domingo, 26 de maio de 2013

MEU CARRO, MINHA VIDA

Série "Crônicas da Classe Média Paulistana" - 

Ficha de recadastramento de dados fornecida pelo prédio. Seis "espaços" para indicação dos nomes dos moradores do apartamento. Seis "espaços" para o registro dos carros que temos (apenas os de nossa propriedade mesmo; os 'autorizados a entrar no edifício' estão em outra ficha). Um carro para cada morador. Será que posso listar aqueles Matchbox que o Daniel tem?















sábado, 25 de maio de 2013

O SANTOS DEVERIA TER SEGURADO NEYMAR

Não faço parte de comitês gestores. Não sou executivo, tampouco empresário. Não uso terno e gravata. Não tenho canetas para assinar (ou romper) contratos. Mas algumas contas elementares eu (acho) consigo fazer. E o fato incontestável é que, nas últimas quase cinco temporadas do nosso futebol, Neymar da Silva Santos Jr. garantiu ao Santos e aos santistas abundância de ganhos tangíveis e intangíveis - expressão que os marqueteiros e os diretores de clube adoram usar.

O menino-craque nos brindou com seis títulos - o tri Paulista, a Copa do Brasil, a Recopa Sul Americana e a Libertadores. Ficamos ainda com um vice mundial, fazendo reaparecer nossa marca e nosso escudo no cenário internacional. Voltamos a ser protagonistas, a receber holofotes e a ser novamente observados e respeitados pelo mundo da bola. Durante dois anos (2010-11), fomos o esquadrão a ser batido por aqui. Resgatamos o orgulho de ver em campo alguém que atuava por prazer, com ousadia e alegria, a honrar a cada instante e em todas as partidas a camisa do clube. Um craque. Foi o melhor que vi jogar, artista dono de repertório infinito de dribles e de toques refinados e desconcertantes, raciocínios rapidíssimos, lances de bailarino ou malabarista. Vestindo o manto sagrado, Neymar ganhou o Prêmio Puskas de gol mais bonito de 2011, oferecido pela FIFA. Foi finalista da mesma disputa no ano passado. Foi o único boleiro das Américas a ser incluído, por dois anos seguidos, na lista dos melhores do mundo da entidade máxima do futebol.

O moleque prodígio disputou 229 partidas pelo Santos. Marcou 138 gols. É o maior artilheiro do time depois da era Pelé, o décimo terceiro da história da nossa fantástica fábrica de gols. Arrematou prêmios atrás de prêmios - revelação, destaque, artilheiro, melhor do certame. Ganhou duas Bolas de Prata, outra de Ouro, um título de hors concours ("fora da disputa"), honraria até então exclusivamente oferecida ao Rei do Futebol, em eleições organizadas pela ESPN/Revista Placar. Por onde passou, Neymar mobilizou multidões de fãs, encheu os estádios de torcedores e de admiradores. Se o Brasil tem alguma chance de levantar o sexto título de Copa do Mundo no ano que vem, essa mínima possibilidade passa diretamente pelos pés do menino santista.

Os números são oficiais, conhecidos publicamente. Em 2009, o Santos tinha 19 mil sócios - atualmente, somos 65 mil, dos quais quase 52 mil pagam rigorosamente em dia suas mensalidades (importante fonte de arrecadação). Somos o quarto clube do Brasil com maior número de sócios adimplentes, atrás apenas de Internacional (82 mil), Grêmio (72 mil) e Corinthians (muito pouco na nossa frente, com 53 mil). No Estado, nadamos de braçada e superamos por gigantescas margens Palmeiras (24 mil) e São Paulo (20 mil). Muito por conta de Neymar (ou será que foi graças à bela barba do Laor?), a torcida do Santos cresceu e rejuvenesceu - conheço vários pais que, torcedores de outros clubes, se desesperam vendo seus filhos abraçando o alvinegro da Vila.

