segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A CRACOLÂNDIA NÃO QUER SÓ POLÍCIA

Retorno das férias disposto a sugerir mais algumas reflexões sobre a farsa policialesca-midiática patrocinada pela prefeitura de São Paulo na região da Cracolândia. A tal da estratégia "dor e sofrimento", idealizada e defendida com unhas e dentes pelo prefeito Gilberto Kassab e por outras lideranças demo-tucanas, continua muito longe de se mostrar minimamente efetiva e capaz de enfrentar com dignidade e responsabilidade pública os complexos dramas sociais vividos pelos usuários de drogas que frequentam o local. 

Ao contrário: serviu a medida higienista apenas para reforçar e legitimar, em tempos de "Era dos Adjetivos", a mensagem generalista que diz que "a presença da Polícia Militar (que aliás, diga-se de passagem, continua sendo o único agente estatal a marcar ponto por lá) é fundamental para combater a criminalidade e a bandidagem que tomaram de assalto um espaço simbólico da cidade". Quem, no entanto, estiver disposto a se despir dos discursos prontos e dos preconceitos, a abandonar o senso comum reducionista e a pensar com um pouco mais de profundidade sobre a questão vai se deparar com uma fotografia social significativamente distinta.     

Pesquisa feita pelo Instituto Datafolha e divulgada pela Folha de São Paulo no domingo, 15 de janeiro, ouviu 188 usuários de crack da região e revelou que na Cracolândia vivem os excluídos dos excluídos, aqueles que são vítimas de toda sorte de privações sociais e já não têm mais perspectivas de vida digna. Foram abandonados pela sociedade. Vivem no gueto. Segundo o levantamento, 27% dos que lá estão não têm trabalho e sequer procuram mais emprego; 45% dos que conseguem trabalhar vivem na verdade de bicos. Em relação à escolaridade, 64% dos usuários de crack concluíram no máximo o ensino fundamental - apenas 6% têm o curso superior. 

Ainda de acordo com o Datafolha, a população local é formada majoritariamente por homens (84%, contra 16% de mulheres) e por jovens (18% têm entre 16 e 24 anos; 45%, entre 25 e 34 anos; 28%, de 35 a 44 anos; e 9% têm mais de 44 anos). A média de idade é de 33 anos. A cor da pele é também fator a ser considerado: 44% são pardos e outros 22% são negros (66%, no total), enquanto há 22% de brancos. 

O vício começa cedo: 23% tiveram a primeira experiência com crack quando tinham entre 11 e 15 anos; outros 23% travaram o primeiro contato com a droga com de 16 a 20 anos. Dos que vivem na Cracolândia, 28% usam crack há pelo menos cinco anos; 30% consomem a droga há pelo menos 10 anos.

Realizado em dezembro de 2011, trabalho feito pela Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo (Uniad/Unifesp) traz à tona outras informações importantes para a compreensão do problema - e, portanto, para o combate do mesmo. O estudo mostra que 47% dos entrevistados (170 dependentes que vivem na região, sendo 102 homens e 68 mulheres) estão dispostos a se submeter a tratamento e 62,3% desejam parar de usar drogas. A maioria dos usuários (61%) já passou por tratamento. 

Revela ainda o estudo que "em relação aos recursos para obter as drogas, 59% afirmam ter dinheiro próprio para a compra do produto, 13% reconhecem apelar aos roubos, outros 13% recorrem à troca de objetos pessoais, 12% recebem esmolas, 9% furtam, outros 9% vendem objetos de família, 11% trocam a droga por sexo e 13% prestam serviços diversos aos traficantes". 

Quando se pensa que atingimos a situação de máximo aviltamento da dignidade humana, vislumbramos que, na Cracolândia, é ainda possível encontrar, nos excluídos dos excluídos, aquelas que são ainda mais excluídas - as mulheres gestantes. Também feito pela Unifesp e divulgado com exclusividade pela Folha de São Paulo na edição do último dia 12 de janeiro, outro estudo acompanhou dez grávidas usuárias de crack que vivem na Cracolândia. Segundo a reportagem, "apenas duas estavam fazendo pré-natal. Cinco sabiam quem eram os pais dos filhos - parceiros também usuários do crack. Oito delas já tinham filhos e três tinham sofrido abortos anteriores. Seis fumavam até dez pedras por dia. As demais chegavam a consumir vinte pedras. Metade das gestantes financia o consumo de crack pedindo esmola ou trocando sexo pela droga". 

