de cidadania, a ser considerada a partir do viés de saúde pública. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece que “em situações de crise de alto risco para a pessoa ou outros, o tratamento compulsório deve ser determinado, sob condições específicas e período especificado por lei”.

Antonio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, escreve hoje na Folha que "há uma necessidade premente de que as autoridades se responsabilizem pelos doentes mentais. O débito do poder público com essas pessoas é gigantesco. O dependente de crack, muitas vezes, é portador de algum transtorno mental e carece, antes de qualquer coisa, de atendimento médico. Se a internação à força for apenas o início de um processo de tratamento para aqueles que precisam de atendimento e não o têm, aí sim teremos uma iniciativa correta por parte do governo".

Até mesmo Dartiu Xavier, psiquiatra, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e uma das principais vozes que se levanta contra a compulsória, reconhece que há momentos em que ela se impõe. “Todo uso de drogas pode trazer algum risco de vida, mas a internação compulsória é um dispositivo para ser usado quando existe um risco constatado de suicídio. A outra situação é quando existe um quadro mental associado do tipo psicose, seria quando a pessoa tem um julgamento falseado da realidade: se ela acha que está sendo perseguida por alienígenas ou se acredita que pode voar e resolve pular pela janela. Nessas situações de psicose ou um risco de suicídio é quando poderíamos lançar mão de uma internação involuntária”, afirmou, em entrevista publicada pela revista Caros Amigos.

O xis da questão: a mentalidade e o propósito da administração estadual tucana nesse caso - em mais esse caso - são bem outros: limpeza social. Higienização. Prisão. Vistos pela parcela conservadora da sociedade como a escória que não tem mais jeito, os farrapos fedorentos, violentos, ameaçadores, monstros, bandidos, os usuários precisam ser rapidamente retirados das ruas porque enfeiam a paisagem e incomodam as elites diferenciadas. O sujo deve voltar a ser limpo, cartão postal a ser vendido aos turistas e admirado pelos puros nativos. Até porque tais esclarecidos limpinhos têm plena certeza de que sabem, sempre, o que é melhor para os outros. São autoritários, absolutos, donos da verdade. Há nessa postura também evidente componente moralista. Vamos chamar a tropa de choque e recorrer às algemas. 

A lógica da truculência prevalece sobre a perspectiva do resgate humanista. Os usuários são tratados como caso de polícia, o lixo a ser varrido, a qualquer custo, à força, para debaixo do tapete. É medida estética, pontual, desconectada de tantas outras iniciativas relevantes. Para esse raciocínio tão simplista quanto reacionário, se esse zé povinho noiado estiver longe das ruas, escondido, confinado, vivendo em guetos, já terá sido suficiente, uma política de sucesso. Ainda que não tenham sido desenvolvidos esforços para ressocializá-los. Ainda que a dimensão de saúde pública tenha sido ignorada. O que estão a pedir esses iluminados é “afastem da gente esses animais selvagens e desqualificados”.

Continua Antonio Geraldo da Silva: “a internação requer indicação médica, quer seja voluntária, involuntária ou compulsória. Caso contrário, a iniciativa não passaria de uma limpeza urbana, uma triste eugenia”. Dartiu Xavier é ainda mais incisivo: “na verdade, o que vai acontecer é que isso vai funcionar – funcionar entre aspas porque não será eficaz – nas populações carentes. Porque quem é classe média e alta e tiver fumando crack na rua, vai ser pego, mas o papai vai colocar ele numa clínica chique, vai ficar uma semana, e vai para casa depois. Então é um sistema bastante questionável do ponto de vista ético, porque vai ser aplicado nas populações "indesejáveis".

Ao patrocinar a internação compulsória de inspiração e natureza policialescas, o governo paulista está a reforçar o “danem-se os dependentes químicos, às favas com a saúde pública”. O importante mesmo é prestar contas aos apelos e à grita dos adeptos do “prende e arrebenta”, que ficam alegres e comemoram. Em movimento de mão dupla, e satisfeita com esse respaldo, a administração pública dorme tranquila.  

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

UM ATEU VÊ "AS AVENTURAS DE PI"




Não fora eu ateu convicto e de quatro costados e Piscine Molitor Patel e Richard Parker talvez tivessem me convencido a acreditar em algum deus. Qualquer que fosse ele. E independentemente da forma e da cara que o cara pudesse ter. Mas a força do filme "As aventuras de Pi" está justamente em lindamente sugerir que experiências com o desconhecido podem não ser divinas. Há várias narrativas possíveis para o nosso esplendoroso mundão. Alguns acreditam - em um, dois, três seres. Outros experimentam - uma, duas, três vezes. Há ainda quem acredite e experimente. São muitas as variáveis. E, ao não conseguir explicar, não precisamos obrigatoriamente recorrer ao mágico, ao sagrado, ao onipotente, ao tudo está resolvido. É possível simplesmente calar, contemplar. Admirar. Dizer "não sei. E talvez jamais seja capaz de saber". A dúvida é parte integrante e instigante da existência humana. Eternamente. Que assim seja. Talvez fôssemos bem mais felizes se fizéssemos mais perguntas. Menos afirmações. O todo-poderoso Homo sapiens há de compreender que não manda na natureza, que não controla todos os fenômenos e mistérios que ela nos apresenta, mas que é um pedacinho - fundamental, indissociável - dessa intrincada e complexa história. Da evolução. Da vida. A mim, basta ser parte dessa natureza, cotidianamente, com os ônus e bônus carregados por essa relação. É o suficiente. É o mágico. Por tudo isso, "As aventuras de Pi" é de uma beleza sublime. Tocante. (Quase) divina.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

RELATOS DE BUENOS AIRES, EDIÇÃO COMPLETA


Há 15 anos, Buenos Aires cheirava a cigarrilha. Uma certa soberba dava o tom da cidade, com mulheres arrumadíssimas, extremamente maquiadas, homens elegantes de cabelos compridos e óculos escuros. Desta vez, não encontrei o cheiro que me marcara tanto em 1997, quando fora em Lua de Mel. Demorei um tanto a reconhecer a cidade. E só comecei a decodificá-la e a lembrar como eu gosto daquele lugar quando identifiquei certos traços que me foram tão caros há 15 anos. Logo depois dos cheiros, a grande descoberta que fiz foi que eu e Chico somos ótimos companheiros de viagem. Concordamos com quase tudo, do roteiro às refeições, das compras (ou não compras), aos regalitos para os chegados. Dificilmente brigamos ou nos aborrecemos um com o outro. Ao contrário, temos enorme prazer na companhia um do outro. 
Em 2012, encontrei uma cidade empobrecida, menos fleumática, um tanto alquebrada na alma. Também já não cheirava a cigarrilha, nem se viam as mulheres ultra-arrumadas. Entendi que Buenos Aires deixara de ser Carlos Gardel e estava mais para Piazzolla, menos galanteador e mais cortante, irônica. Ao mesmo tempo, uma cidade sedutora, instigante, cheia de história, que eu e Chico tanto adoramos desde sempre. E, melhor, a parceria, o companheirismo e o gosto por desbravar um mundo novo, esses sim, estavam de novo todos ali. E multiplicados por dois. Lui e Dani são grandes parceiros. Aventureiros, exploradores, coração aberto para se encantar com o desconhecido. Andam, não torram para comprar, cumprem os combinados, se adaptam facilmente, conversam, dão risada. Uma beleza!
Daí porque voltar não foi requentar um prato gostoso. Foi redescobrir. Cada lugar que tínhamos ido, ou que nem tínhamos passado no passado, se impunha com uma força única, nova, singular. Nos convidava a conhecer, a ver, pensar, ou  reconhecer, rever, repensar. Cada pergunta das crianças, cada sorriso, cada emoção, de medo ou de fome... cada reunião para a decisão do trajeto, cada análise antropológica, cada arriscada no portuñol. Tudo tão rico.
Para registrar e plasmar na memória o que a memória afetiva já tinha fisgado, Chico Bicudo teve essa ideia deliciosa: relatos diários de viagem, nos quais foi narrando, no Facebook, as passagens mais marcantes das nossas aventuras. Agora, aqui no blog, ele republica os textos, originais, junto com algumas (das mais de 600) fotos e convida o leitor a passear com a gente. Pode-se ler na ordem, ou fora dela. Numa tacada só, ou aos golinhos. É um cavalheiro que estende a mão e convida para um tango. Eu, se fosse você, não recusaria.
ELISA MARCONI



O encontro com o Obelisco

QUINTA-FEIRA, 27/12 - VIAGEM AGITADA. OS MENINOS DIZEM: "NOVE DE JULHO, MUITO PRAZER"

Andar de avião é sempre um tormento para mim, ainda que a viagem seja curta. Morro de medo, entro numa espécie de transe, fico calado, a mirar o nada, o infinito. E, acreditem, já melhorei muito. Hoje consegui olhar a decolagem e o pouso pela janelinha. Arrisquei até tirar uma pestana - na verdade, foi pouco mais que uma pescada, acho que uns quinze minutos de soneca bem leve. As mãos já não suaram. Mas ainda passei o tempo todo na cadeira, cinto afivelado. Banheiro? Nem pensar. Já seria ousadia demais. Na fila para o check-in em Guarulhos, sortudos que somos, pegamos pela frente uma família (no mais amplo sentido da palavra - avós, pais, tios, irmãos, primos...) com um monte de carrinhos e algumas dezenas de malas. Na verdade, não era muito fácil identificar quem eram as malas, porque os caras faziam questão de gesticular, fazer graça, algazarra, gritar, emendar piadas irritantes, discutir com o funcionário que recebia as bagagens, num teatro do absurdo típico daqueles que desejam mostrar quem é mesmo que estava dando as ordens naquela bagaça. A fila travou. Paciência, falei para os meninos, sem estresse. Estamos em férias. Que os babacas se danem. No ônibus que nos levou até a aeronave, fomos surpreendidos por uma voz de gralha, daquelas bem ardidas mesmo, estridente. Era uma senhora que falava sem parar, sem nem respirar, como uma matraca. Comentei bem baixinho com Elisa: "adivinhe do lado de quem ela vai sentar?". Boca santa: quando entrei no avião, a senhora estava na janela, na minha fileira. Fui no corredor. O vôo, que estava marcado para 13h15, partiu com hora e meia de atraso. Ficamos esperando um grupo de passageiros que vinha de conexão, do aeroporto de Confins, em Belo Horizonte. Durante a espera, deu tempo para que uma família - pai, mãe e filho - quase arrumasse confusão com as comissárias. Queriam porque queriam viajar na primeira fileira, que eram de fato os assentos que constavam dos bilhetes deles. Acontece que, como determina o bom senso, ali tinha sido instalado um casal, com duas crianças de colo. Não teve jeito. Os donos das cadeiras não arredaram pé. Pais e crianças foram deslocados para o fundo do avião. Nas duas horas e meia de vôo, o trio encrenqueiro foi ágil para fazer grande amizade com um senhor que desembarcaria em Buenos Aires pela primeira vez. A senhora que quase saiu no braço, exigindo lugar, rapidamente sacou da mochila um pendrive com um arquivo com dicas infinitas sobre passeios na capital argentina. Estava tudo lá - cafés, zoológico, parques, rio Tigre (proibido para os são-paulinos...), casas de tango, estádio do Boca. Fiquei cansado só de olhar. Ao meu lado, um rapaz de meia idade lia "Resiliência", um livro que no capítulo 8 trazia dicas de como superar obstáculos e adversidades no trabalho. Desisti de acompanhá-lo na leitura, achei que não era o caso, até porque o serviço de bordo se anunciava. E a senhora com voz de gralha não parava de reclamar: "porcaria, esse suco Maguary de novo! Só tem lanche frio? Que pobreza!". Não vou estressar, repeti para mim mesmo. Luiza e Daniel se deliciavam com o sanduíche e brigavam para morder os pães, no ritmo dos solavancos da aeronave. Sobraram filetes de alface nos cantos das bocas. Rimos. No desembarque, sublime descoberta: a Gol havia quebrado e rasgado uma de nossas malas. Reclamar? Só se for com o bispo. Sem estresse, vamos em frente. "Vão dizer que a culpa é do povo do Brasil. Se fosse o contrário, diriam que a responsabilidade seria dos argentinos. Lamentavelmente, é assim que funciona", ensina o motorista da van que nos deixa no hotel, que por sinal é muito simpático e agradável. Fica bem no centrão de Buenos Aires, perto do Obelisco da Nove de Julho, a avenida mais larga do mundo, como se orgulham os hermanos. Deu tempo de passear pelos arredores, chegando até a Avenida de Maio, onde reencontramos o hotel onde passamos a lua de mel, em setembro de 1997. Comemos empanadas. Vi na TV flashes do discurso da presidenta Cristina Kirchner, fazendo um balanço da crise econômica e pedindo apoio do povo argentino para combater a onda de saques. No telejornal noturno, uma longa matéria sobre entidades ambientalistas que se movimentam para fechar o zoológico da cidade. Motivo? O urso polar acaba de morrer. Faz sentido. O que faz afinal um urso polar no verão escaldante de uma cidade com temperaturas que chegam a quarenta graus (sensação térmica de cinquenta)? Devo no entanto confessar que a noite está agradabilíssima, com um vento fresco que vem do rio e que promete um sono reparador (bem diferente da última dormida em São Paulo, que foi de chorar de suor). Agora é hora da leitura. Hasta!



"Não esqueceremos, jamais perdoaremos"
SEXTA-FEIRA, 28/12 - AULA DE HISTÓRIA NA PRAÇA DE MAIO. "PAI, VOCÊ GOSTA DA CRISTINA?"

