terça-feira, 10 de setembro de 2013

(IN) DECISÃO

Frio de julho. Temperatura perto dos dez graus. Um vento cortante, daqueles de fazer doer os ossos, entrava cantando pela enorme janela da sala, escancarada. Ninguém se importava. Ernesto vestia a guerreira camisa amarela com listras verticais verdes de tantos outros mundiais, mangas curtas, número 8 nas costas. Estava toda amassada, surrada. Quase nem mais cabia nele. Era o uniforme da sorte. Nervoso, adrenalina fervendo no sangue, o rapaz suava em bicas e permanecia de joelhos, bem na frente da TV. Quase sem respirar, sentia o corpo todinho dolorido, como se tivesse sido pisoteado por oito elefantes africanos, cinco toneladas cada, um atrás do outro. Viu finalmente o árbitro erguer o braço. Chegava ao fim a prorrogação. A semi-final da Copa do Mundo seria decidida nos pênaltis.

O rapaz desaba no chão, olhar perdido, buscando o teto. Fica imóvel. Não pisca. Não mexe nem a pontinha da unha do dedo mindinho. Anita sente um aperto no coração. Já tinha visto aquela cena, algumas vezes. O semblante dela era tenso, testa enrugada. Mordeu os lábios. Balançou a cabeça de um lado a outro. Sem perceber, falou alto, quase gritando: “Ah, mas pode parar por aí. Nem em sonho invente de ter outro piripaque por conta de futebol. Já foi suficiente o do ano passado, quando precisamos voar para o pronto-socorro. Dessa vez não vou ajudar ninguém. Não conte comigo. Chega”. Ainda não tinha esquecido o susto, o surto, o pavor, a agonia, o namorado todo travado, sem nem conseguir falar, o médico do plantão dizendo “cuidado, infarto pode vir desse jeito”.

Sem prestar muita atenção ao que dizia a companheira, Ernesto olha o relógio. Seis e quarenta. Já escureceu. Ainda estatelado, ele começa a ouvir cadeiras sendo arrastadas na sala. Alguém levanta e acende as luzes. Sem dizer palavra, o pai, que passara a partida inteira andando em círculos, sempre no mesmo sentido, quase a fazer um buraco no chão do apartamento, faz o sinal da cruz, pega a imagem de Nossa Senhora de Fátima que estava no oratório, abraça-a fortemente, conversa baixinho com ela, dá vários beijos nela, faz mais um carinho e com ela sai para a área de serviço.

Como se tivesse recebido ordem do marido por telepatia, talvez um impulso elétrico conectado, ou ainda quem sabe tempestades cerebrais em sintonia, como nos experimentos do neurocientista Miguel Nicolelis, a mãe corre em desabalada carreira pelo corredor e se tranca no quarto. O irmão vai também, para o escritório. Em silêncio. Logo atrás, vão a irmã, o primo, a tia, o tio, o cunhado, a namorada do primo, o outro primo. Todos vão buscar abrigo em outros cantos da casa. As arquibancadas da sala, até então apinhadas, agitadíssimas, ficam abandonadas. Só restam ele e o irmão mais novo, encolhido e assustado num canto do sofá, olhos arregalados. Aguardam o início da disputa de pênaltis. Na lateral de campo, entre consultas e confabulações, os cobradores das penalidades estavam sendo definidos. Os jogadores recebiam aquelas massagens e aguinhas milagrosas que acabam com qualquer incômodo muscular.

Agora quase vazia, a sala parecia enorme. Os pratos e os talheres sujos de molho de macarrão do almoço ainda estavam espalhados pela mesa, que tinha sido encostada na parede, perto da porta de entrada. Tudo para não atrapalhar a visão do jogo. Já escolheram o gol onde os pênaltis serão cobrados?, Ernesto quis saber. Ninguém respondeu.  Começou a se mexer. Encolheu lentamente as pernas. Girou de lado. Apoiou-se sobre o braço direito. Fez força para levantar. São dez anos sofrendo com dores na coluna. O exame periódico de ressonância magnética feito no mês anterior diz que há acentuação da lordose lombar em decúbito, esboços osteofitários incipientes em alguns corpos vertebrais, leve abaulamento discal difuso L3-L4 que retifica o saco discal e sei lá quantas outras encrencas vertebrais complicadas. Ele chama todas essas letras e nomes de hérnias, protuberâncias e discos desgastados. Tem dor. Muita dor – que o impede inclusive de participar das peladas de final de semana com os amigos.

