domingo, 7 de julho de 2013

AS REVOLUÇÕES NO EGITO

FLIP 2013

Foto - Divulgação FLIP


O escritor egípcio Alaa Al-Aswany, também especialista em relações internacionais, cravou em entrevista publicada neste domingo pelo caderno "Aliás" do jornal "O Estado de São Paulo" que a derrubada do presidente Mohamed Morsi não foi um golpe de Estado. "Democracia não é um livro sagrado. A sensação é de vitória. Morsi é um terrorista fascista. Estamos tomando de volta a revolução roubada. Estávamos frustrados, pois não víamos nada mudar. Agora tomamos as rédeas, ninguém poderá ignorar a vontade do povo", comemorou. Sobre o protagonismo do Exército nos acontecimentos recentes e a possibilidade de as Forças Armadas se perpetuarem novamente no poder, ele foi também categórico: "não aceitaríamos um novo regime militar nem por um único dia". 

Essa pergunta - o que se deu agora foi um golpe ou nova revolução? - não apareceu no debate sobre o Egito que aconteceu na FLIP. O filósofo Vladimir Safatle e o professor, tradutor e especialista em literatura árabe Mamede Jarouche aproveitaram experiências pessoais, escolheram outro recorte e dedicaram-se a tecer reflexões sobre a explosão popular inicial que tomou conta da Praça Tahrir, em janeiro de 2011, além de analisar os desdobramentos da revolta, um ano depois da queda de Hosni Mubarak, quando o sentimento de euforia já tinha sido substituído por nuvens de preocupações. A imagem que se usava era que a primavera fora substituída pelo outono ou até mesmo pelo inverno. Com essa opção de avaliação, e ainda que não tocassem diretamente na nova onda de protestos, os especialistas ajudaram a jogar luzes sobre o processo de convulsão social que tomou conta do Egito. 

Mamede presenciou o início da versão egípcia da Primavera Árabe. Estava na cidade do Cairo no começo de 2011, para aproveitar as férias e aprofundar pesquisas para a tradução do livro "As mil e uma noites", que estava desenvolvendo. As manifestações começaram na Tahrir um dia depois que o brasileiro desembarcou por lá. Ele confessa que foi pego de surpresa. "Estudo o mundo árabe antigo, até o século XIII, no máximo. Para mim, o século XIV já é por demais moderno. Não tinha a menor noção da ebulição vivida pelo país. Sinto-me envergonhado, mas eu era um completo alienado sobre aquele processo". 

Quando a praça foi tomada, a cidade parou. Bibliotecas e universidades fecharam as portas. Ficou perigoso transitar pelo Cairo. O hotel onde Mamede estava hospedado resolveu jogar a diária para 300 dólares, valor que ele se recusava a pagar. Depois de atravessar barricadas e tanques carregando malas, conseguiu alugar uma casa numa rua perto do Departamento de Polícia da cidade - segundo o proprietário, era o local mais seguro da capital. De sua janela, via os franco atiradores do governo postados em cima dos prédios no entorno, atirando contra os manifestantes. Define essas cenas como apavorantes. 

"Comecei a prestar atenção naquilo tudo. Notei uma insatisfação enorme no país, principalmente por conta da miséria. E, havia muitos anos, um movimento de jovens vinha se organizando nos subterrâneos, com muito cuidado, germinando. Naquele mês, ganhou as ruas". Segundo ele, a tática dos jovens era o enfrentamento direto com a polícia, atacando, emboscando e fugindo, em combates violentíssimos. "Fui espectador privilegiado de uma revolução que estava em curso", confirmou.

Um ano depois, em janeiro de 2012, Safatle viajou pela Tunísia, Egito e Palestina e entrevistou cerca de 60 pessoas, disposto a compreender as tensões, tendências e possibilidades assumidas pela Primavera. Os relatos dele foram publicados no caderno "Ilustríssima" da "Folha de São Paulo". "Fiz uma espécie de reportagem de ideias", define.

A primeira percepção que saltou aos olhos do filósofo foi a incomunicabilidade entre as sociedades ocidentais e o mundo árabe. Na imprensa daquela região, sempre que lia análises sobre os movimentos populares e seus desdobramentos, eram textos escritos por especialistas europeus (de origens diversas) ou estadunidenses. Raramente era ouvido algum pesquisador das universidades do Cairo ou de Túnis, por exemplo. "As narrativas sobre os impasses eram sempre construídas a partir de olhares de fora, deixando extravasar outros problemas e medos, que não especificamente os do mundo árabe. Dessa forma, alimentavam-se caricaturas", explicou.

O filósofo também entendeu com mais propriedade a importância das religiões para aquelas sociedades. Novamente de acordo com a visão ocidental, ali viveriam somente povos atrasados, fundamentalistas e reféns dos deuses e dos dogmas, como se a razão e a consciência iluminista terminassem exatamente no Estreito de Bósforo, que separa a Europa da Ásia, na Turquia. "A imagem que temos é que lá as religiões seriam obstáculos intransponíveis ao exercício da democracia e à presença da modernidade, o que não procede". Na verdade, em grande medida as crises instaladas naquela porção do globo têm também raízes nas relações estabelecidas com o Ocidente, nas intervenções e negociatas feitas por conta da geopolítica internacional, além das imposições da agenda neoliberal."Não há nada de irracional ou de atrasado naqueles países. Aliás, se formos entrar nessa discussão e quisermos destacar uma nação que sofre grande intervenção da religião na política, talvez devamos olhar para os Estados Unidos".

A viagem pela região permitiu ainda que Safatle tivesse mais clareza sobre a natureza política que caracteriza acontecimentos históricos com essa magnitude. "Revolução é uma trama que se dá em dois tempos, com uma abertura que dá início a uma série de efeitos, que vão ressoar durante anos", definiu. Para ele, é um erro e uma temeridade intelectual querer rotular um processo tão complexo e profundo apenas a partir de seus primeiros passos. "O que vemos hoje no Egito? Novamente a força da população, em mobilizações gigantescas de rua, que derrubam mais um governo e insistem na necessidade de levar esse processo revolucionário adiante. É o modelo revolucionário clássico. Foi assim que se desenrolou a Revolução Francesa". 

Um comentário:

  1. Um fator de suma importância para entender essas revoluções nos países islâmicos (mundo árabe mais a Turquia) é a centralização dos embates em torno de uma disputa entre religião e forças armadas: Os estados laicos na época da guerra fria, alinhados às superpotências, sempre estavam assentados no autoritarismo militar (Egito, Líbia, Tunísia, Síria e Turquia, além, claro, do Iraque). A derrubada desses regimes autoritários, ao invés de propiciar o afloramento da democracia, deu ensejo apenas á subida das outras formas de organização que estavam submissas, ou seja, religiosas e tribais (Líbia e Síria). Em suma, existe o dilema de difícil resolução para os milhões de manifestantes egípcios e turcos - a inexistência de um projeto de poder consolidado em uma forma de organização política que possa implementá-lo. O Egito, então, com 80 milhões de pessoas é o exemplo mais gritante de um quadro em que multidões sacaram um ditador militaróide para que todos vissem o poder cair nas mãos de um ditador ligado a extremistas religiosos, agora sacado por militares. Esses militares vão pedir licença e instaurar a democracia assim, num piscar de olhos? Acho que não.

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