Quando fechamos a viagem, em julho do ano passado, entre abraços, pulos, comemorações e gritos de “será minha primeira vez fora do Brasil”, avisei Luiza e Daniel: preparem-se e estejam em forma, porque para conhecer Buenos Aires de verdade é preciso estar disposto a andar – e muito. Foi o que fizemos hoje. Gastei as solas das alpargatas que Elisa redescobriu e me deu de presente de Natal, a me lembrar que foi também usando alpargatas – e azuis, da mesma cor – que desbravamos a capital portenha na lua de mel. Os pequenos também se superaram, incentivados continuamente por biscoitos e muita água, Daniel com boné na cabeça, por conta da careca, e só pediram descanso depois de mais de três horas de andanças e de apenas uma breve e estratégica parada num café. Justíssimo. Providencial. Eu já estava mesmo com a língua de fora e torcendo por um banco numa sombrinha fresca. Tínhamos saído do hotel depois do desayuno, abastecidos pelas tradicionais e deliciosas medialunas. O sol já castigava, ardido – no entanto, por aqui, há um vento fresco constante e sempre fiel escudeiro, a aliviar as almas e deixar os corpos menos grudentos. Caminhamos pela Libertad, reduto das lojas de relógios e joias, onde se sucedem os cartazes “compro ouro, pago bem”, tão comuns também na região central paulistana. Nessas ruas estreitas e com prédios comerciais antigos, aliás, são conhecidas e evidentes as semelhanças com o cenário de clássicas ruas do Centro Velho de São Paulo, como a XV de Novembro e a Direita. As associações com a capital paulista continuaram quando entramos na Talcahuano, espécie de Teodoro Sampaio portenha, com uma infinidade de ofertas de instrumentos musicais. Desembocamos na Avenida de Maio. Atravessamos a Nove de Julho, onde Elisa abriu um sorriso e os braços, como a registrar “agora sim, me sinto em Buenos Aires”, além de aproveitar a água que espirrava de um chafariz para se refrescar. Treze quadras depois, encontramos a Praça de Maio. Apresentei-a aos meninos. Primeira parada: Catedral Metropolitana. No presépio, mostrei para o Daniel as figuras de José e Maria. Ele perguntou se os dois tinham servido como inspiração para a história de João e Maria. Caí na gargalhada e respondi “é, filho, são duas histórias divertidas, mas diferentes”. “Ah, é que os nomes dos personagens são parecidos”, retrucou. Luiza estava atenta aos vitrais, belíssimos, e às esculturas de santos. Arregalou os olhos quando viu os guardinhas de azul e vermelho que tomam conta do mausoléu de San Marti, por aqui venerado e idolatrado como o herói da independência e fundador da República. Na frente da Casa Rosada, mais conversas sobre história. Desatei a contar aos dois que, daquela sacada do meio, já foram feitos alguns dos mais importantes discursos da história da Argentina. Quais?, quiseram saber, curiosos. Óbvio e previsível, citei os de Perón e Evita, esta a pedir que os hermanos não chorassem por ela. Logo alcançamos o circuito que é percorrido desde os anos 1970 pelas Mães e Avós da Praça, identificado pelos lenços brancos por elas usados, pintados no chão. Falamos sobre a ditadura e os desaparecidos políticos. E não estaríamos em Buenos Aires se não houvesse na praça alguma manifestação e protesto – estavam por lá acampados alguns veteranos da Guerra das Malvinas, a lembrar o massacre de jovens oficiais argentinos no conflito e a reforçar que a ilha é argentina. Em Buenos Aires, além de pernas fortes e resistentes, é fundamental manter olhares atentos, pois há placas, cartazes, luminosos e dizeres espalhados pelos diferentes cantos da cidade. Pixado numa faixa de segurança da Nove de Julho, por exemplo, li “diga sim ao direito ao aborto”. Foi olhando para cima que vimos cair das janelas do edifício do Banco Central uma chuva de papel picado, que festejava o último dia útil do ano, quando contornávamos a Casa Rosada, para chegar ao outro lado do edifício e ter acesso ao Museu do Bicentenário da República. Além de preservar as fundações e as paredes de tijolos que sustentaram a antiga Aduana, o museu oferece contato profundo com a belíssima história do país vizinho, ali retratada cronologicamente, por meio de períodos específicos – a independência, a consolidação nacional, o peronismo... Me deu um nó na garganta quando chegamos ao espaço que escancara as atrocidades da ditadura militar, os trinta mil desaparecidos, a Noite dos Lápis, os vôos da morte, os bebês sequestrados por torturadores, o uso político da Copa do Mundo de 1978. Não fiz força alguma – deixei o corpo estremecer e as lágrimas rolarem vagarosamente pelo rosto, em sintonia de solidariedade com os hermanos que ousaram lutar, ousaram resistir, ousaram vencer. E com aqueles que deram a vida para que a democracia pudesse renascer. Luiza chamou a atenção para um lenço exposto que foi usado por Hebe de Bonafini, líder das Mães. Estava manchado de sangue, por conta de ferimentos na cabeça provocados pela repressão. A visita termina com a exaltação dos feitos do kirchnerismo. Na parada que havíamos feito, no café, Daniel me perguntara se eu gostava da Cristina. Disse que concordava com muitas das coisas que ela vinha fazendo. Claro que ele não se deu por satisfeito. “Não é resposta. Quais coisas, pai?”. Falei sobre a Lei de Meios. “O que é isso?”, emendou. É uma lei que pretende ser mais justa e permitir que muitos, e não apenas alguns, possam falar e dar informações na televisão, para que as pessoas tenham opções e possam escolher o que desejam ver. Claro, abstrato demais para os dois – Luiza também ouvia a conversa, atentamente, aqueles olhos lindos de jabuticaba esbugalhados, sem piscar, com medo de perder palavra importante. Arrisquei: “é assim: se você quer um carrinho e entra numa loja onde só tem um carrinho azul, você provavelmente vai sair dali com aquele carrinho. Não tem muito jeito. Mas se tiver um carrinho grande azul, um verde pequeno, um caminhão, um fórmula 1, um ônibus, você vai poder pensar e escolher o que você quer”. Sei lá se mandei bem. Mas os dois se convenceram. E se aquietaram. Prometi por fim que mostraria a eles como os jornais tratam a presidenta Cristina Kirchner de forma absolutamente diferente. Peguei o página 12 e li as manchetes. A principal tratava, de forma razoavelmente equilibrada, da condenação da ex-ministra da Economia, Felisa Miceli, por conta de bolada de dólares encontrada no banheiro do gabinete dela, em 2007. Procurei – e não encontrei – o Clarín, que eu já tinha lido no café, e que aproveitou a deixa para detonar mais uma vez a presidenta. Fiquei devendo. Vou descer e comprar o jornal, para mostrá-lo aos meninos. Volto amanhã.



Tango na praça da Recoleta
SÁBADO, 29/12 - POLÊMICA NO AR - VAMOS VISITAR O CEMITÉRIO DA EVITA?

E não é que a explicação de ontem sobre a Lei de Meios e a necessidade de pluralidade de informações deu certo? No café da manhã, Luiza veio correndo, Clarín em mãos, ainda com cara amassada de sono, cabelos esvoaçantes, passos duros, a exclamar indignada “pai, o jornal está de novo detonando a Cristina. Tem várias pessoas falando mal do governo”. Era uma reportagem enorme que ouvia líderes peronistas certamente escolhidos a dedo e que bombardeavam as declarações da presidenta a respeito da crise vivida pelo país. “É a mesma coisa que a Folha faz com a Dilma, pai, só notícias ruins. Não é justo”, completou a pequena. O pai jornalista-professor quase enfartou de orgulho e satisfação, foi às nuvens três vezes e voltou em átimo de segundo. Enquanto nos preparávamos para sair, Elisa, produtora de mão cheia, cuidava com esmero de garantir a diversão da moçada, negociando tarifas – e barganhar descontos e boas oportunidades é com ela mesma, desde sempre – e fechando os passeios. Amanhã tem show de tango, cortesia do hotel; na quinta, visita ao zoológico de Luján. Estou espantado comigo mesmo, nem me reconheço: ariano até o último fio de cabelo, metódico, não estou nada preocupado em saber onde vamos passar a virada de ano. Se bobear, visto a camisa 11 do Santos e vou estourar champanhe na Nove de Julho, no Obelisco. Até porque os preços por aqui não são nada convidativos para quem faz as contas em horas/aula: em média, restaurantes estão cobrando 500 pesos por pessoa para as ceias que pretendem festejar 2013 – algo em torno de 250 reais, ou 125 dólares. Na Recoleta, bairro chique, mas bastante aconchegante de Buenos Aires, onde edifícios arrojados com sacadas monumentais convivem em sintonia com prédios de tijolos bem baixinhos, um garçom de um dos cafés da praça central não ficou nem perto de vermelho ao dizer que a ceia de reveillon custava 900 pesos... por pessoa! Ah, sim, mas as crianças teriam desconto, pagariam provavelmente metade. Contas rapidamente feitas, desembolsaríamos perto de três mil pesos (mil e quinhentos reais) em pouco mais de quatro, cinco horas, no máximo. Fiz menção de gritar “pega ladrão, que assalto!”. Mas me contive. Elisa, que bem conhece as reações do marido que tem, comentou bem baixinho: “achei mesmo que você fosse gritar ‘o que é isso’”! Antes do susto, já tínhamos gasto mais um pouco das solas dos sapatos visitando a feirinha da Recoleta, uma versão ampliada e mais diversificada da Benedito Calixto com o Masp, e onde se vende de tudo. Margeamos o muro do cemitério onde está enterrada Evita Perón. Informados do fato, Luiza e Daniel iniciaram um debate acalorado. “Podemos visitar? Eu nunca entrei num cemitério. Quero muito”, manifestou o menor. “Mas é um lugar tão triste, não sei se quero ir”, respondeu a mais velha. “Vou nesse cemitério por bem ou por mal, custe o que custar”, definiu o irmão, determinado. Pais mediadores entraram em cena, conciliando, sugerindo outros programas, e a decisão ficou para mais tarde. Pergunta daqui, confirma de lá, entende um poquito do que um diz, quase nada do que outro informa, portunhol sempre apurado, conseguimos chegar à imponente Biblioteca Nacional. Para tristeza geral, estava fechada, por conta do recesso de final de ano. Macambúzios, passamos por alamedas estreitas, encontrando um atraente “Café do Leitor”, e já descíamos por uma rua sombreada por árvores, em direção à avenida Libertador, quando uma fruta pequena, mas dura feito pedra, caiu em minha cabeça. Soltei um sonoro “ai” de dor. Imediatamente, Luiza gritou “ai, pai, caramba!”. Também tinha sido atingida por fruta sacana. E achou que eu é que tinha lhe dado um peteleco! Vejam só a quantas anda minha fama... Retruquei: “poxa, não fui eu, e também levei, estou dolorido”. Reação em cadeia: a mãe riu, Daniel riu, e nós dois também esquecemos as bordoadas e soltamos as risadas. Da grade de proteção, vimos a enorme flor de metal que se abre durante o dia, como se estivesse brotando, para voltar a se fechar durante a noite, tal qual se fora Prometeu. Daniel ficou decepcionado: “isso não é uma flor, é um robô, está cheio de computadores e equipamentos dentro dela”. Fomos ultrapassados por corredores e ciclistas antes de chegar à Faculdade de Direito, que para mim é sempre motivo de reverência, por conta da família – avôs, pais, tios, primos, irmãos – recheada de advogados. Cruzamos a ponte onde, em 1997, tirei uma foto com uma imagem do Che pintada no chão. Procurei o guerrilheiro. Foi cruelmente substituído por uma pintura do ex-presidente Nestor Kirchner – aliás, o culto à imagem do casal presidencial, sobretudo o líder morto, é outras das marcas de identidade da Buenos Aires atual. Já tinham se passado mais de duas horas e Daniel fez questão de lembrar: “pai, e o cemitério? É agora?”. Conseguimos prorrogar mais um pouco, pois ali logo à direita está o Museu Nacional de Belas Artes, que merece ser visitado. Pinturas, esculturas, artesanato, desenhos, tapeçaria – um valioso patrimônio cultural. Daniel chamou a atenção para um moinho pintado por Van Gogh, mas disse que gostou mesmo da obra “A Lua e a Terra”, de Rodin, artista também apreciado por Luiza, que se encantou com “O Beijo”. Eu me identifiquei com os quadros da entrada, a narrar as lutas por independência do país. Quando me dei conta, já eram quase duas da tarde, e Luiza tinha desabado, exausta, num banquinho de uma das salas do museu, sem forças para sair de lá. Hora do almoço. No simpático restaurante da praça central, todas - e não é só força de expressão – as mesas ocupadas tinham sido dominadas por brasileiros. Na da frente, uma família conversava sobre cinema, de Madagascar a Martin Scorsese; na do lado, um casal combinava de acordar bem cedo amanhã, para city tour contratado. A língua portuguesa, com todos os seus sotaques (arrastados, malemolentes, cantados, sussurrados, puxados), tornou-se universal na capital argentina. Mais tarde, cheguei a ver em frente ao café um rapaz que exibia orgulhoso a camisa do Náutico do Recife. Enquanto esperávamos a comida – fartíssima, por sinal -, Daniel fazia contas de adição. De cabeça. Solicitava os desafios. E acertava. Segredo”: “é que eu tenho uma lousinha mágica na minha cabeça”. Com paciência e sabendo procurar, as refeições em Buenos Aires saem por preços razoáveis. Estamos gastando, em média, 200 pesos por almoço, em quatro. A encrenca – e aí a vida está assustadoramente cara mesmo – é querer investir nas paradinhas, os extras, os passeios, quando se chega a pagar até cem pesos numa rápida sentada. Uma garrafa de água pequena sai em média 15 pesos; uma coca-cola de 350 ml custa a mesma coisa. Para o passeio no zoológico de Luján, investimos mil pesos. O bolso dói mesmo. Fim do almoço, todos enfastiados de tanto comer, Daniel não se fez de rogado: “e agora, cemitério!”, anunciou, triunfante. Antes – tinha de ter suspense – entramos no Centro Cultural da Recoleta. O lugar é simples, muito bacana e divertido, com exposição interativa de ciências; ao final, num cineminha exibido numa salinha, duas garotas liam, com auxílio da avó (acho), o “Manifesto Comunista”, e uma delas perguntava: “O que é revolução?”. Fiz menção de responder, com os olhos já marejados. “Vamos dar só uma passadinha na igreja de Nossa Senhora do Pilar, aqui ao lado. Assim vocês pedem proteção antes de entrar no cemitério”, brinquei com os meninos. Luiza já estava com a testa franzida, ressabiada. E finalmente... o cemitério! Daniel entrou dançando; Luiza, resmungando, praguejando e segurando firme na mão da mãe. Procura daqui, segue o fluxo, levou um tempinho até que conseguíssemos localizar o túmulo de Evita, onde havia, claro, aglomeração de turistas. Daniel subiu no ombro da mãe e seguiu em frente. Fiquei mais afastado, abraçado com Luiza, a essa altura já para lá de tensa, quase histérica. “Irado!”, voltou comemorando Daniel. A irmã só queria sair dali rapidinho. A encrenca é que agora ele se empolgou, bate o pé e diz que quer conhecer o túmulo de Jesus. Se alguém souber onde está enterrado o Cristo, por favor me avise.