O ortopedista que também tinha casa de férias na cidade de Serra Negra, interior paulista, onde Ernesto passara boa parte da infância e da juventude, um tanto delas correndo atrás de bolas e comemorando os gols anotados, recomendou que o rapaz sempre se levante com cuidado, bem devagar. Flexiona os joelhos. Conta até três. Tudo bem. Apoia no sofá. Fica em pé. Estica. Não dá. Trava. Uma dor lancinante atravessa a coluna, da base da nuca à lombar. Fica tudo escuro. As pernas bambeiam. Quase cai. O irmão pula e oferece ajuda. Não precisa, está tudo bem, agradece. Respira fundo. Vai precisar ligar para o fisioterapeuta e marcar umas sessões extras de hidro, alongamentos na água. Talvez tenha de voltar a tomar anti-inflamatórios. Sugeriram ioga e acupuntura. Ele desconfia. Mas sabe que não é hora de pensar nisso. Respira fundo, mais uma vez. Passou. Ai. Acusou uma pontada, no lado esquerdo da lombar.

Consegue dar dois, três passos, lentamente. A sensação é que há uma agulha a espetar sua espinha, sem dó. O irmão já tinha novamente aumentado o som da televisão. Os jogadores com as camisas amarelas começam a se abraçar. Parecem dizer aqueles “é nois, ninguém tira, treinamos muito para chegar até aqui, não vamos perder agora, vamos fazer acontecer, fé em deus”. Ernesto não vê graça alguma nesses discursinhos motivacionais, acha todos uma grande bobagem. Se falatório ganhasse taça...

Na telinha, o técnico franzino, boné na cachola, madeixas brancas esvoaçantes, não para de beijar a medalhinha, sozinho, olhando o infinito. O velho Lobo diz a todo instante “vão ter que me engolir, vão ter que me engolir”. Mais atento, Ernesto consegue fazer a leitura labial. Começa a ouvir rojões que estouram nas ruas. Vira bicho. Sai correndo. Olha pela janela. Que merda! Parem com isso! Não ganhamos nada ainda! Isso dá um azar danado! Só comemorem depois que estivermos classificados! O irmão continua no cantinho do sofá. Agora rói as unhas, sem parar. Ameaça rir daquela ceninha patética, um maluco pendurado na janela, berrando sabe-se lá com quem, porque as ruas estavam desertas. Recebe em troca um olhar gelado, fulminante. Ernesto é uma bomba-relógio prestes a explodir.

O locutor abre a torneirinha de asneiras da boneca Emília. “É jogo para cardíaco, amigo. Pode treinar, mas pênalti é sempre loteria. Caixinha de surpresas. O que tiver de ser, será. De qualquer maneira, honramos essa camisa. Quem será que tem mais perna, mais coração? Vale a sua torcida. Haja coração!”. Cala a boca, Galvão! Sim, Ernesto acha o sujeito um falastrão, cretino fundamental. Mas acredita que o falatório do cara dá sorte. Nem pensar em mudar de canal. Os adversários com camisa laranja também ensaiam abraços, rodinhas, palavras de ordem, tapinhas nas costas. O rapaz solta o verbo novamente. Filhos da puta, viados, fregueses! Já esqueceram aquele balaço de falta, aquela bunda branca malabarista que saiu do caminho da bola na hora certinha? Entrou bem no cantinho. Vão perder de novo. Lembrou que estava em território doméstico paterno/materno, onde o código de ética e convivência dizia que não eram aceitos palavrões. Escapou, cacete, fazer o quê. Nem fez menção de pedir desculpas. Estava tenso demais. Movimentou-se para buscar assento ao lado do irmão. A coluna ainda estava levemente dolorida. Fez suave massagem. Sentou com a palma da mão esquerda a pressionar as costas. Procurou uma almofada.

Foi quando a ficha caiu. Numa espécie de viagem imagética, catapultado para outra realidade, todas as peças se encaixaram, tudo fez sentido. Ele finalmente entendeu as forças ocultas que tinham empurrado todos os outros familiares para os demais cômodos do apartamento – e segurado o irmão mais novo com ele na sala. Só os dois. Tinha sido exatamente assim na final da Copa anterior, quando a decisão acontecera também nos pênaltis, e os amarelos tinham levantado o caneco, depois de 24 anos de seca. Era isso! Quatro anos depois, bola na marca da cal de novo, claro que todos deveriam seguir o mesmo ritual. Óbvio. Natural. Obrigatório. Superstição coletiva. Irracionalidade racional – e vencedora. Sem que nada precisasse ter sido combinado. Não teve ordem, comando ou imposição. Cada um sabia o que precisava fazer. Achava lindo o futebol também por conta dessas mandingas. É isso, repetiu baixinho. Vai dar certo. Lembrou de cada um dos familiares reunidos para ver a semi, como se passasse a tropa em revista. Começou a contá-los – um, dois, três... catorze... quinze... Como quinze? Estancou. Ficou completamente pálido. Pôde sentir o sangue gelar.

