quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O PREFEITO HIGIENISTA E A LIMPEZA DA CRACOLÂNDIA

Achei por bem interromper brevemente as férias para compartilhar com vocês algumas inquietações a respeito da "limpeza" patrocinada pela Prefeitura de São Paulo na região conhecida como Cracolândia, área central da cidade. Claro está que o prefeito Gilberto Kassab, agora no PSD, mas desde sempre demo-tucano na alma, abre o ano eleitoral jogando para a plateia conservadora (que, no caso de São Paulo, não é pequena), abrigada em suntuosos camarotes de luxo, e de onde "observa" a realidade (em geral com empáfia e egoísmo). Dessa forma, Kassab envia sinais, tenta mostrar serviço e, quem sabe, resgatar ao menos parte do apoio político perdido, agindo para restabelecer pontes com o eleitorado de direita da cidade, com intuito de se cacifar para assumir o papel de um dos protagonistas da disputa pela Prefeitura - processo que, aliás, já está em curso.   

A "limpeza" não passa disso - medida de caráter puramente higienista, marca, aliás, da administração kassabista. E já que "Narciso acha feio o que não é espelho", como cantou Caetano Veloso, é preciso tornar a Cracolândia palatável e acessível para as elites brancas paulistanas, (re) construindo a região à imagem e semelhança dos anseios limpinhos. É fundamental resgatar uma área simbólica e histórica da megalópole, mas que se tornou "feia, suja, fedida e repugnante, por culpa dos marginais e dos drogados que se apossaram dela". Para tanto, basta expulsar os bandidos de lá. Uma vez mais, associa-se pobreza e exclusão social à criminalidade, em generalização que compõe relação tão simplista quanto falsa.

Em nome de uma cidade "mais limpa", vale tudo - inclusive e principalmente tratar seres humanos como produtos descartáveis, que devem ser expulsos e despejados em qualquer outro canto, longe do alcance dos holofotes da mídia e dos olhares das elites. Esse é o raciocínio. Não por acaso, o único representante do Estado (poder público) a fazer parte da operação é a Polícia Militar, o que revela com nitidez o viés reacionário e puramente repressivo da iniciativa. Assistência, apoio e amparo aos viciados e moradores de rua? Para quê? São a escória da sociedade, não? Tratamento? Educadores? Médicos? Psicólogos? Ninguém os viu por ali. Nem vai ver.

Porque, afinal, o objetivo não é lidar com um dos mais graves problemas sociais da cidade, mas maquiar a fotografia e transformar a discussão em mero caso de polícia, para alcançar visibilidade midiática - e então finalmente prestar contas e tranquilizar os representativos segmentos da sociedade que não só desejam, mas que defendem fervorosamente a truculência como método cotidiano de administração pública. Como bem destacou no Blog "Outro Brasil" o jornalista Alceu Castilho, "a reportagem do SPTV (exibida no primeiro dia da ação), da Rede Globo, legitima o higienismo. Ela começa exatamente com cenas de limpeza - caminhões de lixo, carro-pipa jogando água nas ruas e trabalhadores da limpeza urbana tirando lixo do local, no centro de São Paulo".

A estratégia de "dor e sofrimento" patrocinada pela Prefeitura - supostamente, a falta da droga obrigaria os usuários a procurar ajuda - tem sido duramente criticada por especialistas das mais diferentes áreas, inclusive em matérias e artigos veiculados pela grande imprensa.

Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, Antônio Carlos Malheiros, desembargador e coordenador da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, escreve que "além das operações policiais, há necessidade de se ampliar a atuação médica, assistencial e do Judiciário para viabilizar o tratamento desses usuários. (...) Um alerta: qualquer que seja a operação, não pode ter um caráter higienista disfarçado. Não precisamos limpar as ruas, mas tratar as pessoas". Também no Estadão, Guaracy Mingardi, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, lembra que "é preciso combater o narcotráfico, que abastece os pequenos traficantes da Cracolândia. Isso sem falar na prevenção. Para mim, essa ação só visa a melhorar a questão urbana, ou seja, esconder pessoas e limpar ruas".

Sempre no jornal da família Mesquita, Marcelo Ribeiro, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que "a estratégia não tem lógica. A sensação de fissura provocada pela abstinência impede que o usuário tenha consciência de que precisa de ajuda. Ela causa outras reações, como violência"; Arthur Pinto Filho, Promotor de Justiça da Saúde, diz que "não conhece estudo científico que comprove que uma pessoa em abstinência procura por tratamento. Sem base teórica e prática para adotar essa estratégia, essa ação pode ser mais uma sem resultado".

