domingo, 23 de fevereiro de 2014

UM "THELMA E LOUISE" CRIATIVO E COM FORTE SOTAQUE GAÚCHO




Era mais um daqueles que estava na escrivaninha de cabeceira, naquela tradicional e infindável - sempre a crescer - "fila dos próximos". Finalmente consegui devorá-lo. E recomendo. "Todos nós adorávamos caubóis", escrito por Carol Bensimon, chama a atenção e cativa, deixando lembranças, porque, sem parafernálias ou pirotecnias, consegue contar uma boa história. A força da obra está nas vivências das personagens, generosamente compartilhadas com o leitor. Vale lembrar que Carol foi uma das autoras selecionadas para fazer parte da coletânea "Os melhores jovens escritores brasileiros", lançada em 2012 pela renomada revista Granta. Merecido.

Em "Todos nós...", ela costura as angústias e as conquistas de duas jovens, com seus vinte e poucos anos, que se conhecem em Porto Alegre, no curso de Jornalismo. Apaixonam-se - quase amor à primeira vista. O namoro é tão intenso - não são poucas as vezes em que, tresloucadas de paixão, transam no carro ou em banheiros públicos - quanto passageiro e, sem muitas explicações ou exercícios de racionalidade, escorrega pelos dedos, esfria. Acaba. Cora vai estudar Moda em Paris. Julia decide terminar Jornalismo em Montreal, no Canadá.

Anos depois, voltam a se encontrar na capital gaúcha e decidem cumprir promessa que tinham feito ainda nos tempos de faculdade - viajar juntas, só as duas, sem rumo definido e de carro, pelo interior do Rio Grande do Sul, passando pelas Serras e chegando aos limites dos Pampas. A trama assume ares de "narrativas de estrada". Impossível não estabelecer conexões com as sensacionais Geena Davis e Susan Sarandon no clássico filme "Thelma e Louise" (1991) - aqui, com sabores e cheiros tipicamente gaúchos. Nessas andanças, vêm à tona os estranhamentos e as expectativas comuns, o que as une e o que afasta.

Cora é bissexual assumida. "Sim, eu me sentia atraída por garotas. Tecnicamente, eu era bissexual. Minha linha do tempo teria todos os indícios. (...) Mas eu disse bissexual. Garotas e alguns garotos. Ou, para ser mais exata: garoto. Garota. Garota. Garota. Garoto. Garota. Garota. Garoto. E daí seguindo usualmente essa proporção. Com os garotos, eu ficava por inércia. Com as garotas, por encantamento". Enfrenta preconceitos e exclusões, o inconformismo da própria mãe que, "numa tarde modorrenta, abriu a porta do meu quarto. Não saberia explicar o porquê, ela sempre batia, quer eu estivesse acompanhada ou sozinha, aquela era uma norma na qual ela gostaria de acreditar. Porém, nessa tarde, com uma desculpa qualquer na ponta da língua, minha mãe entrou no meu quarto de forma totalmente inesperada, talvez desejando mais do que tudo ter que usar o raio da desculpa, a qual poderia ser: vocês precisam de alguma coisa?, vou dar uma saída, hoje não era dia de buscar tua jaqueta na costureira? O que viu, no entanto, dentro do quarto repleto de ícones que ela não compreendia, fez com que fechasse a porta em pouquíssimos segundos e corresse para o andar de baixo em busca do telefone. Discou para o ex-marido. Mesmo atordoada, ela teve a delicadeza de passar pelas perguntas habituais enquanto procurava uma maneira de descrever a cena, a amiga da tua filha deitada na cama, uma calcinha com uma estampa quase infantil, tua filha com a mão na -, a mão por dentro da calcinha dela, eu sempre soube que a Cora ia fazer isso com a gente". Segura de si, quase arrogante, às vezes dona da verdade, intempestiva e inflexível, Cora sofre ainda com a separação dos pais e com o fato de o pai ter ser casado novamente com uma moça muitos anos mais nova que ele - quase da idade de Cora.

Nascida e criada no conservador interior do Rio Grande do Sul, Julia foi viver em Porto Alegre, nos tempos de faculdade, sob os rigorosos cuidados e olhares atentos de freiras, em um pensionato. É também bissexual - não assumida, com medos e vergonhas. "Quanto a Julia, é claro que ela tinha mais chances de angariar simpatias. Em primeiro lugar, ela era menos estranha do que eu. Eu não ficaria nem um pouco surpresa se alguém de repente elogiasse seus brincos. Em segundo, porque estava sempre disposta a agradar, mesmo quando percebia certa hostilidade no outro. Isso já tinha me deixado irritada umas tantas vezes no passado. E, no entanto, havia também em Julia uma certa dose de inadequação, como se apenas uma série de acasos, uma longa cadeia deles, pudesse explicar sua presença naquele lugar". O passado familiar é um fantasma que também assombra e com o qual Julia é obrigada a lidar - um irmão dela morreu com apenas sete meses, tragédia que, claro, deixou feridas profundas, e que durante muito tempo foi escondida da garota.

No sobe e desce da vida, que faz bater no topo das euforias para no momento seguinte arremessar em depressões profundas, as duas jovens definem as regras e escolhem as armas que acham mais adequadas para travar seus duelos interiores e também aqueles que explodem entre elas. O leitor é conduzido por esses "dez passos para trás, bem devagar, vamos discutir a relação". Porque, afinal, todos nós adoramos caubóis.  

domingo, 2 de fevereiro de 2014

ROLEZINHO NA VILA. PARA VER O GOL DOZE MIL.