Em patrocínios de camisa, arrecadamos seis milhões de reais em 2009 - e 35 milhões de reais em 2012. O faturamento total do clube saltou de 70 milhões para 198 milhões, no mesmo período citado. Em 2011, nossos cofres receberam 25 milhões de reais com cotas de transmissão de TV, valor que triplicou e alcançou 75 milhões no ano passado - estamos no mesmíssimo patamar de São Paulo, Palmeiras e Vasco e abaixo apenas e tão somente de Corinthians e Flamengo, que tiveram cotas de 84 milhões cada. A marca Santos está hoje avaliada, segundo consultorias da área, em 380 milhões de reais (é a sexta do ranking nacional). 

Manter Neymar foi mesmo um péssimo negócio para o Santos. Só tivemos prejuízos. Era preciso mesmo vendê-lo - ou melhor, quase doá-lo. Ação entre amigos. Da negociação (algo próximo de 75 milhões de reais), o Santos deve abocanhar cerca de 40 milhões. Lucas foi vendido, no ano passado, por 108 milhões de reais. O Chelsea pagou 78 milhões por Oscar. O Zenit da Rússia investiu 150 milhões de reais no passe de Hulk. Para ter Thiago Silva, o Paris Saint Germain pagou 125 milhões ao Milan. A diretoria do Santos fez uma baita negócio. Eu é que não sei fazer contas. O Barcelona agradece.

Ironias deixadas de lado, e como já vimos, havia várias razões de "mercado" para lutar com muito mais afinco e carinho pela permanência de Neymar no Santos até o final do contrato, em julho de 2014 (que, aliás, quando foi renovado, em novembro de 2011, foi cantado em verso e prosa pelo mandatário santista como uma revolução no nosso futebol, a iniciar novos tempos, que deixariam para trás a 'colônia exportadora de craques'. Pois bem, esse documento inovador foi literalmente rasgado e jogado na lata do lixo). Se o camisa 11 tivesse ficado, o departamento de marketing do Santos que se virasse e mostrasse competência para viabilizar novas estratégias e ações para transformar o último ano dele por aqui em novos retornos financeiros para o clube. Será que os nossos doutos marqueteiros sabem que Neymar é o atleta com maior potencial de mercado do planeta? O jogador que o Santos 'vendeu' por 40 milhões de reais.

Para além dos euros, dos dólares, dos reais, confesso, tinha mais um motivo para defender Neymar no Santos até a Copa do Mundo. Era uma razão quase filosófica. Penso que teria sido fundamental mostrar, ainda que pontualmente, uma vezinha só, que o futebol ainda guarda resquícios de um esporte apaixonante, para além das ditaduras do negócio, e que os clubes entendem que, mais do que os ativos bancários, é preciso preservar e privilegiar os craques que dão espetáculo, que tratam a bola com carinho. 

Claro, podem começar a jogar pedras, é a visão de um romântico, ingênuo, anacrônico e sonhador. Por um tempo, tolamente, imaginei que a diretoria do Santos seria minha parceira nessa utopia. Fui traído. Era preciso fechar as contas, fazer dinheiro (da forma mais simplista e imediatista). O mundo é mesmo dos cifrões. E foi assim que Neymar se foi.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

SEM VERGONHA DE SER RACISTA

Série "Crônicas da Classe Média Paulistana" - 


Final de tarde, escritório de um amigo. Só gente fina e elegante, na estica, alegorias e adereços, firulas disso e daquilo, celulares de última geração, sobrenomes quatrocentões, roupas de marca e títulos acadêmicos a distribuir. Reunião de chamados "formadores de opinião". Boa parte deles se concentrava num canto do salão retangular, perto de uma enorme janela, sem piscar ou desviar o olhar, embriagados pela telinha mágica que exibia a cerimônia de abertura da Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. "Bem, amigos da Rede Globo! Haja coração!". Do lado de lá, grupos musicais típicos do país se apresentavam, com roupas coloridas, tambores e contagiante alegria. Por aqui, com o respaldo efusivo e barulhento dos poucos que permaneciam nas mesas de trabalho, ao som também de risadas histéricas, a audiência classe média paulistana sentia-se à vontade para dizer, sem qualquer pudor ou constrangimento: "nossa, já imaginaram como estão fedidas essas negras suadas pulando como macacas no palco? Credo, jamais chegaria perto dessas pessoas. Que coisa horrorosa. É primitivo mesmo. Eita pobreza, eita país atrasado".