DOMINGO, 30/12 - INOCÊNCIA PERDIDA - ASSALTO EM BUENOS AIRES

Conhecendo a Casa da Cristina...


... e esperando para ouvir clássicos
de Carlos Gardel















Tínhamos acabado de jantar e de nos refestelar com as empanadas argentinas, de queijo com presunto, carne, quatro queijos, verdura, frango. Barrigas pesadas, e para fazer digestão e aproveitar um pouco mais a convidativa noite de sábado, caminhávamos tranquilamente pela movimentada avenida Corrientes. Luiza prestava atenção nos doces. Daniel procurava flâmulas de times de futebol, por aqui vendidas em bancas de jornais. Elisa Marconi tinha entrado em um café para confirmar preços para a ceia de Ano Novo. Foi quando um senhor de meia idade atravessou a rua correndo, esbaforido, sem medo dos carros, trombando com quem visse pela frente e gritando “policia, policia” (detalhe: mais tarde, Elisa confessaria que tinha achado que o grito era de “vai, Corinthians!”). Tinha sido assaltado. Procurava ajuda. Como numa cena de filme, a imagem congelou. O clima pesou. Ninguém mais se mexia. Todos olhavam para a direita, acompanhando até onde foi possível a corrida da vítima, que em segundos escapou do alcance dos nossos olhos. Sumiu. Segurei firme os dois meninos pelas mãos, abracei-os, me coloquei na frente deles e recuamos cuidadosamente para bem perto da porta do café, em busca de abrigo. Assim que paramos, um policial vestindo aqueles coletes laranjas passou voando por onde estávamos, provavelmente já procurando o meliante. Eram pouco mais de oito horas. Decidimos voltar para o hotel. Caminhamos rapidamente, trocando poucas palavras. Quando entramos no elevador, Daniel desabou no choro, me abraçou forte e disse: “estou com muito medo”. No quarto, o pânico do pequeno se juntou à agonia da irmã, que também chorava. Diziam que não gostavam de ladrões, que não queriam mais sair, passear, nem aqui nem em São Paulo. Daniel nos fez confirmar que todas as janelas e portas estavam fechadas, me pediu para olhar para a rua e garantir que por lá estava tudo tranquilo. Insistia em saber se já estava tudo sob controle, se nada ia acontecer, se o assaltante tinha sido encontrado. Queria ter notícias do tio Guto Bicudo, que também está por aqui, saber se ele estava bem. Luiza permanecia atônita, sem saber muito o que dizer, talvez querendo esconder a paúra para solidariamente acalmar o irmão, em prantos. Mas estava visivelmente atormentada. O fato é que nunca tinham visto um assalto. Bem-vindos à real realidade, meus pequenos queridos. Entramos em campo, primeiro para abraçá-los bem forte, acariciá-los, deixando que manifestassem os sentimentos, sem travas ou tabus. Dissemos então que, infelizmente, tais cenas não são casuais em Buenos Aires – como também não são em São Paulo ou em qualquer grande cidade. Foi a primeira. Infelizmente, talvez não seja a última. E é preciso sempre andar atento, olhando para os lados, evitando as ruas escuras, tomando cuidado com objetos de valor, bolsas bem seguras, sem marcar bobeira, procurando ajuda sempre que for preciso. Recomendamos que, em situações de perigo, procurem imediatamente abrigo, entrem em lugares movimentados, escapem da zona de rebuliço, sem reações de enfrentamento. Papo brabo, difícil, porque era preciso mostrar a eles a necessidade de criar casca grossa e idealizar ações de segurança permanentes, e que ainda assim não estaremos totalmente protegidos, mas que ainda assim é fundamental aprender a controlar e lidar com o medo, que não pode paralisar ou impedir o contato com as coisas boas da vida. Turbilhão de informações, combinação dificílima, ainda mais para duas crianças. E, querem saber, no limite eles é que estão certos mesmo, não é normal ter que aprender a conviver com assaltos; nós, adultos, é que somos obrigados a naturalizar a questão. Ali, estavam os dois a nos dizer: poxa, vivemos então num mundo doente? E temos que aceitá-lo e nos virar para encará-lo? É isso? Uma pena, mas não vou mentir, pequenos. É isso mesmo. Mas, acreditem, dá para ser imensamente feliz nesse mundão que nos prega peças. Ontem à noite, eles perderam um bocadinho da inocência. E conheceram mais profundamente Buenos Aires, essa cidade espetacular, cheia de abraços e de encantos e que tão bem nos recebeu – mas que, como toda metrópole do planeta, é marcada também por graves problemas sociais. A capital argentina acorda devagarinho, espreguiçando primeiro um braço, depois o outro, bocejando de leve. Às oito da manhã, as ruas permanecem praticamente desertas. Uma hora depois, as portas das primeiras lojas, escritórios e restaurantes começam a ser abertas. Mas é só às dez da matina mesmo que os argentinos dizem “bom dia”. Minha sensação é que hoje a pobreza é mais visível que há quinze anos, quando estive por aqui pela primeira vez. Há gente pedindo dinheiro, crianças famintas e uma quantidade grande de pessoas que se vira como pode para improvisar camas e dormir nas ruas. O trânsito é também mais caótico, histérico, com buzinas para todos os lados, congestionamento em horários de pico, inclusive na larguíssima Nove de Julho, e carros – novos e modernos, é verdade, como não vi também em 1997 – ignorando sinais vermelhos e parando em faixas de segurança, sem a menor cerimônia. Em contrapartida, as ciclovias são alvissareira novidade. As cafeterias são convites à leitura, estão em todos os cantos, e nelas é possível passar horas – sem força de expressão – tomando apenas um café, uma água, lendo o jornal, sem ser incomodado. Não há quem se aproxime para dizer “senhor, é preciso pedir algo mais”. As livrarias fazem parte do cenário da cidade – e não apenas as megastores, mas as caseiras, as pequenas, as especializadas, os sebos. Em quase todas, Paulo Coelho é destaque nas prateleiras. Quem anda pela Lavalle, que cruza a Nove de Julho perto do Obelisco, além das lojas de esportes, avista dois imensos templos religiosos – um da Igreja Universal, de Edir Macedo; o outro, da Igreja Mundial do Poder de Deus, do missionário R. R. Soares. A mercantilização da fé já desembarcou por aqui. Quem segue em frente e chega à calle Florida se depara com inúmeras apresentações de artistas de rua – uns contam piadas e fazem mágicas, outros dançam tango. Elisa e Daniel tiraram foto com um sujeito que era o homem invisível, não tinha cabeça. Em pleno calçadão, Daniel se encantou com um cara com a camisa da Argentina, que fazia embaixadinhas e malabarismos com a bola. Como quem nada queria, foi se chegando. E conseguiu trocar passes com o hermano. Saiu de lá com um sorriso no rosto de dar inveja, como se tivesse conquistado a taça do mundo. Por aqui, o real é moeda fortíssima, aceito em diversas lojas e restaurantes, não raro disputado a tapa. O taxista que nos transportou da Recoleta para o Centro fez oferta sedutora: pagava 2,65 pesos por real (nas casas de câmbio, chega-se a 2,50). Mas estávamos sem a moeda brasileira. Buenos Aires é a cidade das árvores, dos parques, das praças e das estátuas e dos monumentos aos heróis da história argentina. Ah, claro, e também a capital mundial da batata frita! Caramba, como os portenhos sabem fazer batata frita – fresquinha, sequinha, crocante, rechonchuda. Perfeitas! Sedentos dessa história, e admiradores dela, estivemos hoje pela manhã novamente na Casa Rosada, desta feita para a visita monitorada. Recomendo. Trata-se de um instigante encontro com as entranhas do poder, ou pelo menos a parte que é permitida aos reles mortais, embora num determinado momento do passeio tivéssemos acesso inclusive a salas cotidianamente usadas pelos assessores de ministros e da presidenta, sem muitas maquiagens para turistas. Nessa etapa do trajeto, aliás, não são permitidas fotos, alertou a guia. Era como se tivesse dito “por favor, tirem todas as fotos que quiserem”, pois os flashes estouraram sem pudores. E não foram só brasileiros – as máquinas e celulares atrevidos eram empunhados por europeus de diferentes nacionalidades. Impossível não ficar emocionado ao alcançar a sacada que fica ao lado daquela que é famosa pelos discursos e observar de lá a esplendorosa e viva Praça de Maio. Fico imaginando a multidão que não raro se reúne ali – deve ser de arrepiar. Tocante foi também poder ver a sala de reuniões usada por Evita Perón – ali nasceram muitas das políticas públicas e ações que ousaram garantir cidadania mínima aos descamisados. Luiza ficou surpresa ao descobrir que a heroína dos argentinos viveu apenas 33 anos. “Fez bastante coisa pelos pobres, em tão pouco tempo, né, pai?”. A tarde foi reservada para o descanso. Os meninos estão exaustos, depois de tantas aventuras e caminhadas. Enquanto escrevo, os três dormem. Até porque é preciso recarregar as baterias para o show de tango, à noite. Mi Buenos Aires querido!



Promessa cumprida: virada de ano no Obelisco
SEGUNDA-FEIRA, 31/12. TAMBÉM TEM SÃO SILVESTRE EM BUENOS AIRES. FELIZ 2013!