Embora não se possa avaliar com precisão quais os efeitos específicos do crack sobre a gestação - as grávidas não raro são também fumantes, dependentes de álcool e enfrentam quadros de desnutrição -, a matéria lembra que os "bebês dessas mulheres tendem a nascer prematuros e com atraso de desenvolvimento. Também têm mais chances de apresentar sequelas neurológicas, retardo mental, déficit de aprendizagem e hiperatividade". 

Os números aqui apresentados certamente não esgotam o assunto nem estabelecem mensagens absolutas, mas sugerem caminhos e abordagens possíveis e precisam ser mais discutidos e bem avaliados, para que as diversas e complexas histórias de vida (individuais e coletivas) que guardam possam auxiliar na definição de políticas públicas sociais articuladas e dispostas a dar conta do problema, em seus mais diferentes aspectos. O prefeito Gilberto Kassab conhece essa fotografia. Mas, em ano eleitoral, de forma ideologicamente convicta, prefere prestar contas aos setores conservadores da sociedade - as elites brancas paulistanas, interessadas em varrer a "sujeira" para debaixo do tapete, a qualquer custo. Legitimam, assim, as ações higienistas e a presença truculenta do aparato policial na região. 

Trata-se de um clichê, do óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues, mas que precisa ser repetido à exaustão, sob pena de naturalizarmos uma chaga que é social e política. Na Cracolândia, as drogas não são porta de entrada, mas o fim da linha para pessoas que já sequer se reconhecem como tal. São farrapos humanos degradados, alijados de qualquer possibilidade de garantia de direitos, de qualquer perspectiva de exercício de cidadania, em busca de momentos efêmeros de um prazer tão desesperado quanto suicida, e que sem alternativas e abandonados pela sociedade definham diante de nossos olhares muitas vezes cúmplices e silenciosos. A vida segue, não é mesmo?

Em entrevista publicada pelo portal Terra, Rubens Adorno, antropólogo e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), reforça que os habitantes da Cracolândia "não são marginais. Predominam pessoas muito pobres e que, por circunstâncias da vida, acabaram indo para a rua. O importante é que o usuário acaba incorporando aquilo que as pessoas externamente pensam dele". O pesquisador coloca o dedo na ferida: "A cidade de São Paulo é uma cidade atrasada. A estratégia atual é militar. Tratam essas pessoas como a escória a ser varrida e confinada. Estamos vivendo a política sanitária do século 18. A prefeitura e o governo não chegaram nem ao século 19".

Na sexta-feira, 13 de janeiro, o padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, escreveu em sua página no facebook que "é impressionante a quantidade de viaturas policiais, motos, helicópteros e a abordagem truculenta (na região). Com duas defensoras públicas, ficamos na mira da polícia, que sacou uma arma para abordar os que estavam vagando pelas ruas. Verdadeira operação de guerra".

Claro está que o problema não será resolvido com fardas, botas e armas apontadas para vítimas da exclusão social. O Estado precisa dizer "presente" de outras maneiras - com moradia, coleta de lixo, lazer, espaços culturais, quadras esportivas, escolas, oferta de emprego, postos de saúde, atendimento e tratamento multiprofissional e qualificado aos usuários de drogas, garantindo opção de vida e devolvendo ao menos em parte a esperança roubada dos que lá vivem. Pois, como já cantou o Rappa, "paz sem voz não é paz - é medo". 

Um comentário:

  1. Ótima discussão para começar o ano. Acho que além dos mandantes, os policiais despreparados(em todos os sentidos) são outro grave problema. Abraço. Marcelo Boca(Anhembi Morumbi)

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