domingo, 14 de julho de 2013

E ELES SÓ QUERIAM DORMIR...

Crônicas da classe média paulistana


Apagou a luz perto de uma e meia da madrugada, quando o livro já estava chegando ao fim, mas os olhos não conseguiam mais ficar abertos e as letrinhas se transformavam em manchas embaralhadas e incompreensíveis. Dormiu rápido, profundamente. Estava precisando descansar. Acordou num sobressalto, assustado, uma hora depois, com uma música que vinha de algum lugar muito próximo, mas muito perto mesmo, numa altura inimaginável para o horário. Era como se uma banda completinha, guitarras e baterias, estivesse tocando no quarto dele, bem em cima da cama. Espectador privilegiado do show. Só que não. O setlist começou com rock, passou rapidamente para um bate-estaca insuportável. Não aguentou. Levantou, ainda sonado, atordoado. Cambaleando, abriu a janela. Confirmou o que temia - era uma festa bem no prédio vizinho, muro com muro, na rua de trás. Luzes coloridas pulavam pela janela. As músicas eram acompanhadas por sons guturais, meio desconexos, arroubos de quem participava da festança. Num primeiro momento, ingênuo, imaginou que fosse só breve exagero, coisa passageira, um frenesi de felicidade de quem tinha chegado da balada e resolveu continuá-la, versão doméstica. "Vão diminuir, vai ser rápido". Não foi. A essa altura, a esposa já tinha também acordado, enfurecida. Teria de pular da cama às seis. Do outro quarto, a filha chamou: "pai, que barulho é esse? Não dá para dormir!". Chegou a pensar em bater no vizinho e dizer "meu querido, por gentileza, a diversão pode continuar, sem problemas. É só abaixar o som e todos ficamos felizes". Desistiu. Os donos da festa pareciam bastante alterados, em estado de transe, provavelmente o diálogo racional não seria possível. Lembrou que um número razoável de mortes por armas de fogo acontece por discussões banais entre vizinhos. Achou por bem recorrer à polícia (não à truculência estúpida da Tropa de Choque, obviamente, mas ao espírito comunitário da corporação, se é que existe), para garantir a lei do silêncio. Tentaram uma, duas, três vezes. Quem disse que eram atendidos? Só conseguiam 'falar' com aquelas malditas gravações de "aguarde na linha, etc, etc, etc...". Insistiram. Até que uma moça do 190, de carne e osso, respondeu. Alívio. Viva! Explicou a situação educadamente, pediu urgência, disse que tinha crianças em casa. "Não me importa que façam festa, é direito deles. Concordo. Só peço que mantenham o som num volume civilizado para todos. Não dá para o individual se impor ao coletivo", argumentou, num instante de iluminismo. A atendente avisou: 'vou transferir sua ligação para o setor de distúrbios'. Telefone mudo. Nada de resposta. Até que a ligação caiu. Assim aconteceu mais duas vezes. Na terceira, implorou: "não adianta transferir, a ligação vai cair. Não tem outro jeito, por favor?". A voz do outro lado da linha disse que o setor de barulhos estava sobrecarregado mesmo e sugeriu fazer a reclamação pela internet, num campo específico. Animou-se. Eram quatro da manhã. Correu e ligou o computador. Começou a preencher o formulário. Quase ao final, um aviso pulou na tela: a opção não estava disponível para ocorrências na capital, apenas para cidades do interior. Parecia de propósito - a música rolava cada vez mais alto. E, àquela altura, os festeiros se arriscavam a cantar ainda mais alto do que o som original. Zorra total. Desesperado, foi para a janela do quarto e berrou o mais alto que pôde: "Calem a boca!". Esperou reações solidárias de outros apartamentos - em tempos de movimentos e protestos, tentou dar a deixa para criar a resistência. Nada. Luzes apagadas nas outras janelas. Ninguém mais se movimentando. Dormiam o sono dos justos. Ou fingiam dormir. Ou tinham tampões poderosos nos ouvidos, todos. Talvez janelas anti-ruídos. Ou, finalmente, engoliam o sapo finamente, elegantemente, soberbamente, pois gente de bairro nobre não briga, não reclama, faz que está tudo bem, não arma barraco. São diferenciados. Renderam-se. O gigante dormia. Ficou puto, não havia mais o que fazer. O jeito foi armar acampamento e camas improvisadas na sala, onde, com todas as portas fechadas, a zoeira chegava de forma menos intensa. Lá colocaram os filhos para dormir. Ele deitou na cama dele mesmo, no quarto onde o show continuava quase ao vivo, a todo vapor. Em decibéis crescentes, o que entrava agora pela janela eram urros histéricos, palmas, gritos, comemorações, mais rap, pop, samba, MPB... Seleção eclética. Com a cabeça enterrada no travesseiro, começou a pensar no que tinha para fazer durante a semana, as contas a pagar, os filmes que desejava ver, os compromissos. Só conseguiu dormir mesmo quando os vizinhos, senhores absolutos da situação e do quarteirão, solidários e altruístas, provavelmente exauridos, decidiram que era hora de encerrar a diversão. Desligaram o som. O relógio do celular marcava cinco e meia da matina.    

2 comentários:

  1. Até parece que você tá fazendo uma reportagem aqui no meu prédio.

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  2. Um saco. E deviam ter vindo de pijama e cuia para a AmaralFerreiralândia, em protesto.

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