Sei que é feio, não deveria ter feito, mas foi mais forte, não resisti: enquanto esperávamos o início do show de tango, me desliguei de todo o resto que acontecia na casa de espetáculos e comecei a prestar atenção na conversa da mesa ao lado. Eram dois casais de meia idade – e mais parecia reunião de cúpula da Sociedade Cheirosa, Limpinha e Rica dos Diferenciados dos Jardins Paulistanos. O papo começou por conta de um livro. Até agora estou com urticária e não me conformo por não ter conseguido identificar de que autor falavam, mas o fato é que os quatro desancavam o sujeito. Breve resumo do papo: “Você leu? Uma porcaria, cheio de bobagens. Tendencioso. Não sabe escrever, é ruim demais, muito fraco. Não é referência. É um petista safado”. Rojões, brindes, estrelas, aplausos. Os caras conseguiram transportar a ojeriza pelo PT para as férias em Buenos Aires. Fiquei me coçando de curiosidade e faltou um tiquinho para perguntar “mas que livro é esse mesmo?”. Segurei a onda. Seria confusão na certa. Primeiro – e até aí com razão - porque o iluminado quarteto fantástico ficaria fulo da vida com a minha sorrateira bisbilhotagem; depois, porque, se bem me conheço, iniciaríamos um debate que talvez não terminasse de forma amistosa. Respirei e só fiz repetir o mantra de final de ano: sem estresse, sem estresse... Melhor desviar a atenção e curtir o show, que foi fenomenal. Começou com “Mi Buenos Aires querido” e passeou divinamente por todos os clássicos do tango – “Caminito”, “El dia que me quieras”, “A media luz”, “La cumparsita”, “Por una cabeza” (que Luiza entendia e cantava “poru na cabeça”, como se 'poru' fosse um objeto que o protagonista da música carregasse na cachola, tal qual equilibrista...). Quando vejo as pernas duelando e se entrelaçando na dança tão dramática quanto sensual, trágica, me lembro sempre e imediatamente da memorável performance de Al Pacino em “Perfume de Mulher” e acabo me conformando – se arriscasse um único passo daqueles, mesmo enxergando tudinho, terminaria de bunda no chão, numa cena patética, ridícula, em menos de cinco segundos. Não tenho a menor habilidade para a dança. Paciência. Em combinação com os tangos, foram lembradas também as origens e a identidade argentinas, com números de música indígena e latina, a nos deliciar com as batidas fortes dos tambores e a flauta de pã, que tem o dom de me hipnotizar. El Condor pasa... Luiza, que quase dormia, ficou esperta para ver o grand finale – uma artista muito bem caracterizada encenando o último discurso de Evita, na sacada da Casa Rosada, e cantando “Não chores por mim, Argentina”. A pequena foi definitivamente seduzida pela heroína dos argentinos. Quer saber tudo sobre a mãe dos descamisados. Pesquisou textos e encontrou no youtube vídeo original com a fala de despedida. Prometi que vamos procurar por aqui uma biografia de Evita para crianças. Será que existe? Alguém conhece? Pela manhã, a pequena veio mais uma vez me contar: fomos agraciados com a última manchete do ano do Clarín – que não conseguia esconder a satisfação com o agravamento do estado de saúde do presidente venezuelano, Hugo Chávez. Que venha a Lei de Meios. Partimos para aventuras em Palermo, o bairro conhecido pelos parques. No feriado, praticamente tudo estava fechado. Mas conseguimos, pelo lado de fora, fazer todo o percurso do Rosedal, o mais apreciado pelos portenhos. Passei a andar, sem pensar. Daniel queria aproveitar a grama verdinha e atraente e não conseguia virar o disco: “preciso de uma bola, só uma bolinha, não tenho nenhuma bola...”. Tentamos solucionar o dilema, mas, no último dia do ano, uma redonda bem chinfrim não saía por menos de 50 pesos, nos pequenos comerciantes de calçadas que por lá estavam, a caçar turistas loucos por futebol. Abuso. Tentei começar uma partida com bola imaginária. Não deu certo. O pequeno resmungou, queria realidade. Andando, quase tropeçava na tromba. Quando a mãe perguntava qualquer coisa, nem abria a boca, respondia com gestos, apenas. O humor só foi melhorar quando brincou de subir em árvores – mas ainda restavam resquícios de rabugice, que só foram totalmente superados quando sugeri que ele e Luiza percorressem, separados e correndo, a mesma distância. Quem fizesse o menor tempo seria o vencedor. Como ele quase não gosta de desafios, topou na hora. E, como adora ganhar (ainda mais da irmã), voltou a sorrir forte quando confirmei que o melhor desempenho tinha sido dele. Nas andanças, travamos de susto quando dois cachorros acharam por bem resolver sei lá qual parada na base das mordidas. E se engalfinharam com rosnadas, patadas, latidos. Como constatou Elisa, os donos, amigos, pareciam querer negociar entendimentos amigáveis e racionais, mostrando aos animais que eram parceiros. Não deu muito certo. A briga só terminou quando seguraram as coleiras com força e jogaram um cão para cada lado – o grande se deu bem, saiu ileso, imponente; o pequeno ficou machucado e precisou de ajuda. Entre skatistas, patinadores, corredores, ciclistas e gente que simplesmente aproveitava para se despedir com paz e sossego de 2012, pegamos bem no finalzinho – já com os cumprimentos e a foto para a posteridade – uma partida de hóquei na grama, esporte também adorado pelos argentinos, que têm na seleção feminina – as Leonas – outro dos orgulhos nacionais. A partir daí, só encontramos portões com cadeados – Jardim Botânico, Jardim Japonês, Jardim Zoológico (que ainda guardava sinais da manifestação que pediu o fechamento do parque, realizada na última quinta-feira, por conta da morte do urso polar). Quando passamos na frente da sede da Sociedade Rural Argentina, recentemente expropriada pelo governo federal, não resisti e vibrei: “que chupem todos, latifundiários!”. Tremendo arroubo juvenil. Mas foi bom, divertido. Me senti mais leve. Enquanto almoçávamos, a chuva caiu forte em Buenos Aires, confirmando o que tinham dito as mocinhas do tempo portenhas. Aliás, outra curiosidade é que as televisões locais informam previsões de tempo para horários distintos do dia, considerando intervalos de três horas – e, garantem, a virada de ano será seca, sem novas pancadas. Mais uma curiosidade: cuidado, pois taxistas argentinos tendem a ficar irritadíssimos quando você paga a corrida com nota alta e eles têm de ser virar para arranjar troco. Na volta para o hotel, algo que não estava no programa e foi divertidíssimo: acompanhamos na rua a Terceira Edição da Corrida de São Silvestre de Buenos Aires. Se eu soubesse, teria me inscrito... Aproximadamente nove mil atletas participaram da prova, com oito quilômetros de percurso e largada e chegada na Nove de Julho, bem perto do Obelisco. Em comparação com a corrida de mesmo nome que acontece em São Paulo, o enredo por aqui me pareceu mais espontâneo, amigável, menos profissionalizado, mais diversão e menos competição, com os gritos e aplausos de incentivo também presentes, mas com separações menos evidentes entre corredores e torcedores, tanto é que alguns pedestres arriscavam atravessar calmamente a avenida, com a corrida em curso, como se nada de diferente estivesse acontecendo. O vencedor (sei que é triatleta, prometo depois tentar confirmar o nome dele) completou a prova em 26 minutos e trinta segundos (o recorde, estabelecido no ano passado, é de 26’24’’). Empolgados, Luiza e Daniel disputaram uma São Silvestre particular, na avenida Corrientes ainda fechada, vencida mais uma vez pelo mais novo. O bom humor dele chegou às nuvens. Que continue assim. A irmã merece beijos e abraços, ajudou a salvar o dia. Ontem, nessa mesma área próxima ao Obelisco, quase fomos engolidos por adolescentes que ali promoviam um encontro das fãs de Justin Bieber. Hoje, dia 31, o Obelisco será o palco do nosso reveillon. É para lá que vamos, para encontrar Guto Bicudo, Regina Pinzan e a afilhada Duda, agradecer e deixar 2012 para trás e receber 2013 de braços abertos, com muita esperança. Para todos os queridos amigos do face, desejamos um ano novo milongueiro e revolucionário!



Ventinho gelado na Ponte da Mulher, em Puerto Madero
TERÇA-FEIRA, 01/01 - CIDADE FANTASMA NO PRIMEIRO DE ANO? NADA DISSO...

A temperatura caiu, chegou perto dos quinze graus, e a paisagem mudou em Buenos Aires: as bermudas e camisetas foram substituídas por calças e camisas compridas, às vezes até uma malha mais levinha. Na virada de ano, ao menos no Obelisco, um insistente vento gelado levou 2012 e anunciou a chegada de 2013. Não éramos os únicos malucos (não vou usar louco porque não sou corinthiano...) por lá. Os sotaques se misturavam, havia cantoria, gente alegre reunida e, quando alguém começou a contagem regressiva, acompanhamos com entusiasmo. À meia-noite, foram vários os pipocos de champanhes estourando, seguidos por abraços, gritos, pulos e fotos. Um cidadão (sem camisa!) que já devia ter atingido estado etílico quase terminal (borracho era pouco) se agachava, acendia as baterias de fogos e permanecia no mesmo lugar, impávido que nem Muhammad Ali, rindo com os rojões e coloridos explodindo quase no rosto dele. A comemoração ficou muitos tons acima do que eu idealizara. Tinha ouvido e lido que, em Buenos Aires, tire o cavalinho da chuva, não tem comemoração de reveillon nas ruas, os portenhos ficam em casa com as famílias ou viajam para o litoral. Cheguei preparado para uma festa íntima e quase familiar na avenida. Mas o Obelisco pulsava, os bares estavam cheios, o movimento de carros era intenso. Também estava conformado para passar um dia primeiro de ano quase em cárcere privado, preso no hotel, pois as narrativas que consegui colher falavam de uma cidade parada, com tudo fechado, às moscas, quase fantasma. Já tínhamos até sistematizado esquema especial para refeições, pensando principalmente nas crianças. Teimosos, resolvemos nadar contra a corrente e arriscar caminhada no final da manhã. Sim, havia um clima de ressaca, preguiça de feriadão, garrafas quebradas e papel picado na Nove de Julho, a maioria das lojas fechadas, cinemas e teatros em recesso, o mesmo acontecendo com os parques. Mas era possível encontrar, sem muito desespero, cafés e restaurantes a pleno vapor, táxis e ônibus circulando, metrô funcionando e muita gente dando as boas-vindas a 2013 nas ruas, muito, mas muito mais mesmo do que se vê em São Paulo nesse dia. Aproveitamos para andar em sentido contrário ao da Casa Rosada. Traçamos um quadrado – Corrientes (que Elisa jura que tem esse nome por conta de ser um corredor infernal de vento), Callao, Avenida de Mayo e Nove de Julho. Com a cidade mais calma, percebemos ainda mais pobreza, com muitos moradores de rua, vários revirando lixos e se abastecendo das sobras da virada, principalmente nas imediações da Praça do Congresso. O prédio do Legislativo argentino tem um cúpula que se parece bastante com a do Capitólio estadunidense. A praça, em 1997, em nossa lua de mel, estava ocupada por barracas e professores dos diversos níveis de ensino acampados, numa greve que exigia ampliação das verbas para a Educação e aumento de salário para os docentes, já durava 50 dias e era solenemente ignorada pelo governo neoliberal de Carlos Menem. Com tranquilidade e opções a escolher, começamos a pensar no almoço. Luiza sugeriu alfajores como prato principal e doce de leite de sobremesa, no Havanna. Seria uma bomba de glicose ideal se tivéssemos enchido a lata na véspera e precisássemos curar a ressaca. Não era o caso. Preferimos experimental o Il Gato, na Corrientes, que nos havia sido muito bem recomendado. Se arrependimento matasse... Demoraram uma eternidade para nos atender. Cheguei a dizer, em tom de ironia: será que somos estranhos e não representamos o perfil do lugar? Quando o cardápio chegou, não trazia as promoções em destaque na entrada do restaurante. Pura propaganda enganosa. Já fiquei incomodado – aliás, esse “tem, mas não tem” com tonalidades argentinas já tinha me irritado no primeiro dia, quando chegamos ao hotel e descobrimos que não tinha piscina (é anunciada no site, mas acaba se descobrindo que é um tal convênio com um parque aquático, clube ou coisa que o valha, pelo qual é preciso pagar diária, por pessoa, de mais 55 pesos). No Il Gato, sem muita fome (tinha comido uns queijos), decidi acompanhar os pequenos e pedir um prato para criança – carne com batatas fritas, em porção menor. “Não pode, é só para menores de dez anos”, fulminou o garçom. Tentei argumentar, já sem paciência: “mas é prato como outro qualquer, está no cardápio, só menor, não é possível que tenha limite de idade. Não quero desperdiçar, não quero jogar comida no lixo”. Fala ele, retruco eu, o garçom finalmente anunciou: “pode pedir o prato infantil, mas há uma taxa de mais onze pesos”. Entendi, cristalino como a água. Não pode, mas pode... desde que a grana entre em cena. Ainda assim, mantive o pedido, pois achei um absurdo estragar comida. Eu sabia que não aguentaria porção maior. Enquanto almoçávamos, pessoas que estavam em pelo menos outras duas mesas se levantaram e foram embora, por conta do péssimo atendimento. Uma moça saiu xingando. Quando veio a conta, fiz questão de não pagar a taxa de serviço. Acabou compensando o extra que paguei pela minha refeição. Era praticamente o mesmo valor - elas por elas. Saímos empatados. A tarde nos reservava mais uma surpresa – esta, positiva. Em 1997, os próprios moradores locais nos recomendavam com muita ênfase: nem cheguem perto de Puerto Madero. Era uma das áreas mais degradadas e violentas da cidade. Foi totalmente recuperada e revitalizada e hoje, andando por lá quase que de ponta a ponta, à margem do rio, o que vimos foi um ambiente bastante agradável e convidativo, um dos cartões postais da cidade, a ponto de receber a festa oficial de reveillon de Buenos Aires, com a tradicional queima de fogos. Se a proposta é consumir (não era o nosso caso), é preciso ter grana, pois os restaurantes chiques e de alta gastronomia são proibitivos – e um deles tocava em alto e bom som o “Gustavo Lima e você”. Para quem quer passear e conhecer a diversidade da capital, vale muito a pena – é uma ampla área arborizada, com pequena praças, bancos, sombras, um vento fresco (que no inverno deve ser gelado) e com prédios simpáticos de tijolinhos em sequência, a lembrar o campus da Universidade Mackenzie. Como atrações, há ainda a Ponte das Mulheres, que é móvel, para permitir a navegação, e uma fragata de guerra do século XIX, a Presidente Sarmiento, que funciona como museu, e onde Daniel se esbaldou, a tirar fotos com os canhões e perto dos uniformes dos comandantes, como se fosse almirante. Ele e Luiza, aliás, já dominam por completo o portunhol e se viram sozinhos, solicitando informações, fazendo os pedidos nas refeições, conversando com os funcionários do hotel... Andam com desenvoltura para lá e para cá, distribuindo “gracias, gracias, gracias”. Os dois estão ainda a processar o trauma do assalto. Luiza caminha ressabiada à noite. Daniel passou a perguntar “pai, está tudo bem, você está com carteira?”. Sem tabus, continuamos a ouvir e a orientá-los. São dois grandes companheiros de viagem, topam qualquer parada. No fim da tarde, ainda tivemos fôlego para um passeio de metrô, o famoso subte. Fomos até a Faculdade de Medicina, para mim parada obrigatória, pois foi lá que estudou Ernesto Che Guevara – e hoje, primeiro de janeiro, comemoramos 54 anos do desembarque dos revolucionários em Havana e do triunfo da Revolução Cubana. Pois é, para quem imaginou que passaria o dia trancafiado no hotel, olhando para o teto... Ah, sim, estava me esquecendo da manchete do Clarín. Hoje, por incrível que pareça, não bateram na presidenta Cristina Kirchner. No dia primeiro de ano, os jornais não circulam na capital argentina.