Cortamos para o mês de outubro, se a memória não falha, mesmo ano (certamente), mesmo escritório. Quase todas as mesmas pessoas, plateia esclarecida, gente fina, elegante e sincera, inebriadas novamente pelo príncipe eletrônico, agora a mostrar espetacularmente a ocupação de favelas cariocas pela Polícia Militar. "Fecha naquela imagem! Aproxima a câmera!". Gritos. Urros. Uivos. Clima de guerra. "São a escória, mata, pega, não deixa fugir. Atira mesmo, é para matar. Esse povinho não merece viver. Que polícia incompetente. Se fosse aqui em São Paulo, o problema estaria resolvido, não sobraria um. E ninguém ia sentir falta. Direitos humanos para bandidos? Poupe-me". 
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Do Jessé de Souza, sociólogo e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF): "A nossa classe média é singularmente perversa e infantilizada, apenas por ser o suporte social mais típico de uma visão de mundo narcísica que transforma exploração em generosidade, impedindo todo aprendizado possível e toda crítica. Mas a cegueira e o atraso da consciência moral comprometem a sociedade como um todo."

quarta-feira, 22 de maio de 2013

VISITAS PELO ELEVADOR DE SERVIÇO?


Para abrir a série "Crônicas da Classe Média Paulistana" - 

Os apartamentos são amplos, é verdade, aconchegantes, dois por andar, dezesseis no total, e o prédio é bastante bem localizado, bairro nobre da zona Oeste da cidade, mas sem arroubos de luxo. Longe disso. O edifício é habitado por típicos e legítimos representantes da classe média, a tradicional, aquela das antigas. São duas garagens por família - mas algumas têm três carros, óbvio, é necessidade fundamental, uns possantes de grife e nomes que sou incapaz de repetir. Na reunião de condomínio, grita-se, quase que em samba de uma nota só, com única voz de resistência (devidamente chamada de "radical", só faltou o "baderneira"), por "mais e mais e mais segurança". Se pudessem, muravam, cercavam, eletrificavam, construíam torres, instalavam circuito interno com 448 câmeras, abriam um fosso e lá colocavam uns jacarés bem famintos. Versão pós-moderna dos castelos medievais. Fortalezas. Ou não. Para garantir toda essa proteção, aceitam pagar quase o dobro do valor original do condomínio. É o preço a bancar para manter os desagradáveis diferenciados bem longe daqui. Ou não. Repentinamente, um desavisado distraído e impertinente resolve sugerir que, no período noturno, o elevador social seja desligado, para concentrar operações de subida e descida no outro e economizar energia. Um cretino! Que ideia estapafúrdia é essa? Indignada, a dondoca não se faz de rogada: "mas como assim? Então vou ter que receber minhas visitas pelo elevador de serviço?". 


Marilena Chauí: "A classe média é uma abominação política, porque é fascista; é uma abominação ética, porque é violenta; e é uma abominação cognitiva, porque é ignorante. Fim".

sábado, 18 de maio de 2013

PERDA DOS SENTIDOS


(*) Texto de Rute Bevilaqua, física aposentada



Ele tinha nascido ali na beira daquele rio. A mãe tinha lavado roupa até quase na hora do parto. Ele foi o sétimo filho, a mãe dizia que foi como expelir um caroço de pitomba. A vizinha do barraco ao lado a ajudou, já tinha prática, achou que nem valia mais a pena entrar numa fila do SUS para ser atendida, isso sem contar que estava difícil arranjar uma condução para chegar até lá. O pai só apareceu para conhecê-lo três semanas depois, estava trabalhando longe.


Diziam que viera ao mundo quase pronto para enfrentar as barras que viriam. Era um moleque saudável, que pegou com garra o peito da mãe, que esgotada que andava quase o matou de fome antes de pintar o primeiro colostro. Logo o leite acabou e ele acabou sendo criado com o "leve leite" que tinha que ser muito diluído em água poluída. Milagre foi ter vencido as anemias e as diarréias. A primeira vez que o ar penetrou seus pulmões, o vento soprava do rio Pinheiros para a favela, foi trazendo o cheiro com o qual conviveria o resto da vida. Cheiro de merda nunca o incomodou.