Anita voltava da cozinha. Tinha ido beber água, comer um bolo de chocolate. Aproveitou e tomou um café. Foi o suficiente para deixar Ernesto profundamente irritado. Como é que alguém consegue pensar em comida em decisão de pênaltis em semi de Copa do Mundo? É como querer desafivelar o cinto de segurança e ir ao banheiro com o avião em pleno voo, coisa que a namorada também adorava fazer. E que raios afinal ela estava fazendo ali, no apartamento dos pais dele, naquele começo de noite? Ah, sim, ele tinha convidado. Mas éramos 14 na última final, lembrou. Refez as contas, um por um, usando os dedos para registrar cada um dos parentes. Catorze, confirmou. Éramos catorze. Agora somos quinze. A namorada era um elemento estranho. Fato inquestionável. Teve mau presságio. Sentiu leve tontura, tudo escureceu de repente, numa fração de segundo. Não vai dar certo. Não vai dar certo. Olhou angustiado para a companheira, acomodada tranquilamente num banquinho, ao lado do sofá. Ela ainda limpava as migalhas de bolo dos lábios. Colocou o guardanapo sujo na mesinha de canto. Cruzou as pernas. Sorriu para Ernesto. Ela não estava na sala há quatro anos, Ernesto repetia, sequer existia, eles não namoravam, nem se conheciam. Estava solteiro. Definitivamente, só podiam estar naquela arquibancada doméstica ele e o irmão mais novo. Se não fosse assim...

Ensaiou. Montou a fala na cabeça. Pensou em cada palavra. Tinha de ser rápido, certeiro. A disputa ia começar. Que merda, que merda, era horrível. Mas inevitável. Ela o conhecia, vá lá, ia entender. Já tinham passado poucas e boas por conta de futebol. A do ano passado tinha sido terrível, ele reconhece, derrota do time do coração na final do campeonato estadual, no último minuto, a fila que continuava. Lá se vão dez anos sem uma tacinha sequer. Não suportou o baque. Teve um colapso nervoso. Primeiro foram as mãos, que começaram a formigar. Não conseguia mexer os dedos, por mais força contrária que fizesse. Quanto mais tentava, mais doía. Os braços e as pernas travaram em seguida. Por fim, os músculos do rosto também foram paralisados. Tentava desesperadamente falar, mas a boca não obedecia. Saíam apenas sons desconexos. Tinha perdido o controle sobre o próprio corpo. Estava completamente inerte, entregue a uma dor que não conhecia. Teve medo. Virou a madrugada no hospital. Levou bronca do médico. Para tentar desanuviar os ânimos e manter o bom humor, saiu de lá dizendo que talvez a loucura apaixonada dele por futebol fosse mais um experimento da evolução natural darwiniana, a reforçar a seleção das espécies e forjar o Homo sapiens fanaticus futebolisticus.

Anita ficou furiosa, mas esteve o tempo todo ao lado dele. Ernesto prometeu que nunca mais aconteceria, que mudaria sua relação com o nobre esporte bretão. Durante um tempo, pouco mais de seis meses, fez terapia. Desistiu quando percebeu que o analista tinha se tornado mais um amigo com quem discutia a rodada futebolística do final de semana. Votavam nos gols mais bonitos, falavam sobre lances polêmicos. Era incontrolável, muito mais forte que ele. Para quem achava aquela relação com a pelota uma grande bobagem, ele respondia pedindo ajuda ao genial Nelson Rodrigues, que dizia que o “futebol é passional porque jogado pelo pobre ser humano”.

Verdade que, depois do trauma nervoso, Ernesto começa a ver os jogos com mais serenidade. A calmaria dura cinco minutos, no máximo - vai se deixando levar pela tensão, é tomado por ondas e impulsos, demônios que vivem nas entranhas e, quando percebe, já foi, já está novamente transtornado. Naquele começo de noite fria, semi-final de Copa do Mundo, o grau máximo de desequilíbrio fora novamente alcançado. Não tinha mais censura. Aproveitou o embalo. Precisava falar.

- Amor, é que... é... sabe... é que na final da última Copa, nos pênaltis, só estávamos eu e meu irmão aqui na sala.