QUARTA-FEIRA, 02/01 - AS CRIANÇAS DECRETAM: "PAI, A GENTE NÃO QUER IR EMBORA"

Um pedaço da família se encontra
para brindar o Ano Novo
O mundo mágico da Livraria Ateneo


















Um estrondo assustador, no começo da madrugada (pouco antes de uma da matina), seguido por um grito gutural. Dormia profundamente, mas dei um pulo da cama, coração acelerado, tonto e atordoado. Elisa saltou em seguida, com a mesma pergunta escrita na testa: ‘o que aconteceu?’. Parecia que a explosão tinha acontecido debaixo da nossa cama. Corremos para a janela – e outras já eram escancaradas nos prédios da frente. Olhávamos todos para a rua, assustados, esquerda, direita, movimentos tensos, ainda sonolentos, tentando entender o que se passara. Tudo estava calmíssimo, sem qualquer sinal de anormalidade. Mesmo com toda a algazarra, os meninos nem se mexeram. Como não conseguimos descobrir coisa alguma, resolvemos fazer o mesmo. Paciência. Na hora do almoço, já bem despertos, outro susto: o telejornal contava que tinha sido uma bomba caseira, deixada em um pacote dentro de um carro estacionado (de propriedade de um funcionário do Congresso), que explodiu em uma rua bem perto do hotel. Feriu uma funcionária do Congresso, por coincidência, que não era o alvo do atentado, segundo as investigações preliminares da polícia. A pergunta que agora corre é: para quem era a bomba? Os jornais de amanhã devem repercutir o caso e trazer novidades. O movimento acelerado na cidade voltou ao normal. A temperatura está bem mais amena – chegou aos 25 graus. O noticiário confirmou o que já havíamos sentido na pele: foi o dia primeiro de ano mais frio dos últimos dez anos na Argentina, com os termômetros marcando 12 graus na capital e 7 graus em cidades litorâneas como Mar del Plata. O dia hoje foi especial, de festa: além de Guto Bicudo, Regina Pinzan e da pequena Duda, que já estavam por aqui, encontramos o patriarca Chico Bicudo e a matriarca Stella, que estão fazendo um cruzeiro pela Argentina e pelo Uruguai e por aqui aportaram, de passagem. Conseguimos reunir em Buenos Aires metade da família (saudade dos clãs do Eryx e da Anna Sylvia). Lugar apropriadíssimo para a confraternização: Livraria Ateneo, na avenida Santa Fé. Lindíssima, elegante e discreta, ocupa três andares de um antigo, enorme e aconchegante teatro, com um singelo café instalado no que era o palco. São fileiras e prateleiras de livros de deixar qualquer um abobado, atordoado, sem saber por onde começar a visita. Acho que precisaria fácil de uns dois ou três dias para percorrer todas elas, com o carinho que merecem. Fucei em quase todas, mas me detive com mais capricho nas seções de romances, livros de História, crítica literária e biografias. Luiza conseguiu encontrar a tão desejada biografia ilustrada da Evita. Vibrou. Continua pesquisando e lendo sobre a mãe dos descamisados. Disse que está decidida a escrever um livro sobre a personagem. Daniel arrematou um sobre perguntas e respostas a respeito da natureza. Anda com o regalo debaixo do braço, a se virar para entender o espanhol. Tem se saído vitorioso. Elisa escolheu um CD de tangos e uma obra de receitas típicas da Argentina. Tomara que ela, reconhecida e admirada cozinheira de mão cheia, aprenda a fazer as deliciosas papas fritas. De cara, selecionei dez livros. Depois de muito pensar, com dor no coração, quase fazendo ‘unidunitê’ e finalmente acatando sugestão do vendedor, acabei ficando com dois: uma também biografia da Evita, que o rapaz que me atendeu garantiu ser a melhor já publicada, escrita por Marysa Navarro, historiadora e professora do Darthmouth College, nos Estados Unidos; e “1976 – El golpe civil”, do jornalista Vicente Muleiro, que apresenta documentos e entrevistas que revelam que a ditadura instalada na Argentina não aconteceu apenas por obra e graça dos militares. Como a história argentina estava mais uma vez na ordem do dia, aproveitamos a tarde para visitar o Museu Carlos Gardel, instalado na casa onde o famoso cantor de tango viveu seus últimos anos de vida, junto com a mãe. É bem simples, daqueles tipicamente de bairro, mas muito bem organizado e cuidado com esmero. Fica em Abasto, região mais afastada, com prédios antigos, bares, lojas de frutas e verduras, além de cortiços e garotos jogando bola e estourando bombinhas nas ruas. Elisa disse que a o entorno lembra de leve o Bixiga paulistano. Concordei. O próprio Museu pode ser comparado ao que existe no tradicional bairro italiano em São Paulo; no portenho, sempre ao som do inconfundível vozeirão de Gardel ao fundo, é possível encontrar fotos, partituras, gramofones (Daniel achou o máximo!), dezenas de discos em vinil (que, reforçamos aos meninos, eram os Cds de antigamente, com chiados...), máquina de escrever (o computador que já imprime enquanto escrevemos, explicamos...), recortes de jornais, filmes e instrumentos musicais (sobretudo pianos e bandoneons) usados pelo cantor e a banda dele. Elisa se apaixonou por um rádio antiquíssimo. Na saída, a responsável pela casa perguntou para Daniel: gostou? Sem pestanejar, ele devolveu: si! Ela riu e insistiu: quanto? Em perfeito e ligeiro portunhol, com sotaque misturado e tudo, ele mandou ver: muitcho! O pequeno, aliás, se encantou também com um palhaço chamado Piñón Fijo, que faz muito sucesso na televisão local. Sei lá, talvez seja a versão argentina do Patati (ou do Patatá): canta, dança, entrevista bonecos animados, conta piadas... e faz palhaçadas, claro. Hoje arriscou até o “ilariê” da Xuxa, canção bastante admirada por aqui também. Nas poucas brechas livres, conseguiram ver “a Era do Gelo” 2 e 3 na TV. A fala espanhola do Sid é tão engraçada quanto estranha. Pararam para acompanhar ainda um documentário sobre o Tiranossauro Rex. Curiosidade: as emissoras indicam os intervalos, obrigatoriamente avisando “início do espaço publicitário” e “fim do espaço publicitário”. Assistindo ao telejornal matutino, fiquei com inveja dos hermanos: terão 19 feriados em 2013! Mais: alguns deles, originalmente caindo em sábados ou domingos, serão automaticamente transferidos para segundas-feiras! Aqui, mais importantes que as comemorações religiosas são as datas nacionais, como o início da revolução de libertação, a independência e a morte de San Martin. Mergulhada nas leituras sobre os heróis argentinos, Luiza acaba de me perguntar com quantos anos morreu o Che. Com 39, respondi. Daniel, de bate e pronto: “nossa, pai, bem mais novo que o Niemeyer, né?”. Preciso... Na volta do Museu Gardel, no metrô, o pequeno já tinha me cutucado e pedido para contar um segredo. Abaixei para ouvi-lo: “pai, aquele moço ali da frente com a camisa vermelha do River é igual o Di Maria”. Desviei discretamente o olhar. De fato, o rapaz lembrava o atacante do Real Madrid. O preço da passagem do metrô (o subte tem seu charme, mas perde feio para o conforto e a eficiência do de São Paulo) foi outro destaque dos jornais de hoje. Custa atualmente 2,50 pesos. O prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, no entanto, que faz oposição ao governo federal, pretende acabar com os subsídios públicos, agora que o controle do transporte passou das províncias para as cidades. A tarifa pode chegar a seis pesos. Para não perder o costume: a manchete do Clarín desta quarta-feira destaca a queda de braço entre centrais sindicais oposicionistas e dissidentes peronistas, que reivindicam reajuste salarial de ao menos 30% para diversas categorias, e a presidenta Cristina Kirchner, disposta a conceder no máximo 20%. Ultrapassamos a metade da viagem. Luiza e Daniel já lamentam: “não queremos voltar para São Paulo. Podemos ficar mais?”.



QUINTA-FEIRA, 03/01 - ACARICIANDO TIGRES E LEÕES, ALIMENTANDO URSOS E ELEFANTES...

Olá, gatinho!

Quer mais, ursão?
A viagem até Luján leva cerca de uma hora. A estrada é um retão, quase uma grande avenida. Em alguns trechos, o asfalto está para lá de prejudicado, para ser bem bonzinho, com buracos e desníveis, e a van sacolejou que foi uma beleza. Quem quis dormir aproveitou o embalo. Na chegada, a guia avisa: “este é um zoológico diferente, interativo. Vocês poderão entrar em várias jaulas, passar a mão em grandes animais. Mas há regras. Prestem atenção às orientações dos cuidadores, sempre. Principalmente na área dos felinos”. O alerta já tinha sido feito aos meninos, loucos para sair correndo e pegar leõezinhos no colo: os animais são mais mansos, bem alimentados, bem bonitinhos, lindinhos, estão mais acostumados com gente. Mas bichos são bichos. E não esquecem instintos. Daniel lamentou: “pô, tínhamos que descer bem do lado dos bodes? Como são fedidos!”. Andando, trombamos com os patos. Elisa sacou a câmera e chamou: “vem cá, seu pato, vem... Aqui pertinho. Qué!”. Estava tirada a primeira foto. Fiquei com vontade de chamar um ganso que deu o ar da graça e ter com ele uma conversa de pé de orelha, dizer bem baixinho, mas com firmeza: “seu traíra, cretino, ave ingrata, não precisamos mais de você. Temos agora o hermano Montillo”. Só para desopilar o fígado e comemorar a contratação do meia argentino, que o Santos acabara de anunciar. Norma a ser seguida na jaula dos tigres brancos: crianças não podem seguir. Os meninos ficaram decepcionados. Mas logo entenderam. No colo da mãe, sossegadíssima na fila, a esperar a vez de entrar (formam-se grupos de quatro a cinco pessoas), um garotinho que devia ter uns três anos berrava e estava vermelho de tanto chorar, apavorado, só de ver os bichanos. A cuidadora explicou: “é justamente por isso que as crianças não podem ultrapassar a grade. Se ele abrir esse berreiro lá dentro, o tigre vai avançar”. E lá vamos nós, eu e Elisa. É estranho. A adrenalina bate no máximo. A perna dá uma amolecida mesmo, o frio na barriga é inevitável. Mente quem disser o contrário, a posar de bacana ou fortão. Vá lá, há todo um aparato de segurança, olhos – e braços – atentos dos funcionários (muito bem treinados)... Mas é um bicho enorme, mais de 300 quilos, fortíssimo, garras e dentes afiados, apreciador de carne apetitosa. Ali, a poucos metros, às vezes centímetros, somos presas fáceis. Entramos bem de fininho, pé ante pé, sem querer fazer barulho. Quase pedimos “licença, companheiro”. Um dos animais estava deitado de costas, com as patas para cima, imóvel. Era nele que todos faziam carinhos. Não tirei os olhos dele. Mas era preciso também acompanhar outro, que não parava de andar pela jaula, e vez ou outra levava uns trancos e empurrões pedagógicos dos tratadores, a nos proteger e tirar o animal da nossa rota. Mas o tigrão deu uma rebolada e, num segundo de descuido, driblou a vigilância e pulou nas costas de uma loira que estava no nosso grupo, a pedir um agrado para a senhorita. Grudou nela, sem machucá-la, como se a estivesse abraçando. Não queria soltar. Ela falava: “tira, tira daqui, me solta”. Quando conseguiu se desvencilhar, saiu ajeitando a roupa, visivelmente desconcertada. “É que estou de saia. Ele quis me encoxar”, completou, com inconfundível sotaque carioca. Quando Elisa foi passar a mão na barriga do que dormia, ouviu um rosnado. Afastou a mão. Alarme falso. Tudo sob controle. Tiramos fotos para documentar nossa peripécia corajosa. No tanque dos lobos marinhos, um deles se aproximou, abriu o bocão, soltou um grunhido e bocejou, voltando para a água. Elisa, que estava bem perto, garantiu que o bafo não era tão ruim. O mesmo já não posso dizer da área reservada aos macaquinhos, de onde subia um cheiro horroroso, ácido, a lembrar esgoto, lixão, talvez o Pinheiros ou o Tietê. Daniel tapou o nariz. Elisa quase encostou na grade para fotografar um deles. Sorrateiro e dissimulado, fingindo não estar nem aí, o malandrão repentinamente meteu a mãozona para fora da jaula, tentando alcançar a câmera. Talvez fique irritado com os paparazzi que passam por lá todos os dias, a incomodar o sossego dele. A imagem da mão atrevida está também registrada. Veio então o momento tão aguardado pelas crianças: espaço dos leõezinhos. Têm entre três e seis meses. Daniel foi se agachando e quase abraçando os bichinhos; Luiza, mais comedida, preferiu passar a mão mais de longe, ressabiada. Acharam que durou pouco. Queriam mais. A guia nos convidou – apenas os adultos, novamente - a visitar os tigres laranjas. Na fila, aguardando nossa vez, conhecemos a primeira espécie de espertoman – aqueles que, sem considerar que havia um grupo enorme para entrar na jaula, em pequenas levas, passavam um tempo infindável posando para fotos, muito provavelmente aproveitando para colocar o papo em dia e perguntando aos bichões “e aí, quanto tempo, como vão, vêm sempre por aqui, como vão as famílias, já têm programa para o final de semana?”. Elisa, atenta e perspicaz, me olhou e disse: “qual é a análise antropológica que você está fazendo?”. Eu sabia que estava com apenas uma sobrancelha levantada e cofiando a barba – sinal de irritação, provocada pelo egoísmo humano. Ri. Ainda na fila, patos amalucados de repente começaram a grasnar e a apostar corrida, em nossa direção. Luiza deu um pulo. Falei que era o ataque dos patos assassinos! Ela não gostou. Na diagonal, uma adolescente passou a fazer um escândalo, braços agitados, sem conseguir sequer articular uma palavra. Achei que tivesse visto um gorila ou bicho parecido, a andar livre, leve e solto pelo parque. Era só um filhotinho de pato a tomar banho. Pois então... Quando a nossa vez chegou, fomos novamente breves no coçar a barriguinha do tigre – que, como bem anotou Guto Bicudo, são-paulino, é sempre mansinho aqui na Argentina. Nem se mexeu. Maricón! Opa, não é bem assim. Uma fêmea andava estressada de uma ponta a outra da jaula, com cara de pouquíssimos amigos, especialmente vigiada pelos cuidadores zelosos. Destemido, Daniel se arriscou a dar comida para os ursos – o casal Gordo e Gorda -, mas só o macho se aproximou para receber a frutinha da mão do pequeno, que comemorou: “irado!”. Não se fez de rogado também quando sentou ao lado da mãe, com uma cobra píton se enrolando neles. A boca da serpente se aproximou do rosto da Elisa, que travou a expressão e fez menção de segurá-la. O tratador alertou: “não prenda, não prenda. Está tudo tranquilo. Tranquilo”. Na outra ponta, a cauda da bicha subia e descia, roçando o pescoço do pequeno, que achava tudo muito engraçado. Naquele canteiro, não é permitido tirar fotos. Um malandrão “escondido” ignorava as regras - eis aqui o segundo tipo de espertoman que encontramos. Passamos bem perto e falamos alto: “puxa, não deixam fazer fotos aqui!”. O parvo recuou, tentando camuflar a câmera. Também não se pode entrar no recanto dos chimpanzés. Mas parei para reverenciá-los. Um deles caminhava sobre os quatro membros. Lembrei Luiza: “era assim que a gente andava há alguns milhões de anos”. Pois um outro aceitou o desafio e começou a andar sobre duas pernas. Parou. Tentou alcançar uma bandeira rasgada que estava no alto da jaula. Abriu os braços. Parecia dizer: “tolinhos, também sei caminhar como vocês”. Quase aplaudi. Depois de breve parada para o almoço, corremos para o elefante, pois se aproximava a hora de encontrar o grupo para voltar a Buenos Aires. No caminho, depois de receber afagos mil do garoto, uma lhama se apaixonou por Daniel. Saiu correndo atrás dele. Foi preciso dar dribles nela, passar por trás de uma árvore e voltar para a fila para fazer o animal desistir de acompanhá-lo. Com os elefantes – eram duas fêmeas -, diversão garantida. Pegamos, os quatro, pedaços de maçã, sempre sob os olhares dos cuidadores. Ficamos enfileirados, de costas para os animais, com as mãos levantadas, segurando as frutas. As trombas ágeis foram percorrendo a fila, abraçando as mãos e pegando com habilidade as maçãs. “Nossa, tem pêlos, é estranho”, comentou Daniel. “É áspera, arranha a mão”, completou Luiza. Uma sirigaita que saiu de lá dizendo “que nojento!” trombou com a lhama (que perseguiu Daniel) e ganhou uma sorrateira lambida no ombro. Fez cara de mais asco ainda. Sacou da bolsa um frasco de álcool gel. Quase tomou um banho. Apressamos o passo. Tínhamos poucos minutos para andar de dromedário. Não deu tempo – eram duas pessoas por rodada, dois animais. Quando nossa vez se aproximava, conhecemos a terceira espécie de espertoman do dia: aqueles que ficam guardando lugar para amigos na fila. Resultado: o número de pessoas na nossa frente triplicou. Como não queríamos atrasar a saída do grupo, desistimos (não dava nem tempo de entrar em polêmica e comprar briga). Se não bastasse, surgiu o quarto representante de espertoman: aqueles que têm certeza que o mundo gira em torno do umbigo deles, não estão nem aí para aquilo que foi combinado e continuaram a circular pelo parque, a pegar as fotos que tinham encomendado, a comprar lembranças mil, sem qualquer compromisso com o restante do grupo, que já esperava na van. George Orwell tinha toda razão: há momentos em que não sabemos quem são os bichos, quem são os humanos. Partimos do zoológico com atraso. Deixamos para trás os encantos da evolução e da natureza (de quem sou devoto) e, antes do regresso ao hotel, paramos para alguns minutos de encontro com mais um templo da fé (que respeito, mas que a mim não pertence) – a Basílica de Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina. Diz a crença que a imagem da virgem foi emprestada em 1610 por um português, mas que os cavalos se recusaram a transportá-la de volta, a sugerir sinal divino de que deveria permanecer na Argentina. A igreja para abrigá-la foi construída entre o final do século XIX e o início do XX. Finalmente na van, a caminho de Buenos Aires, mais um espertoman se apresentou. Foi o quinto e último deles. Um mineiro come-quieto aproveitou o cochilo da namorada para se engraçar e jogar conversa mole para cima da carioca loira que tinha sido abraçada pelo tigre branco – provavelmente o tigrão do ônibus também quisesse fazer o mesmo afago na tchutchuca. Não sei a companheira dele se fingiu de morta para depois resolver a questão. Se ela viu ou ouviu alguma coisa, a discussão de relacionamento deve estar rolando até agora.




