Não sou especialista, mas, como
curioso cidadão do mundo, tenho procurado ler um tanto a respeito da
internação compulsória de dependentes químicos, prática agora assumidamente incentivada pelo
governo paulista (sob os movimentos silenciosos e cúmplices do Ministério da Saúde).
De tudo o que consegui reunir,
me parece que há consenso médico: em situações-limite, extremas,
complicadíssimas, torna-se necessário recorrer à compulsória. Mas é isso:
exceção da exceção, último recurso, não regra. Não se vai sair por aí
internando qualquer um e todo mundo. Deve ser medida avaliada com
responsabilidade por qualificada e bem formada equipe multidisciplinar - e a
mesma dimensão de atendimento multiprofissional e de longo prazo deve ser posteriormente
garantida aos usuários nessa condição.
O intuito, aqui, é permitir que
a pessoa que, por diversas e diferentes razões, está mergulhada na merda
absoluta possa ter resgatada sua condição humana, para então ter a prerrogativa
de decidir se quer ou não continuar o tratamento. É uma questão de direito
humano, de cidadania, a ser considerada a partir do viés de saúde pública. A
própria Organização Mundial de Saúde (OMS) estabelece que “em situações de crise de alto
risco para a pessoa ou outros, o tratamento compulsório deve ser determinado,
sob condições específicas e período especificado por lei”.
Antonio Geraldo da Silva,
presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, escreve hoje na Folha que
"há uma necessidade premente de que as autoridades se responsabilizem
pelos doentes mentais. O débito do poder público com essas pessoas é
gigantesco. O dependente de crack, muitas vezes, é portador de algum transtorno
mental e carece, antes de qualquer coisa, de atendimento médico. Se a
internação à força for apenas o início de um processo de tratamento para
aqueles que precisam de atendimento e não o têm, aí sim teremos uma iniciativa
correta por parte do governo".
Até mesmo Dartiu Xavier,
psiquiatra, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e uma das
principais vozes que se levanta contra a compulsória, reconhece que há momentos
em que ela se impõe. “Todo
uso de drogas pode trazer algum risco de vida, mas a internação compulsória é
um dispositivo para ser usado quando existe um risco constatado de suicídio. A
outra situação é quando existe um quadro mental associado do tipo psicose,
seria quando a pessoa tem um julgamento falseado da realidade: se ela acha que
está sendo perseguida por alienígenas ou se acredita que pode voar e resolve
pular pela janela. Nessas situações de psicose ou um risco de suicídio é quando
poderíamos lançar mão de uma internação involuntária”, afirmou, em entrevista
publicada pela revista Caros Amigos.
O xis
da questão: a mentalidade e o propósito da administração estadual tucana nesse
caso - em mais esse caso - são bem outros: limpeza social. Higienização. Prisão.
Vistos pela parcela conservadora da sociedade como a escória que não tem mais
jeito, os farrapos fedorentos, violentos, ameaçadores, monstros, bandidos, os
usuários precisam ser rapidamente retirados das ruas porque enfeiam a paisagem
e incomodam as elites diferenciadas. O sujo deve voltar a ser limpo, cartão
postal a ser vendido aos turistas e admirado pelos puros nativos. Até porque tais esclarecidos limpinhos têm plena certeza de que sabem, sempre, o que é melhor para os outros. São autoritários, absolutos, donos da verdade. Há nessa postura também evidente componente moralista. Vamos chamar a tropa de choque e recorrer às algemas.
A lógica da truculência
prevalece sobre a perspectiva do resgate humanista. Os usuários são tratados como caso de
polícia, o lixo a ser varrido, a qualquer custo, à força, para debaixo do
tapete. É medida estética, pontual, desconectada de tantas outras iniciativas relevantes. Para esse raciocínio tão simplista quanto reacionário, se esse zé
povinho noiado estiver longe das ruas, escondido, confinado, vivendo em guetos,
já terá sido suficiente, uma política de sucesso. Ainda que não tenham sido
desenvolvidos esforços para ressocializá-los. Ainda que a dimensão de saúde pública tenha sido ignorada. O que estão a pedir esses
iluminados é “afastem da gente esses animais selvagens e desqualificados”.
Continua Antonio Geraldo da
Silva: “a internação requer indicação médica, quer seja voluntária,
involuntária ou compulsória. Caso contrário, a iniciativa não passaria de uma
limpeza urbana, uma triste eugenia”. Dartiu Xavier é ainda mais incisivo: “na verdade, o que vai acontecer é
que isso vai funcionar – funcionar entre aspas porque não será eficaz – nas
populações carentes. Porque quem é classe média e alta e tiver fumando crack na
rua, vai ser pego, mas o papai vai colocar ele numa clínica chique, vai ficar
uma semana, e vai para casa depois. Então é um sistema bastante questionável do
ponto de vista ético, porque vai ser aplicado nas populações "indesejáveis".
Ao patrocinar a internação compulsória de inspiração e natureza
policialescas, o governo paulista está a reforçar o “danem-se os dependentes
químicos, às favas com a saúde pública”. O importante mesmo é prestar contas aos apelos e à grita dos adeptos
do “prende e arrebenta”, que ficam alegres e comemoram. Em movimento de mão dupla, e satisfeita com esse
respaldo, a administração pública dorme tranquila.
O tema é indigesto. E, infelizmente, tem revelado mais os preconceitos de classe do que qualquer outra ação, ou intenção, de terapia e reabilitação.
ResponderExcluirSeu blog é óptimo,gostei dou-lhe meus parabéns.
ResponderExcluirCom votos de grandes vitórias.
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Sou António Batalha.