Sua vida foi em cinza e seus olhos se acostumaram a ver o mundo em preto e branco. Cores aconteceriam raramente em sua existência. Ele olhava, mas não via. Logo aprendeu a não ouvir. Para que ouvir a surra e os gritos da mãe quando o pai voltava bêbado do trabalho no fim de semana? Durante a semana era bem mais calmo. A mãe saía para conseguir algum alimento e voltava de noitinha. Neste tempo ele ficava por lá, cuidado pelos irmãozinhos maiores. Quase sempre preso no barraco. Um dos primeiros sabores que aprendeu foi da terra do chão batido, ainda engatinhava quando suas mãozinhas tateavam pelo chão, à procura de grãos de arroz e feijão que se espalhavam por toda parte quando os irmãos mais velhos se serviam. Muitas vezes, a esses gostos se misturavam os de urina e de diarreia. Enfim, sobreviver ali não era pra qualquer um, faltava de água a oxigênio. Falar em amor ali seria luxo.

A criança mais privada de tudo ainda aprende algumas coisas, foi assim que aprendeu que chorar não adiantava nada, que não tinha a quem pedir ajuda. Foi assim que reagiu quando estuprado aos 5 anos por um vizinho adolescente retardado, na presença de duas irmãs de 7 e 9 anos. Foi assim que aprendeu o que era impunidade e adquiriu conhecimentos que o serviriam pelo caminho pelo qual enveredou. Foi assim que aos 17 anos conseguia ser invejado nos arredores, todos o temiam. Foi assim que conseguiu ver lampejos de cores e brilhos no 38 que portava, nas verdinhas que trocava por drogas, nos capôs dos carros que roubava. Foi assim que conseguiu ampliar seu paladar com os hambúrgueres do McDonald's, sentir cheiros em perfumes que contrabandeava, aprimorar o tato e sentir quase um orgasmo ao apertar gatilhos, quase o mesmo orgasmo que sentia ao estuprar.

Foi por tudo isso que se transformou num imenso buraco negro, que sugava tudo, não retornava nada, e que sempre passou muito longe de uma matéria desconhecida chamada amor. Foi então que explodiu de violência e desapareceu numa tarde em que houve uma batida policial na favela. Ia completar dezoito anos na semana seguinte. O estampido se ouviu ao longe, mas não ali nos barracos, onde criancinhas engatinhavam e aprendiam o gosto da terra.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

GENTILEZAS

Estava ainda sonado. A noite tinha sido agitada, dorme e acorda, cochila e desperta, virando na cama de um lado para o outro. Na madrugada, levantou para tomar água duas vezes. Estava ansioso. Como se daria aquela estreia? Seria bem recebido? Tudo era gostosa novidade - as matérias, os amigos, a sala, os livros, os cadernos, o estojo, a mochila, o parque, a quadra. 

- Vamos, mãe. Não quero chegar atrasado. 

Estava prontinho, uniforme tinindo e brilhando de novo, trinta minutos antes do horário combinado. Desceu do carro com um frio na barriga. Acomodou a mochila nas costas. Curvou-se para frente. Estava pesada. Caminhou em silêncio. Mas, ao passar pelos porteiros, abriu um sorriso e disse um sonoro e contagiante "bom dia!". Desejou o mesmo para a faxineira que terminava de limpar o banheiro, logo na entrada da escola. Espantados, os funcionários demoraram a compreender. Retribuíram. 

Avançou pelos corredores calmamente, sem apressar o passo, pedindo "licença, por favor" e acenando com outros "bons dias" àqueles rostos até então desconhecidos com quem ia cruzando. Entrou na sala de aula cumprimentando todos os novos colegas, que olharam para ele com evidentes expressões de pontos de interrogação. Achou por bem dizer "muito prazer, sou o Tales. Sou novo na escola. Tudo bem?". As testas franzidas indicavam estranhamentos ainda mais evidentes. Acomodou-se em carteira da primeira fila, perto da janela. Acenou para o professor que entrou para a primeira aula - História, que ele adorava!. Aproveitou para pedir licença e apresentar-se mais uma vez. 