SEXTA-FEIRA, 04/01 - DANIEL, UM SANTISTA ELÉTRICO EM LA BOMBONERA. LUIZA CAI NOS BRAÇOS DE EVITA

"Não chores por mim, Argentina"
"Sou o alvinegro da Vila Belmiro..."

Foto: Estivemos na Boca, no Boca, e encontramos uns amigos!
Hermanos, lamento dizer: Neymar é muito melhor que Messi...


Abrem-se as cortinas e começa o espetáculo, como narraria o inesquecível Fiori Gigliotti. Está valendo, completaria Silvio Luiz. E que me desculpem os milionários do River, mas Buenos Aires é sinônimo de azul e amarelo do Boca Juniors. Nem bem a catraca tinha sido liberada pelos monitores do Museu e Daniel, com a camisa do Santos (número 11, Neymar Jr nas costas), avançou eufórico pelos corredores do estádio de La Bombonera. Estava elétrico, corria em zigue-zague, parecia um daqueles coelhinhos com pilha Duracell, na ânsia de explorar cada centímetro de um verdadeiro templo do futebol. Ao subir as escadas que dão acesso ao setor das arquibancadas VIP do campo, fingiu que era um jogador a se aquecer para uma partida. Quase no topo, colocou a mão na parte posterior da coxa. Fez expressão de dor e desolo, simulando contusão. Balançou negativamente a cabeça. “É distensão”, avisou, como se falasse com o técnico. Gesticulou com as mãos, pedindo substituição. Passou por mim, bateu em minhas mãos. Deu um tapinha na minha bunda. E deu área, como se eu tivesse entrado no lugar dele. A encenação terminou com um abraço e uma gargalhada. Nas cadeiras laterais da caixinha de bombons (daí o nome popular do estádio, que oficialmente chama-se Alberto J. Armando, homenagem a um presidente do clube), bem abaixo dos camarotes, a guia que nos conduz pela visita monitorada pergunta “para que times torcem?”. Santos, diz o primeiro - e não fui eu, nem Daniel, tampouco Luiza. Era um garotinho loiro, catarinense, fã de Neymar, que aliás é admirado e cantado em verso e prosa por aqui. Havia também corinthianos, um são-paulino, um flamenguista... Outro gritou “galo mineiro”. Apareceu até um a dizer “Figueirense, o melhor do Brasil”, para espanto da guia, que não conhecia a equipe catarinense. Nada de palmeirenses. Será que o Verdão é agora o Racing daqui? O retão por onde começamos o tour é uma área que se parece muito com as sociais e cativas da Vila Belmiro, só que com os torcedores ainda mais próximos do gramado. Graças ao fanatismo intransigente de um torcedor do River, que se recusou a vender a casa, mesmo com todo o dinheiro que lhe foi oferecido, aquele bloco do estádio subiu quase reto, sem poder se expandir e invadir a rua. Dizia que não ia ajudar o Boca a jogar. Sei lá se fez bom negócio. Já imaginaram o maluco aguentando “La Doce”, a principal torcida azul e amarela, gritando quase na orelha dele em noites de quartas e tardes de domingo? Um tormento. Nas gerais térreas, atrás do gol e bem abaixo do lugar reservado para os barrabravas xeneizes (é assim que os boquenses são conhecidos), todos acompanham os jogos em pé. Ai de quem sentar. Cantam o jogo inteirinho. São comandados por líderes pendurados no alambrado. Quando sai gol, lá vem avalanche. Todos saem correndo, ladeira abaixo, e só param na grade de proteção. A guia pede que pulemos. O estádio treme. Ela conta: “sabe quem está bem aqui, sob nossos pés? O vestiário do visitante”. Ela junta o grupo –umas 50 pessoas – e pede que gritemos “gol”. O eco é considerável. Fico imaginando 53 mil torcedores (a capacidade da Bombonera) vibrando, sem parar um minuto. Infernal. Bem me lembro deles na final da Libertadores de 2003, no Morumbi (lá estavam só uns quatro mil). Daniel finalmente pisa no gramado, numa área reservada e protegida, perto do escanteio. Enfia a cabeça na grade. Faz menção de avançar. “Vou invadir”, avisa. “Brincadeirinha”, completa. Saímos do estádio, passamos pelas piscinas e pelo ginásio. Paramos na frente dos vestiários. A porta para o dos visitantes é pequena – “para mostrar que não há ninguém com a grandeza do Boca e que os adversários devem se curvar ao entrar aqui”, explica a guia; já a dos xeneizes é gigante, imponente, para marcar mesmo quem manda na bagaça. Na zona mista, diante da placa com os patrocinadores do time, finjo que sou o repórter a entrevistar o craque da partida – Neymar Jr, claro, também conhecido como Daniel. Das cadeiras azuis opostas ao retão da sociais, onde tirei uma foto em 1997 que é minha imagem nas redes sociais e no Blog (e que agora Elisa conseguiu repetir, ficou bem parecida, quinze anos depois), é possível ver o camarote do Maradona, que custou 350 mil dólares, com direito de uso de dez anos (a encerrar-se em 2014). A guia desafia: “qual era a cor da primeira camisa do Boca?”. Eu respondo: “rosa”. Como era motivo de piada entre os adversários, que chamavam os boquenses de maricóns, resolveram adotar o branco e preto. Mas já havia outra equipe alvinegra na capital. Não queriam cópias. Os fundadores do time foram então para o porto e decidiram: adotaremos as cores da bandeira do primeiro navio que atracar. “Qual o país?”, provoca a guia. “Suécia”, manda Daniel, de bate e pronto. O azul e o amarelo entrariam para a história do futebol. Ainda deu tempo de, nas arquibancadas dos visitantes, abraçar o pequeno, fazer um “poropopó” e cantar “sou alvinegro da Vila Belmiro... nascer, viver e no Santos morrer é um orgulho que nem todos podem ter”. Elisa arriscou um “vai, Corinthians!”. Alguém repetiu o grito; outro disse “vai, timinho”. Não poderíamos sair do estádio sem as tradicionais fotos promocionais. Na primeira, abracei a imagem projetada de Neymar, perto dos meninos. Elisa ficou ao lado de um Ronaldo Fenômeno virtual. Na outra, posamos os quatro com a Taça Libertadores. Eu, Luiza e Daniel seguramos a bandeira do Santos; Elisa, a do Corinthians. Detalhe: o grupo que fez pose na nossa frente tirou a foto com a bandeira do Santa Cruz. Sim, o Museu tinha o manto sagrado do tricolor pernambucano. Sensacional. “Foi muito mais legal do que eu esperava”, comemorou Daniel. Fecham-se as cortinas. Com o sol a pino, caminhamos por La Boca, com as inconfundíveis casas coloridas – que, narrou o taxista que nos trouxe, têm cores variadas porque os moradores do bairro, que trabalhavam no porto, aproveitavam os restos de tintas que sobravam das pinturas dos navios, pouco importando se pincelavam amarelo, verde, azul, vermelho. Depois de driblar vários daqueles locais que ficam nas ruas a oferecer fotos, lembranças, pratos para o almoço para os turistas – seguíamos dizendo “gracias, no, gracias, no...”, chegamos ao Caminito, os cem metros mais famosos da Argentina, como definem os argentinos. O movimento era intenso, algo que não vimos em 1997, quando estivemos na Boca em um domingo de não tropeçar nem em mosca na rua. Em compensação, naquele ano, bem na ponta do bairro, a observar as primeiras obras de recuperação de Puerto Madeiro, eu e Elisa comemos um suculento bife à milanesa, que podia ser cortado com colher. Ainda na Boca – e é uma realidade triste, que se espalha por Buenos Aires -, encontramos várias casas e apartamentos fechados, com placas de “vende-se” ou “aluga-se”. Os jornais de hoje revelam que o movimento do mercado imobiliário na capital caiu 43% em 2012. Sinais da crise. Se a manhã fez a alegria do moleque, a tarde ofereceu-se para realizar o sonho de Luiza: conhecer o Museu Evita, inaugurado em 2002. “Foi quando eu nasci”, lembra a pequena. O casarão com três andares, no bairro de Palermo, foi uma das sedes da Fundação Evita, nos anos dourados do peronismo, onde eram recebidas mulheres vindas do interior do país, com problemas de saúde ou à procura de emprego. O interior da residência, com chão de longos e largos tacos de madeira, ladrilhos vermelhos, azulejos decorados, cômodos espaçosos e enormes e pesadas portas, lembra a casa do meu bisavô, na rua Cubatão, bairro do Paraíso, onde passei muitas noites de réveillon, quando criança. É um labirinto histórico, em ordem cronológica, onde vamos descobrindo vários ambientes (há segredos, às vezes é preciso pedir ajuda para os funcionários, embora um deles dormisse profundamente, retinho, sentado num banquinho...). Narram tanto a dimensão privada (vestidos, sapatos, objetos de cozinha, imagens religiosas) quanto a vida pública (obras, ações populares, discursos políticos) da mãe dos descamisados. No final, é impressionante não só ver as imagens das multidões nas ruas, a chorar a morte da heroína, mas também acompanhar com minúcias o desenrolar dramático do sequestro do corpo dela. Inicialmente, e depois de 14 dias de funerais, o caixão ficou abrigado na sede da Central Geral dos Trabalhadores, até que se conseguisse construir um mausoléu especial. Com a queda de Perón, em 1955, os militares golpistas roubaram, esconderam e mandaram o caixão para a Itália, onde foi enterrado com nome falso (Maria Maggi de Magistris). O objetivo era evitar que Evita se transformasse em mártir do povo. Que bobagem... Foi somente em 1974, depois de muita luta da família e com o retorno de Perón ao poder, via eleições, que Evita voltou a Buenos Aires (o corpo foi inclusive mutilado), para finalmente ser enterrada no túmulo Duarte, no cemitério da Recoleta. Como observou Elisa, as ditaduras não brincam em serviço. Sobre o Museu, arremata Luiza, que não perdeu a chance de fazer anotações e de tirar fotos para o livro que está escrevendo: “aprendi um montão de coisas”. Na volta para o hotel, metrô com direito à música ao vivo. Um artista urbano tocava tango. Começou com “La Cumparsita”. Andamos sete estações, da Praça Itália aos Tribunais, cerca de três quilômetros, algo parecido como ir da Vila Madalena ao Paraíso. O pessimista diria “só faltam quatro dias, a viagem está chegando ao fim”. Otimista, prefiro afirmar que ainda temos quatro dias para continuar conhecendo Buenos Aires. No quarto do hotel, os meninos brincam de Evita e o mordomo dela. Elisa tinha perguntado se, em castelhano, “batata da perna” é “papas de las piernas”.... Alguém sabe?