Em sua página no Facebook, o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, reforça que "o uso da força para resolver problemas psicossociais é perigoso e enseja ações arbitrárias e autoritárias, que ferem a dignidade humana". Ele manifesta espanto diante da tímida reação às ações truculentas da Prefeitura. "Com a palavra, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a Câmara Municipal e a Assembléia Legislativa. Estão todos em férias?", cobra Lancellotti.

Meu receio, padre Julio, é que não sejam apenas as férias. Lamento, mas boa parte dos paulistanos concorda com as medidas higienistas. Apóia a "limpeza". Sustenta a estratégia. O silêncio não é o do descanso - é o da conivência. 

6 comentários:

  1. Chico, detalhe: a região não fica próxima da área do projeto "Nova Luz"? Considerando o interesse do mercado imobiliário, já dá para imaginar o motivo da prefeitura correr para "limpar" tudo.

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  2. Oi, Chico! Vi seu comentário no blog do Azenha sobre o texto do Maierovitch e passei aqui pra conferir seu artigo. Gostei muito também!

    Triste é a reação dos paulistanos. Santa ignorância! Mas enfim...

    Se me permite, vou deixar uma colaboração aqui:

    Para quem não entendeu a ideologia por trás do discurso higienista (ou nunca ouviu falar em narcossalas), sugiro a leitura de outro artigo do Wálter:

    http://maierovitch.blog.terra.com.br/?s=Uwe+Kemmesies%2C+da+Universidade+de+Frankfurt

    E para quem quiser “desvendar” a ideologia da “War on drugs”, sugiro o vídeo do programa Justiça e Democracia, da Associação Juízes para a Democracia (AJD):

    http://www.ajd.org.br/multimidia_videos_ver.php?idConteudo=212

    As drogas não constituem um problema em si. Foi a sociedade contemporânea que as transformou no grande vilão das fraquezas do grupo social, e das fragililidades das pessoas. Nestes tempos em que o mundo empreende uma inútil guerra às drogas, e que em nosso país são propostas políticas proibicionistas e medicalizantes de acentuado desrespeito à liberdade e à autonomia vital das pessoas, o programa Justiça e Democracia apresenta a entrevista com o Professor Henrique Carneiro, que ajuda a desvendar e desmistificar o tema.

    Talvez ajude.

    Gde abraço.

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  3. Olha professor, eu comecei a trabalhar quarta-feira na Sala São Paulo, e no meio do caminho me deparei com uma calçada cheia de usuários de crack, pois eles ficaram espalhados sem rumo naquela região depois dessas ações da polícia... Hoje quando voltei achei super estranho o sumiço! Tinha dois ou três perambulando pelas redondezas da estação da Luz e eu logo pensei "o quê fizeram com eles?". Eu concordo que aquela região tem que ser revitalizada por ser patrimônio histórico e bla bla bla, mas essas pessoas são PESSOAS, e precisam de assistência... Isso é só mais um caso onde o Governo e Prefeitura varrem a "sujeira" pra debaixo do tapete! Lamentável... Seja lá onde eles estiverem, eles continuam se degradando sem ajuda.

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  4. Desculpe, mas quem é o padro Julio pra dizer alguma coisa sobre "dignidade humana"? Quem conhece ele desde os anos 70, com sua "luta" na Febem do Tatuapé e outras "cositas mas" que nem preciso citar aqui, sabe que a preocupação dele não é, nunca foi e nunca será a "dignidade humana"... E não falo de orelhada, falo o que sei e o que vi!

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  5. Chico, envio um vídeo que talvez interesse, pois exemplifica fielmente a violência policial descrita aqui. Realidade lamentável e texto muito preciso. http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=GHz-8rSDvuA

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  6. São Paulo sempre foi uma cidade em que a desigualdade salta aos olhos e lhe dá uma bofetada na cara toda manhã, pois vc se depara com PESSOAS perambulando pelas ruas, totalmente alienadas da realidade, fome, frio e descaso são os componentes da máscara agonizante dos despossuídos.
    Cinismo, arrogância e esnobismo são os componentes da máscara prepotente e exclusivista da "gente bem".
    Por outro lado, camisados ou descamisados você NÃO gostaria que sua filha de seis anos entrasse em contato com um ente daquele. não é?

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