- Sim, a gente não se conhecia.

- Pois é. Então. Seria bom se fosse assim de novo.

- Não entendi.

- Todo mundo já saiu daqui. Meu pai, minha mãe...

- Verdade.

- Só falta você. Acho que seria bom se pudesse sair também.

Quase travou. A última frase saiu de uma vez só, sem parar, como metralhadora, para não falhar, não empacar. O olhar de Anita foi fulminante.

- Não acredito.

- Nem eu. Mas veja bem, são só cinco minutinhos. Essa porra é semi-final de Copa do Mundo, não é joguinho contra o Bandeirante de Birigui. Não é qualquer porcaria. Você volta quando acabar. A gente comemora. Vai na minha, vai dar certo.

O irmão fazia cara de paisagem, constrangido.

Anita sabia que o namorado era um cara cheio de manias futebolísticas. Estavam juntos há quase três anos. Resignada, aceitava que ele usasse as mesmas roupas em jogos decisivos, que ficasse sempre na mesma posição e setor no estádio, que batesse três vezes no controle remoto quando a transmissão da partida fosse começar na televisão, que colocasse a mão na testa e dissesse “sai, sai, sai” quando era bola cruzada na área do time dele, que ficasse mudo desde manhã cedinho em dias de jogos importantes. Mas não entendia. Do fundo do coração, fazia força, muita força, mas não entendia. Detestava fazer o papel da vilã da história. Pensava, no entanto, se o namorado suportaria seguidas situações de enorme estresse – e, principalmente, ficava imaginando como seria quando tivessem filhos. Era com ele que ela queria casar, estava convicta. Tinha medo de ficar viúva precocemente.

A namorada sempre dizia para as amigas que Ernesto era das pessoas mais racionais que conhecera, metódico, ponderado, equilibrado, ateu convicto, a desconfiar de todas as espiritualidades. Jamais o tinha visto rezar, recorrer a apelos a anjos ou santos, nem nos momentos mais sofridos e dramáticos, quando sabia que o companheiro estava fragilizado. Ele dizia que as leis da natureza lhe bastavam. Não movia uma palha antes de pensar com cuidado sobre cada decisão que precisava tomar. Aos 30 anos, formado em História, o jovem estava concluindo o mestrado, uma pesquisa sobre a Guerrilha do Caparaó, que combateu a ditadura militar entre 1966-67, na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. Com futebol, e só com futebol, Ernesto ficava alterado.

Anita era justa, reconhecia que o namorado não se envolvia com torcidas organizadas, escapava delas, jamais se metia em brigas ou confusões, condenava qualquer forma de violência. Mas era outro sujeito quando a bola rolava. Ela ficava assustada com a transformação. Não era o universo dela. Gostava do jogo, de ir aos estádios, acompanhava os campeonatos, torcia – para o mesmo time de coração de Ernesto, ainda bem, acabava evitando outras discussões. Tinha sido no entanto criada a entender futebol como sinônimo de diversão, jamais de sofrimento. Achou que era hora de pedir truco. Resolveu bancar.

- Não vou sair desta sala. Melhor, se eu sair, não volto nunca mais.

Ernesto acusou o golpe. Entendeu perfeitamente a mensagem. Conhecia bem a namorada. Sabia que ela falava sério. Não iria recuar. Ele ficou gelado. Ferrou, pensou. Vamos perder. Já era. Sem chances. Não se deve cutucar as entidades do futebol. Não perdoam. São implacáveis. Não se brinca com tradição. Mas... fazer o quê? Sabia que não ia adiantar insistir, pedir de novo. Talvez cruzasse uma linha perigosa, sem volta. Amava Anita. Além do mais, na telinha da TV o primeiro batedor com camisa amarela já estava com a bola nas mãos, dirigindo-se lentamente ao local da cobrança. A namorada estava com cara de pouquíssimos amigos. Conformou-se.

Sentou no chão, mão direita grudada na poltrona. Exatamente como fizera quatro anos antes. Puxou o ar. Não soltou. O primeiro canarinho mandou a bola na lua. Filho de uma égua, imbecil! Acabou. Eu sabia. Ameaçou olhar para a companheira e gritar “eu avisei!”. Recuou. Teve plena noção do perigo, apesar das fortes emoções. Ainda restava uma nesga de equilíbrio, instinto de sobrevivência. Começou a sentir as mãos formigando, os músculos se contraindo. Sentiu medo dos espasmos. Esticou as pernas e os braços. Alongou. Agora não, por favor. Procurou controlar a respiração. Abria e fechava compassadamente a mão esquerda – a direita não soltava a poltrona, nem por decreto do presidente do Supremo Tribunal Federal.