Ouviu atentamente as explicações sobre o conteúdo da disciplina, os temas que seriam discutidos, o sistema de avaliação, os trabalhos de pesquisa. Cuidadoso, empolgado, registrava tudo no caderno. Não tão discretamente, o professor esticou o pescoço e os olhos e procurou alcançar aquelas anotações, num sentimento misto de satisfação e de nostalgia. Já não estava mais acostumado com aquela postura. Leve sorriso. Tales ergueu a mão. Aguardou pacientemente até ser chamado.

- Professor, por favor, pode explicar novamente o trabalho que vamos fazer sobre a Grécia? Fiquei com dúvidas...

Prestou redobrada atenção ao que o professor disse. 

- Muito obrigado, agora está bem mais claro. 

Na saída, despediu-se de todos - diretor, professores, colegas de classe, funcionários. "Até logo, fiquem bem, bom descanso para todos. Até amanhã".

Um mês depois, a escola nova já não era um mistério, embora ele ainda sentisse que faltava algo, um vazio que não sabia explicar. Não raro, achava que falava sozinho. "Vou me acostumar, talvez seja só impressão". 

Numa manhã ensolarada de outono, segundo bimestre em curso, foi chamado à diretoria. Gelou. O que será que tinha feito de errado?

Não recebeu advertência, tampouco anotação na caderneta ou bilhete para os pais. Depois de ouvir muitos elogios, parabéns pela educação exemplar, ganhou uma medalha dourada onde se lia "honra ao mérito". 

Agradeceu, como de costume. Mas não entendeu. 

terça-feira, 7 de maio de 2013

SOBRE DILMAS, AFIFIS E GOVERNABILIDADES

Fonte - www.dignow.org
Sou de um ingênuo tempo em que política se fazia com o coração e a alma, sonho incontido de transformação, busca coletiva incessante por um mundo mais humano e solidário. Aprendi, sei lá se tolamente, estupidamente, que ideologias são fundamentais para demarcar espaços e estabelecer valores e visões de mundo, a definir agendas, aliados e adversários, que devem ser enfrentados a partir de ideias e argumentos, jamais da força bruta. Pertenço a uma geração que ainda aprendeu que há direita e há esquerda, progressistas e conservadores (às vezes reacionários), que o capital e o trabalho se enfrentam e que a luta de classes move as sociedades. Sempre entendi que era fundamental ter lado - e que as alianças eram construídas a partir de programas, desejos e valores comuns, não por conta da necessidade premente de segundos ou minutos de televisão. Até porque a minha política acontece nas ruas, nas escolas, nas portas de fábricas, nas praças, nos comícios, nas panfletagens, nos protestos, nas greves, nas mobilizações sociais. Minha pueril percepção da política me garantia - e como acreditei nisso! - que um governo de esquerda no Brasil serviria para fazer avançar as lutas dos trabalhadores, enraizar a prática e a cultura dos direitos humanos, distribuir terra para quem dela precisa, garantir saúde e educação pública de qualidades, estabelecer que o desenvolvimento só é possível com preservação dos recursos naturais e do meio ambiente, além de consolidar tolerâncias e diversidades e de repudiar veementemente práticas como machismo, homofobia e racismo. Pois esse meu mundo ideal está cada vez mais distante da realidade cotidiana, da realpolitik que defende governabilidades indecentes e enterra e joga na lata do lixo bandeiras históricas de luta. Meu ex-partido é um coração partido. E as ilusões estão todas perdidas. Triste constatação, Cazuza. Em meio a tantas concessões, sorrisos sórdidos, acordos cínicos, apertos de mãos de conveniência e abjetos convites para ministérios, sinto-me cada vez mais um extra-terrestre. Vou lá preparar meu disco voador e tentar encontrar outros planetas dispostos a me receber. Há espaço para caronas. Alguém quer vir junto?