SÁBADO, 05/01 - "QUANTA GENTE ELES MATARAM"

Reverenciando a memória dos trinta mil desaparecidos e mortos pela ditadura militar

Choveu forte em Buenos Aires na noite de sexta-feira. Foi o suficiente para que os noticiários televisivos escancarassem a conhecida veia dramática argentina – “trovoadas, relâmpagos e dilúvio”, anunciavam. Exagero, posso garantir. Aproveitei para terminar a leitura de “O Palácio de Inverno”, de John Boyne, o mesmo autor de “O menino do pijama listrado”. O romance, escrito com maestria, intercalando passado e presente, mistura história, mistérios, agonias e amores proibidos para sugerir o que poderia ter acontecido à princesa Anastácia, filha de Nicolau II, último czar da Rússia e assassinado pelos revolucionários bolcheviques em julho de 1918. Enquanto a narrativa transcorria em São Petersburgo e nas vilas russas com temperaturas abaixo de zero, eu suava em bicas no quarto do hotel, com o termômetro perto dos trinta. Depois da chuva, o calor voltou, abafado, sem piedade. Foi uma daquelas madrugadas de sono picado, a virar na cama, levantar de tempos em tempos para tomar água (coca-cola bem gelada, no meu caso), a implorar por uma só brisinha que fosse. O ar condicionado estava no máximo, mas é antigo, não resfria o ar. Acho até que ajuda a piorar as coisas. Mesmo com as janelas abertas, as cortinas nem se movimentavam. Foi de amargar, como diria meu avô. Dormimos em uma estufa. No café da manhã, ao concretizar que a viagem está chegando ao fim, Daniel decretou: “não vamos embora!”. Elisa entrou na brincadeira: “resolvemos ficar mais dez dias”. Luiza não se fez de rogada: “quero mais um mês”. A mãe replicou: “então vamos ter que alugar um apartamento”. Para refrescar – as primeiras horas da manhã já não deixavam dúvidas de que seria mais um dia de ferver -, o pequeno achou por bem tomar banho frio. Em três minutos, estava fora do box, praticamente seco. Ralei com ele: “não é possível, você não tomou banho. Pode voltar”. Com toda a honestidade do mundo, ele reconheceu: “nossa, só não passei sabão e não lavei o pinto. Esqueci das partes mais importantes, né, pai?”, com um sorriso pilantra que também denunciava o “lapso de memória”. Chegamos ao Parque da Memória depois de transitar por “rota alternativa” – um tanto porque o taxista não sabia qual era o caminho mesmo; o outro, porque o espertoman (mais uma espécie) investiu no trajeto mais longo, a quarenta por hora, para valorizar o passe e fazer rodar o taxímetro. O Parque é maravilhoso, uma imensa área livre e aberta, inaugurada por completo em 2010, a prestar homenagem às vítimas do terrorismo de Estado. Simbolicamente, está localizado perto da Cidade Universitária, às margens do Rio da Prata, onde foram despejados muitos dos jovens torturados e assassinados pela ditadura civil-militar que se instalou no país em 1976, depois do golpe que derrubou Isabelita Perón. Há quatro muros enormes de mármore escuro (três unidos, com o quarto mais afastado) onde estão escritos os nomes dos mortos e desaparecidos no período, obedecendo ordem cronológica. “Nossa, quanta gente eles mataram”, impressionou-se Daniel. “Trinta mil pessoas, filho”. Um massacre. Fiz uma conta rápida, observando os muros: apenas em 1976, a Argentina conheceu cerca de 3.500 assassinatos políticos, crimes de Estado. Uma tragédia. Apesar da importância, o Parque parece ainda pouco conhecido ou procurado pelos portenhos. Durante quase hora e meia, estivemos praticamente sozinhos, a ouvir o som das águas do rio a bater nos rochedos. Na sala PAyS – “Presentes, Ahora y Siempre” -, não contive a veia de repórter e perguntei ao monitor: “é sempre assim, tão vazio?”. Ele balançou a cabeça, sem graça, com evidente sorriso amarelo: “hoje é sábado. O movimento diminui mesmo nos finais de semana. Mas durante a semana, recebemos muitas escolas”. Não convenceu. A sala funciona como uma espécie de centro de documentação, onde são realizadas exposições e seminários. Nela é ainda possível encontrar arquivo histórico e biblioteca. Fichas produzidas pela censura militar expostas no espaço mostram quais as obras perseguidas e proibidas pelos broncos golpistas: todas aquelas que tivessem no título, por exemplo, as palavras “liberdade”, “esperança”, “crítica”, “sonho”, “Chile”, “Cuba” e “Nicarágua”. No centro, um carro queimado, a sugerir os atentados cometidos contra militantes de esquerda. Obras e intervenções artísticas estão espalhadas por vários pontos do Parque – como uma escultura em enorme bloco onde se lê “pensar es um hecho revolucionario”. Em mim, os sentimentos se misturaram, confusos: ao mesmo tempo em que fui tomado por sensação de paz e liberdade, por conta do silêncio, da reflexão e da contemplação, estava incomodado, parecia que carregava uma tonelada nas costas, em função das lembranças e histórias ali guardadas. Talvez esse tenha sido mesmo o propósito dos idealizadores do Parque. Não é um passeio turístico como outro qualquer. Mas é visita obrigatória. No livro dos visitantes, escrevi: “viemos do Brasil, cidade de São Paulo, para reverenciar a memória daqueles sonhadores que tombaram lutando por democracia. Obrigado”. Como sempre dizem os argentinos (aliás, estava escrito na grade de proteção de uma dos braços de asfalto do Parque que avança sobre o Rio da Prata): “ni perdón, ni oivido”. Solidários ao sem esquecer nem perdoar, na quinta-feira, final de tarde, já havíamos acompanhado os momentos derradeiros de uma manifestação liderada pelas Avós e Mães de Maio, na escadaria da Suprema Corte. Além de exigir a aplicação da Lei de Meios, cobravam da Justiça mais agilidade no julgamento de muitos processos de desaparecimentos e mortes que ainda não foram resolvidos. Uma das discussões mais relevantes nos últimos dias, em Buenos Aires, diz respeito a um churrasco convocado e organizado pelo Ministério da Justiça, como confraternização de final de ano, e realizado na sede da ESMA (Escola de Mecânica da Armada), um dos centros clandestinos que foi símbolo da tortura militar. As entidades de direitos humanos protestam duramente contra a festa, indignadas com o que chamam de insulto e desrespeito à memória dos militantes que por lá passaram, a sofrer brutalmente. Exigem a renúncia do Ministro da Justiça, Julio Alak. A líder das Mães de Maio, Hebe de Bonafini, saiu em defesa de Alak, afirmando não ver problema no convescote que aconteceu na ESMA. Triste sinal de alinhamento automático e não crítico com o kirchnerismo. Nosso roteiro deste sábado recomendava ainda visita ao estádio do River Plate, o time vermelho e branco da cidade, que se define como o “clube dos milionários”. Ainda tocados pela força do Parque da Memória, iniciamos uma caminhada (mais uma, foi o que mais fizemos por aqui) de uns três quilômetros, que duraria mais de hora. Pulamos poças d’água, pisamos na lama, Luiza quase atropelou uma pomba já morta, Elisa desviou de cacos de vidro quebrados no chão... Atravessamos uma passarela onde havia um trecho praticamente alagado – tivemos que quase nos arrastar pela grade, até alcançar uma grande, enorme, gigantesca e infindável avenida – a Leopoldo Lugones. Andamos. Andamos. Andamos um pouco mais. E mais. Já estávamos quase nos arrastando. O estádio ficava cada vez mais perto – mas não chegava nunca. Daniel cambaleava, pedindo colo. Luiza não conseguiu segurar: “minhas pernas estão doendo. Pai, o que eu te fiz para você me castigar assim?”. Sem emoção não tem graça. Na verdade, erramos feio mesmo. Achamos que era mais perto. Tropicando, exaustos, chegamos. Eu e Daniel ainda reunimos forças para a visita monitorada. As moças resolveram descansar. A primeira metade do tour é bem burocrática – tivemos acesso apenas às arquibancadas especiais, onde o guia gastou mais de dez minutos para fazer quase uma palestra, numa fala acelerada e pouco interessante. Recusou-se a falar o nome do rival Boca Juniors (se o fizesse, alertou, teria que em seguida cuspir no chão) – referia-se aos xeneizes apenas como “aqueles que ficam perto de Caminito”. O estádio Monumental de Nuñez (nome oficial Antonio Vespucio Liberti) tem capacidade para 65 mil torcedores e é muito parecido com o Morumbi, em São Paulo; projeta-se na diagonal, em três níveis de anéis, com a torcida longe do campo. Daniel parecia enfastiado. Mas a empolgação reapareceu quando tivemos acesso ao vestiário dos visitantes (onde ele simulou novamente contusão, pedindo atendimento médico). Quando começamos a percorrer os túneis que levam ao campo, estava novamente elétrico, como se fosse disputar final de campeonato. Entrei na onda. Na boca do túnel, topo da escada, disse: “bom jogo, Neymar”. Ele entrou no gramado correndo – aqui, sem restrições ou áreas de separação, pudemos circular livremente. Pediu “pai, passa a bola”. Começamos um divertido futebol imaginário. Ele tocava, apresentava-se na frente para receber, cruzava. Fez o primeiro gol depois de pedalar e tocar no canto; o segundo foi de cabeça. No terceiro, para fechar com chave de ouro, mandou ver numa linda bicicleta. Em todos, saiu comemorando, pulando e socando o ar de baixo para cima, marca registrada do craque do Santos. Na volta para o vestiário, agradeci: “valeu, Neymar. Jogou muito. Agora só falta um jogo para sermos campeões”. Ele achou o máximo. As últimas energias das pernas dos meninos foram reservadas para uma rapidíssima passagem por Belgrano, onde estivemos no bairro chinês (espécie de Liberdade), na Praça Manoel Belgrano (com a obrigatória feirinha de final de semana) e na Igreja da Imaculada Conceição. Chega... Não dava mais. Estávamos colocando os bofes para fora. Pegamos o metrô. Despencamos nos bancos – ufa, ainda bem que havia lugares disponíveis para sentar! Meia hora de viagem, doze estações, mesma linha verde, quase de ponta a ponta. Pesquei várias vezes. Chegamos ao hotel esbodegados – ou não. Porque, depois de mais um revigorante banho frio (fiscalizei de novo, lavou tudo direitinho), Daniel voltou a ser o coelhinho da pilha Duracell. E, usando uma bexiga que a mãe trouxe e encheu, transformou o quarto num campo de futebol. Estão se enfrentando Alemanha e Itália. Final da Eurocopa, em plena capital argentina.