Gol dos laranjas. Empatamos, mas já batemos um a mais. Mesmo assim, Ernesto empurra a poltrona e faz com que ela se choque três vezes e ritmadamente contra o sofá, comemorando. Fizera assim na última final. Era preciso repetir. Segundo gol dos laranjas. Também convertemos. Mais três batidas com a poltrona. Pressiona os dedos das mãos, três vezes, girando também os pés. Precisa soltá-los, aliviá-los. Não pode surtar. Não quer surtar. Anita olha discretamente para ele, a conferir se está bem. Parece preocupada. Os laranjas perdem a terceira cobrança – defesa espetacular do goleiro verde água! Vai que é sua, goleirão! Vai que é sua! Ernesto fica de joelhos, beija a camisa. Como há quatro anos. Volta rapidamente para a posição original. Tudo igual. Gol canarinho, empate laranja, mais um amarelo, outro laranja. Cinco batidas para cada lado. Quatro a quatro. Tudo igual. Vamos para as cobranças alternadas. Ninguém erra. Chegamos à décima rodada. Gol amarelinho. Poltrona jogada três vezes contra o sofá.

O cobrador adversário toma distância. Na sala, sem tirar a mão direita do pé da poltrona, Ernesto começa a falar bem baixinho “vai errar, vai errar, é agora, só pode ser, vai errar”. Dera certo da última vez com o cara da camisa azul e rabinho de cavalo. Ele olhou para a namorada. Sentiu o corpo estremecer, aquela sensação de “a morte está passando”, como diz a crendice popular. Era um sinal. Num átimo de segundo, seguindo os instintos e as vozes de entidades futebolísticas, já que não estava tudo exatamente como há quatro anos, resolveu entrar de vez naquela dança e inovar. Era a bola do jogo. Arriscou tudo. Correu para a cozinha. Ficou de joelhos, de frente para a geladeira. Fechou os olhos. Curvou-se para a frente. Encostou a testa no chão. Esticou os braços, na horizontal. Nunca tinha feito isso. Aguçou os ouvidos. Ficou esperando, controlando o pênalti apenas pelos sons.

Descobriria depois que a última batida laranja explodira no travessão. Levantou de um pulo só, com a festa que vinha das ruas. Disparou para a sala. Deu tempo de ver a poltrona sendo chutada com raiva pelo irmão. O móvel foi parar no meio da sala, pernas para cima. As portas dos quartos começaram a se abrir, freneticamente, numa sinfonia de chaves e maçanetas. O pai voltou correndo da área de serviço (quase derrubou a santa, cuidado, ainda tem a final). Ernesto imaginou ter visto alguém também escapando do banheiro, chorando. Palmas, urros, um primo se atirou no chão do corredor, chegou deslizando até a sala, de peixinho, tirando fina da quina da parede. Todos pularam sem dó em cima dele, pirâmide humana a amassá-lo. Não reclamou. Também não entendia nada do que gritavam. Ouviu baterias intermináveis de rojões. Buzinas começaram a tocar. Ainda não tinha vuvuzela. Alguém colocou o som da televisão no máximo. Identificou o Tema da Vitória. A sala tinha virado uma verdadeira feira livre. As arquibancadas – nada de padrão FIFA – estavam novamente lotadas. Exultantes.

Quando conseguiu recuperar os sentidos, se livrar dos abraços, camisa ainda mais ensopada, apertou a coluna que latejava. Correu para ver o replay, a cobrança perdida pelos laranjas, que classificou os amarelos para a final. As mãos não formigavam mais. Apalpou o rosto. Massageou as bochechas. É, estou bem. Tudo certo. Será que aprendi a controlar aquela porcaria?, pensou. A dúvida fez com que se lembrasse de Anita, que continuava sentada no banquinho, sozinha, olhando fixamente para a TV. Já tendo voltado do inferno, novamente em sua rotação normal, procedimento operacional padrão, Ernesto tinha plena consciência da bobagem que havia feito. Sem jeito, aquela clássica expressão de “preciso reparar a cretinice” escancarada no rosto com um baita sorriso amarelo, foi lentamente até a namorada, de joelhos. Você é pé quente! Dá sorte! Vamos ver juntos a final! E eu nem passei mal... Me abraça?

Ela só levantou a sobrancelha esquerda, sem alterar o tom de voz. Foi firme.

- Vamos conversar lá fora.

- É... Você viu, eu nem passei mal.

- Lá fora.

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