segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

PRIMEIRO DIA

Na escuridão da madrugada, brincava de identificar objetos do quarto. Já conhecia aquele mapa de cor, é verdade, tudo ali tinha a cara dela. Mas o exercício de rastreamento sem luz servia para ajudar a passar o tempo. Localizou sem dificuldades a coleção do Harry Potter na estante. O que eu gosto mais é A ordem da fênix. Li de uma vez só, rapidinho. Chorei horrores com a morte do Sirius Black. Maldita Bellatrix. Tinha visto também todos os filmes. Desviou o olhar à esquerda e parou uns segundos na cadeira amontoada de roupas, quase um armário improvisado. Camisetas, pijamas, meias limpas e usadas, calcinhas, tiaras, pulseiras e até um caderno detonado, quase sem folhas. Torre de Babel. Ou de Piza - já estava até tortinha, quase caindo. Que pilha. Preciso arrumar essa zona. É que dá uma preguiça... Encontrou a mochila colorida, encostada no pé da cadeira. Não resistiu - fez mais uma revisão mental. Cadernos, livros, estojo, régua, compasso, dicionário, material de Artes. É, acho que peguei tudo. Será que não estou esquecendo nada mesmo? Repassou tudo de novo, mais uma vez, só por segurança. Vai que... Cadernos, livros, estojo, régua, compasso, dicionário, material de Artes. Ouviu bem baixinho o som de uma televisão. O vizinho também estava acordado, vendo um filme. E tem tiros e bombardeios, acho. Tentou desligar, não prestar atenção. Já tinha virado de lado, experimentado de bruços, puxado o lençol, jogado o travesseiro no chão, mão apoiando a cabeça, pernas cruzadas, barriga para cima. Nada. Olhos bem abertos. Arregalados. Insônia. Angústia. Aquele friozinho que sobe pela espinha, bate na nuca, faz estremecer, toca de leve a barriga, uma dorzinha, coisa pouca, vira rapidamente um aperto no coração, até se transformar em garganta seca. Preciso tomar água. Foi até a cozinha, tateando, sem acender a luz. Será que vai dar certo? Não sei se vão gostar de mim. Sei lá, todo mundo lá já se conhece, os grupos estão formados, vou ser uma estranha. No dia do teste, pareceram legais. Até conversei com uma garota sobre as manifestações do ano passado. Ela também tinha lido Capitães de Areia. Gostava dos Beatles. Adorou meu óculos. Mora aqui pertinho. Bem bacana. Simpática. Mas foi rapidinho, quase nada. Acho que ela foi com a minha cara. Será? Ai... Teve vontade de chorar, uma lágrima quase escapou. Respirou. Outra vez. Mais uma. E os professores? As provas serão diferentes, já sei. Menos testes, mais questões escritas, muita discussão, interpretação de texto. Gosto. É, prefiro. Vou precisar estudar mais ainda, é fato, me organizar melhor. Mas acho que encaro. É. Acho que sim. Não sei. Talvez. Vou me esforçar. Ai, estou com medo, medo, muito medo. Estava suando, mãos molhadas, frias, o coração acelerado. Voltou para o quarto. Olhou para a roupa que tinha separado para o primeiro dia na nova escola - uma camiseta branca básica, lisa, shorts jeans, tênis preto. Tudo bem simples - mas muito especial, escolhido a dedo, depois de inúmeras tentativas. Na verdade, tinha passado boa parte do dia anterior testando opções, na frente do espelho, consultando a mãe a cada nova possibilidade e combinação. Está bom? Será que as meninas vão assim? Não quero parecer metida, esnobe. Ai, que difícil. Substituiu o shorts jeans por um vermelho. A porta do armário rangeu. Ficou esperando a bronca, vinda do quarto dos pais. Ninguém reclamou. Nem o irmão, que nessas horas não perde a chance de resmungar e de soltar um "boa, valeu, muito obrigado por me acordar". Só ela estava acordada. Sentiu o suor escorrendo pelo pescoço. Não conseguia se aquietar. Era mais forte do que ela. Muito mais forte. O ônibus passa seis e trinta e cinco. Já fiz o teste. Nessa hora não tem muito trânsito. Em meia hora chego lá. É quase uma reta. Aí é só mais uma caminhadinha, quatro quarteirões, dez minutos, no máximo. Vou ficar esperando o sinal no pátio. Não, melhor subir para a sala. Será que pode? Se tiver alguém lá, me apresento, puxo conversa. Do que será que eles gostam de conversar? Calma, calma. Preciso ir com calma. Hermione Granger vai ter que se segurar. Como é difícil. Vai dar tudo certo. Eu sei, vai dar tudo certo. Pegou-se falando em voz alta. Tomou um susto. A mãe vinha entrando pelo quarto, sempre no escuro. Acordada a essa hora, filha? Ah, mãe, não consigo dormir. Estou muito ansiosa. Não paro de pensar na escola nova. E se não der certo? A mãe se aproximou. Abraçou a garota bem forte. Já estavam quase do mesmo tamanho. Acendeu a luminária de cabeceira. Deitou a cabeça da pequena no colo. Fez cafuné. Começou a montar um discurso cheio de pompa e circunstância, pensou em dizer que o novo assusta mesmo. Ainda hoje, toda vez que vou para uma reunião, pessoas que não conheço, sinto esse mesmo frio na barriga, fico me perguntando se vou agradar, o que vão achar de mim. Tento calcular os gestos, o tom de voz. Fico olhando as expressões de cada um. Mas chega uma hora que eu relaxo. Todos os dias a gente passa por essas provações. A vida testa a gente o tempo inteiro. Mas achou que não era o caso. Recuou. Preferiu guardar o silêncio, a mão direita acariciando o rosto da filha, a esquerda continuava a fazer cafuné nos cabelos encaracolados. O pai apareceu na porta. Tinha ouvido vozes, ficou preocupado, queria saber o que estava acontecendo. Olhou. Entendeu. Deu um beijo na testa da filha, quase adormecida. Te amo! Ela ainda ouviu, bem distante, lá longe, quase num sussurro. Já estava sonhando. Cadernos, livros, estojo, régua, compasso, dicionário, material de Artes...

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