DOMINGO, 06/01 - FESTA EM SAN TELMO. TIRAMOS ATÉ FOTO COM A MAFALDA


O sujeito que trabalha na portaria do hotel em que estamos é muito solícito, prestativo ao extremo. Eficiente. Tudo o que você precisa... ele ignora e não resolve. No início da temporada, pedimos a tampa para fechar a banheira. Estamos esperando até agora. Solicitamos a troca da chaleira do quarto, que estava suja. Se dependesse dele... Passa o dia com a orelha grudada no telefone. Os hóspedes vão chegando, quase se debruçam no balcão, tentando chamar a atenção, e o rapaz continua lá, cara de paisagem, como se não fosse com ele. Pode chamar, bater palma, tocar o sininho, plantar bananeira. Tudo é em vão. Faz uma baderna com as chaves dos apartamentos – jamais as coloca nas devidas caixinhas com os números. É também a mais fina flor da educação, um lorde, deve ter diploma master em generosidade, com mestrado em fineza e doutorado, no exterior, em gentileza. Talvez esse seja até mesmo o sobrenome dele. Só pode ser. Porque quando você diz “olá, bom dia, tudo bem, como vai, boa noite”, fica no vácuo, como dizem os meninos. A resposta é o silêncio, nem olha na sua cara. É sempre assim, mas sempre mesmo. Nem sei como é a voz do hermano. Melhor tentar com uma estátua, um boneco. Nós o apelidamos de “Barba”. E hoje descobrimos que os colegas do hotel o chamam de “Peluco”. Elisa disse que vai arriscar passar pela portaria sorrindo e dizendo “vá à mierda, vá à mierda”, acenando, só para arriscar ver qual será a reação. Ao menos o ar condicionado do quarto voltou a funcionar a contento, aliviando o calor – pulamos o Barba (ou Peluco, se preferir) e recorremos a outro funcionário, claro. O porteiro-modelo deve estar no telefone agora, muito ocupado. Deixamos o fulano de escanteio e passamos o domingo em San Telmo, bairro muito bacana, cheio de vida, com antiquários, albergues, o mercadão inaugurado em 1897, restaurantes, cafés e os típicos sobrados antigos (séculos XVIII e XIX) com sacadas, alguns recuperados e pintados recentemente, outros bem judiados e castigados pelo tempo. Em muitos, placas de “vende-se” e “aluga-se”, inclusive em lojas. As ruas de paralelepípedos – um pouco menores, quase quadrados – ainda conservam os trilhos de bonde e aos domingos, são tomadas pelas pessoas. Assim deveria se dar sempre, em qualquer tempo e espaço – é com gente na rua que qualquer cidade se inventa e se reinventa. Elisa diz que o lugar lembra Santa Teresa, bairro da boemia carioca. “Se morasse em Buenos Aires, moraria em San Telmo”, diz ela. A feirinha que acontece aos domingos é descomunal e se esparrama por vários quarteirões, em rede, a perder de vista, literalmente. Estava abarrotada, um formigueiro humano mesmo, de dar trombada e vez ou outra parar para aguardar a fila andar. Nas barraquinhas, você acha o que quiser. Numa ruela transversal, estava montada uma espécie de feira alternativa, a representar movimentos sociais e populares. Elisa começou a cantar a Internacional Socialista – “de pé, ó vítimas da fome” - e disse “vixi, é aqui que o papai vai se acabar”. Me dei de presente uma camisa do Che, para renovar a coleção verão 2013. Perto dali, Luiza se encantou com meias graciosíssimas da Mafalda. Na praça, Daniel namorou preciosos soldadinhos de chumbo, a usar diferentes uniformes e representar exércitos distintos: o napoleônico, o da guerra de Independência argentina, o nazista, o russo. Quando deu de cara com os templários com a cruz-símbolo, arriscou: “olha, pai, eles torcem para o Vasco”. Arrematou quatro miniaturas lindíssimas, que cabem numa caixinha de fósforos. Objetos de colecionador, que devem ser cuidados com muito carinho, dissemos. A mãe ficou hipnotizada por avental e chapéu de cozinheira, ilustrados novamente pela Mafalda. A imagem da menina que encanta adultos e crianças, aliás, a lembrar que “o cassetete é a borracha de apagar ideologias”, é onipresente no bairro. Tiramos inclusive fotos abraçados com a famosa estátua dela, roupinha verde, na esquina da Defensa com a Chile – foi perto dali que o cartunista Quino viveu parte de sua vida, a criar as tirinhas e histórias que correriam o mundo e imortalizariam a garota. Num quadro pregado na parede externa de uma casa, era possível ler: “Salvemos a democracia. Mafalda para presidente”. Os sons vinham de todos ao cantos, dando contornos a uma música com vários tons e sotaques. O tango predominava, obviamente, com os tocadores de bandoneón, mas havia também violeiros e grupos arriscando músicas folclóricas, andinas, românticas, pop internacional, jazz. Aos trancos e barrancos, pisando um no pé do outro, rindo muito com as trapalhadas, eu e Luiza dançamos “La Cumparsita”, em plena Defensa. Ficou meio tosco, vá lá, muito mais por culpa minha que dela, que tem gingado e dança bem; mas, com um pouco de esforço, dava para identificar que era tango. Um pequeno comerciante de calçadas fazia bolas de sabão bem grandes, do tamanho de pelotas de futebol. Saí correndo e estourei uma com uma bica. Olhei para o Daniel e desafiei: “viu o sem pulo lindo?”. Cutuquei a onça com vara curta. Ele ficou à espreita, olhando de canto. Na bola seguinte que saiu, não deixou chegar até mim, deu um tapa. “Não vale, foi com a mão”, fulminei. Aticei ainda mais. Na seguinte, deu chute lindo, no ar. Estouro, ponto. Para arrematar, explodiu mais uma bolha, desta feita de costas, de calcanhar. Foi o lance coice de mula. Estava satisfeito. Perto da igreja, um vendedor com apenas dois dentes na frente e vozeirão de locutor de rádio – figuraça – gritava “olha o ovo louco, olha o tomate louco”. Nas mãos, um ovo e um tomate que pareciam ser de plástico. De repente, sem avisar, ele atirava os dois numa mesinha. O tomate virara molho – e em segundos voltava a ficar durinho e vermelho, intacto. O ovo estourava e se dividia em clara e gema, esparramados, como se tivesse sido frito; num piscar de olhos, voltava a formar casca. Vários turistas compraram. Por indicação dos queridíssimos amigos Marcello e Renata (saudades...), almoçamos no El Desnivel, um casarão antigo e comprido, bastante charmoso, com vários ambientes, garçons atenciosos, vinho saboroso e barato e fartíssimos e deliciosos pratos de carne, com preços para lá de razoáveis. Empanzinados, e enquanto procurávamos lembrancinhas para os sobrinhos (regalos da Mafalda, claro), começamos a ouvir batidas de samba. Eram três caras, um deles com a camisa do Fluminense, com surdo e tambores, a puxar o cordão, que de fato se formou. Descemos a ladeira sambando, muita gente. Luiza virou porta-bandeira. Muitos paravam para ver e aplaudir, mas vi também alguns rostos com pontos de interrogação, sem saber o que estava acontecendo. Na praça, começou a tocar “não chores por mim, Argentina”. Com o batuque que ecoava do outro lado, tivemos uma mistura que pode ser considerada um samba para Evita – ou se, preferirem, é possível dizer que Evita caiu no samba. Assim é San Telmo, na sua mais completa tradução, como cantaria Caetano. Quando chegamos de volta ao hotel, mais uma vez cansados, Daniel lembrou da promessa, tirou da cartola e cobrou: “mãe, é agora, o Barba está na portaria. Vai lá, vai lá. Fala aquilo para ele...”.



SEGUNDA-FEIRA, 07/01 - HORA DE PARTIR. ATÉ BREVE, BUENOS AIRES. ROMA, AÍ VAMOS NÓS!


Último dia em Buenos Aires. Bate certa melancolia, uma vontade de esticar. É aquela coisa de dizer para você mesmo a todo instante “não esqueça, ainda temos 24 horas para aproveitar”, muito embora a cabeça já comece a programar e colocar na fila um sem número de tarefas que precisaremos começar a cumprir assim que pisarmos no aeroporto de Cumbica – contas a pagar, novas disciplinas a preparar, material e livros escolares dos meninos a providenciar, os frilas, carro para deixar na revisão anual. Pavimentando o caminho de volta, vi hoje na WEB as notícias sobre a guarda municipal que agrediu os skatistas na Praça Roosevelt. Lamentável, mas não surpreendente. Faz parte da cultura, da formação, espelha um tantinho do desejo de parcela da população paulistana. Li também artigo de Paulo Moreira Leite sobre a condenação e a posse de José Genoíno, análise de Tales Ab’Saber sobre política e espetáculo e artigo de Vladimir Safatle a respeito dos desafios do lulismo. Estou voltando. Por aqui, no apagar das luzes, ainda deu tempo para o Barba – também conhecido como Peluco – cometer mais uma trapalhada, só para não perder o costume. Quando voltamos do almoço, por conta da zorra que faz nas caixinhas da recepção, ele nos deu a chave errada do quarto. Novamente enfrentando calor de quase 40 graus, andamos, sem rumo e sem compromisso, sem preocupação com o relógio, pela Lavalle e pela Florida, olhando as lojas, as pessoas que passavam, as atrações do cinema, os caras que ficam nas portas de prédios antigos a gritar “dólares, reais, câmbio”. Daniel faturou os uniformes de times argentinos que tínhamos combinado – escolheu os do Boca e do Independiente, completinhos, até com nome nas camisas. Um dos donos da loja resolveu submeter o pequeno a um teste – mostrava os escudos e perguntava que equipe era. Daniel acertou todos – e ganhou dois meiões como regalos. Empolgado, o hermano sacou a pergunta de um milhão de dólares: “quem é melhor, Messi ou Neymar?”. Alguém tem dúvida sobre a resposta do pequeno santista? “Neymar”, devolveu, sem pestanejar. E é assim mesmo. Se já conhecesse e pudesse usar a poesia de Fenando Pessoa como argumento, Daniel responderia “o Messi é melhor que o Neymar. Mas o Messi não é o melhor jogador do mundo porque não é o camisa 11 do meu time”. No restaurante, no almoço, surpresa, fato inédito: o garçom anotou o pedido! Foi a única vez que vimos isso, porque os caras, não importa quantas mesas estejam atendendo, não interessa se o lugar está lotado, decoram os pratos e as bebidas solicitadas, sem erros ou trocas. Dá certinho, acreditem. O que você pediu desembarca na sua mesa. Outra característica dos portenhos que nos chamou a atenção: quando eles dizem “não”, é “não mesmo”, com toda a ênfase possível. Dizem “NO” forte, grave, em alto e bom som, para que não pairem dúvidas. Há ocasiões em que soa até agressivo. Adotei a prática com os meninos: quando quero agora dizer que algo está errado, recorro a um sonoro e argentino ‘NO’. Recuam e param na hora. Sem tabus, os homens em Buenos Aires se cumprimentam singelamente com beijos. Naturalíssimo. Mas provavelmente seria motivo de chacota ou de olhares tortos no Brasil. Em Buenos Aires, não tem jeito, em algum canto você vai tropeçar em uma manifestação, uma passeata, um protesto. A sociedade é politizada. E a crise acirrou ânimos – dados oficiais divulgados hoje mostram que 30% da população urbana da Argentina (pouco mais de onze milhões de pessoas) vive com 35 pesos (cerca de 15 reais) por dia. Para onde olhar, vai também encontrar um café. Uma livraria. Um parque. Um kiosko – onde vendem-se doces, alfajores, balas, bugigangas, chocolates, água, refrigerantes. Guloseimas. Os caras respiram futebol – e, a exemplo do que acontece no Brasil, a crônica esportiva argentina é pós-graduada em fomentar polêmicas e novelas e em tratar boatos como notícias. O “fico ou vou-me do Boca Juniors” vivido por Riquelme rendeu horas de matérias e infindáveis análises e debates durante a semana, além de uma contagem regressiva feita por um dos canais televisivos locais, referindo-se ao prazo que o jogador havia estabelecido para anunciar sua decisão. No final da semana passada, os jornais impressos bancaram que o atacante Martínez, do Corinthians, teria sido vendido ao San Lorenzo. O negócio não só não se confirmou, até agora, como hoje os mesmos cadernos esportivos, sem qualquer constrangimento ou pedido de desculpas, mudam o discurso e garantem que Martínez está apalavrado com o Boca. Olhar sem compromisso científico e meramente impressionista: para além dos enfoques e versões (se são mais ou menos governistas), os telejornais daqui são mais analíticos que os nossos. Escapam do padrão “um minuto e meio para cabeça (apresentação) + off (texto lido, coberto por imagens) + passagem do repórter + breve declaração da fonte”; via de regra, as reportagens chegam facilmente aos cinco minutos e boa parte delas ocupa um bloco inteiro do noticiário. Refiro-me mais especificamente ao canal “Todo Noticias”, do Grupo Clarín, e ao Canal 7, emissora pública, os que pude acompanhar mais de perto. Nos jornais impressos, há também muito mais texto, com narrativas mais profundas e contextualizadas. Na eleição dos “top gastronômicos”, ficamos assim: La Americana, na Corrientes, leva o prêmio de melhor empanada. No Güerrin, também na Corrientes, comemos a melhor pizza. La Victoria, na Recoleta, e El Desnivel, em San Telmo, surgem como vencedores no “tudo é bom” – vinho, massas, carnes, papas fritas, cerveja gelada, preço belezinha, ambientes agradáveis, garçons atenciosos. Por fim, destaque e menção honrosa ainda para La Churrasquita, novamente na Corrientes, para quem aprecia um bom bifão. Sobre os passeios, Daniel lista o Cemitério da Recoleta, La Bombonera e o zoológico de Luján. Luiza fica com Museu Evita, Casa Rosada e Luján. Elisa vai de Museu Evita, La Bombonera e o bairro da Recoleta. Eu fico com Parque da Memória, La Bombonera e Museu do Bicentenário da República. Em tempo: San Telmo foi unanimidade, o campeão dos campeões. E todos elegemos o Barba-Peluco o funcionário da década! Agora é hora de arrumar as malas. Amanhã, já estaremos em São Paulo. Foi uma temporada espetacular. Vou sentir saudades – também de sentar para escrever os relatos. De coração, muito agradecido a todos os que tiveram a paciência de ler e de acompanhar a série de aventuras. Gostamos tanto que formatamos o projeto “Finais de ano em dez capitais do mundo”. Depois de 2012-13 em Buenos Aires, a ideia é virar 2013-14 em Roma; se aqui foi na Praça do Obelisco, lá será ao pé do Coliseu, na Fontana di Trevi. Vai dar certo? Sei lá. É sonho, desejo, projeto. Tomara que dê. Quem sabe no final de dezembro eu não sente para escrever os “Relatos de Roma”... Até breve. Abraços e beijos!