O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), precisa com urgência instalar uma base avançada de pesquisas na cidade de Santos, para estudar o aquecimento global. Porque, se é fato que as temperaturas médias do planeta estão subindo, o epicentro desse fenômeno, não tenho dúvidas, acontece na cidade litorânea que abriga o maior porto da América do Sul, terra natal do Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrade e Silva. Talvez Santos pudesse até servir como ambiente-piloto para experiências que pretendam garantir a preservação da espécie, preparar a humanidade para o que está por vir, nos ensinar o que precisaremos fazer para sobreviver em ambientes semi-infernais, de calor escaldante e implacável. Já passava das sete da noite – e a temperatura ultrapassava facilmente os quarenta graus. O suor escorria, o corpo ficava grudento, a camisa, encharcada. Vento? Nem brisa. Água, sorvete, mais água, rosto e cabeça molhados, outro sorvete, por favor. “Pai, não aguento mais...”. Nem eu. Imaginei por um instante poder virar a chavinha que controla as temperaturas – para uns vinte graus, quem sabe, já seria bem mais civilizado. Bom mesmo seria ter na Vila Belmiro a princesa Elsa, protagonista da animação ‘Frozen, uma aventura congelante’, em cartaz nos cinemas, senhora do frio a mover as mãos em malabarismos dançantes, transformando o estádio num fenomenal e agradabilíssimo castelo de gelo. Você quer brincar na neve? Já que não há H2O em estado sólido, vamos nos esbaldar com líquido mesmo. ‘Moça, por favor, aqui em cima. Mais três copos d’água, bem gelados’. Em campo, torcida brasileira, cortinas abertas para mais um espetáculo, a impressão é que o time do Santos havia estabelecido algum tipo de pacto diabólico com o calor. Quanto mais quente, melhor. Depois da categórica goleada sobre o Corinthians, o ritmo contra o Botafogo no início da partida foi frenético, alucinante. Aos dois minutos, uma estupenda enfiada de bola de Leandrinho, no meio da zaga, a lembrar os melhores dias inspirados da ave ingrata. Geuvânio entrou livre, cortou o goleiro e bateu seco de esquerda, na diagonal, para abrir o placar. Comemorou com duas cambalhotas, saltos mortais. Faltavam só mais três. Aos dez minutos, Cícero desperdiçou pênalti. No finalzinho do primeiro tempo, a conta caiu pela metade quando, em mais um contra-ataque mortal, Gabriel cruzou da esquerda, Arouca mergulhou, mas não alcançou de cabeça, e a redonda sobrou para Geuvânio. Foram dois toques, como manda o manual do bom futebol – um para matar a bola, outro para rolar o balão com açúcar e com afeto para Cícero fulminar e marcar o segundo. Faltavam dois. Intervalo. Os vendedores de água e sorvete continuavam fazendo a festa. Diminuiu o calor? Quem disse? Tomamos o gol logo no início do segundo tempo, quase sem querer, escanteio meio besta, falha de saída de Aranha. Tivemos ali uns dez minutos de certo desarranjo, talvez até que o time novamente percebesse que o calor continuava a castigar e voltasse a fazer girar o motor que empurrava os meninos da Vila. Energia solar acumulada. Funcionou. Um tapa de primeira de Geuvânio – para mim, o melhor em campo -, furada do zagueiro do Botafogo e biquinho de esquerda de Gabriel, no melhor estilo Ronaldo contra a Turquia na Copa de 2002. Três a zero Santos. Um só. Unzinho. Nas arquibancadas, começamos a gritar ‘mais um’. Havia tempo de sobra. E quis o deus dos calores dos infernos que não demorasse muito. Foram só dois toques na bola. Aranha estourou para a frente, a bola veio caindo quase na linha da área do Botafogo. Gabriel não tirou os olhos dela, acompanhou toda a trajetória, ganhou no corpo do zagueiro, esperou a pelota pingar três vezes e emendou de primeira para o fundo das redes. Doze mil gols na história! O time de futebol que mais marcou! Nenhum outro tem essa marca! Foi bonita a festa, pá! Fiquei contente... Nada mais justo que o tento tivesse sido anotado por um dos nossos tantos meninos! Abraços e beijos nos filhos, no sobrinho, no irmão camarada de tantos jogos. “Nós vimos!”. Lembrei na hora do meu avô, que também tanto sofria com o calor do Saara de Santos, mandei um beijo para ele, recebido imediatamente em outras dimensões. Estávamos juntos na mesma Vila em 1988, quando o Tuíco, legítimo representante dos anos das vacas magras, marcou o gol nove mil do Peixe, num empate (1x1) contra a Portuguesa. De volta para o presente. No caldeirão (e nunca o apelido carinhoso fez tanto sentido) da Vila, até o último fio de nossos cabelos estava molhado (e, vamos combinar, cabelos fartos não são mais o meu forte). Experimente pular cinco minutos em Santos, com quarentinha nos termômetros. Definitivamente, não é para os fracos. A torcida gritou “é doze mil”! E ainda deu tempo para, no finalzinho, marcar o quinto e já começar a caminhada em direção aos treze mil – Emerson Palmieri marcou, depois de bela jogada de linda de fundo do estreante Rildo. Placar final – 5 x 1. De novo? Cincomuito. Tenho medo de ficar mal acostumado. Na volta para São Paulo, viemos ouvindo a narração dos gols, comemorando e comentando. Com o ar condicionado ligado no máximo.