segunda-feira, 15 de agosto de 2011

PROTESTOS EM LONDRES - "O PASSADO É UMA ROUPA QUE NÃO NOS SERVE MAIS"

Costurar essa narrativa não é tarefa simples, mas, passados quase dez dias do início dos protestos na Inglaterra, com os elementos que consegui reunir, penso ser possível sugerir duas ordens de reflexões. 

Em primeiro lugar, nota-se mais uma vez um alinhamento ideológico automático entre governos conservadores e parcela considerável dos veículos de comunicação. Se dependêssemos do jornalismo hegemônico a que temos acesso diariamente, concluiríamos rapidamente, sem grandes dificuldades ou exercícios mentais, que os jovens ingleses, talvez motivados por algum tipo de pesadelo noturno, acordaram com uma vontade imensa e incontida, selvagem mesmo, de quebrar vidraças, saquear lojas e supermercados, virar carros, invadir delegacias e incendiar casas e prédios. Eram todos vândalos, bandidos, membros de gangues que andavam encapuzados pelas ruas da cidade, a espalhar pânico e terror. 

No fundo, o que o discurso governista reverberado pelas narrativas midiáticas pretendia era criar cortina de fumaça, desviando a discussão de suas verdadeiras raízes e contextos, de suas histórias. Permanecer na superfície e evitar mergulhos de compreensão significa também agir para impedir que, em uma dinâmica dialógica, os jovens de Londres sirvam como exemplo ou inspiração para lutas que se espalham pelo planeta (Cairo, Madri, Santiago, Tel Aviv...), além de tantas outras que estão por estourar. Era preciso isolá-los, tratá-los de forma rasa, demonizá-los. Já imaginaram afinal se fôssemos lembrar que os protestos eclodiram justamente nas periferias, nos bairros e áreas mais pobres e marginalizados de Londres? Já pensaram no perigo que representa sugerir reflexões sobre o fato de a Inglaterra de Margaret Thatcher ter sido, ao lado dos Estados Unidos de Ronald Reagan, ainda nos anos 1980, uma das pioneiras na adoção das políticas excludentes neoliberais? Nem pensar. 

A vociferação simplista e genérica do "são bandidos" tinha ainda outro propósito - esvaziar as manifestações de conteúdo político e criminalizar os protestos, em amplo sentido, para tratá-los apenas como caso de polícia e procurar justificar a repressão (mais de 1600 pessoas já foram presas), legitimando os cacetetes, as bombas de gás lacrimogênio, as invasões a residências na calada da noite, a censura às redes sociais - era a "única forma de combater esse vandalismo", disse o atônito e perdido governo inglês à opinião pública, em várias oportunidades. Os jornalões compraram rapidamente a versão. 

Ainda sobre a tabelinha discurso oficial inglês-narrativas midiáticas, alcançou repercussão negativa por aqui uma das tentativas jornalísticas mais descaradas de associar a qualquer custo jovens que protestavam com gangues criminosas. Aconteceu em entrevista veiculada na quarta-feira, dia 10 de agosto, na Globonews. A tese da emissora já estava pronta - só faltava confirmá-la com um especialista. Mas, como diria o mestre Mané Garrincha, esqueceram de combinar com o entrevistado. Caíram do cavalo. O apresentador abriu a conversa perguntando ao sociólogo Silvio Caccia Bava: "não estão aproveitando o caos para praticar crimes?". O pesquisador respondeu: "Não vejo assim. Estamos vendo de fato um contingente de jovens pobres, na maior parte negros, em bairro multiétnico, com educação deficiente. Sem futuro, explodem em revolta". A apresentadora insistiu: "mas não são marginais, não estão cometendo crimes?". Bava emparedou: "você chamaria de criminosos os 100 mil chilenos que ontem estavam nas ruas de Santiago?". Xeque mate.

Se estivessem dispostos a combater o senso comum, contemplar pluralidades e superar tabus (ora, são alguns dos tão cantados em verso e prosa princípios editoriais das Organizações Globo, não?), os apresentadores da Globonews teriam lido o texto de Mary Riddell, do Daily Telegraph, que destacou que "o fato de a maior onda de violência nas últimas décadas ter ocorrido sobre um cenário de economia global prestes a fracassar não é coincidência. As causas de recessão estabelecidas por J. K. Galbraith, no seu livro The Great Crash 1929, foram as seguintes: má repartição de rendimentos, um setor de negócios comprometido num “roubo corporativo”, uma fraca estrutura bancária e o desequilíbrio na exportação/importação". 

Poderiam ter buscado ajuda também em reflexões como as apresentadas pelo filósofo Vladimir Safatle em entrevista concedida ao Sindicato dos Professores de São Paulo: "Voltamos para uma situação típica do início do século 19, que é um contingente da população que está totalmente excluído de qualquer possibilidade de amparo do Estado. Todos acompanhamos como o governo inglês reduziu o orçamento social nesses bairros que estão passando por violências, os clubes públicos ali que eram 13, hoje são cinco. A Inglaterra colocou na rua 400 mil funcionários públicos, gente que atuava na saúde, na educação, na assistência social. Esperavam o quê? Que as pessoas fossem ficar aplaudindo? Que seriam resignados? Esses jovens se sentem excluídos da vida social e da perspectiva da vida social. Então eles partem para uma violência pura e simples". 

Teria valido a pena ainda consultar artigo de Seumas Milne, do Guardian, que reforçou que "os distúrbios irromperam em várias partes do que é hoje a cidade mais desigual do mundo desenvolvido — onde a riqueza dos 10% mais ricos atingiu 273 vezes a dos mais pobres — atraindo jovens que tiveram sua ajuda de custo em educação cortada justamente no momento em que o desemprego de jovens bateu recorde e o acesso à universidade foi dificultado depois que as mensalidades foram triplicadas. (...) A maioria dos que participaram não tem nada a perder, numa sociedade que os trancou para fora ou num modelo econômico que atolou na areia". 

Um novo mundo?
A segunda reflexão sobre os protestos em Londres que quero sugerir está relacionada a textos publicados, durante a semana que passou, por dois pensadores - e que me provocaram choques e chacoalhões intelectuais, uma saudável inquietação, ao chamar a atenção para o momento de profundas transformações que estamos vivendo. Para os pesquisadores, a velha ordem, à esquerda ou à direita, aquilo que conhecemos como projetos de sociedades no século XX, estaria com os dias contados. Ainda não se sabe ao certo o que se quer - mas, nas praças e nas marchas, parece crescer a consciência sobre o que não se quer.

Em artigo publicado em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, na terça-feira, 09 de agosto, o filósofo Vladimir Safatle escreveu que "essas milhares de pessoas dizem algo muito mais irrepresentável, a saber, todas as respostas são de novo possíveis, nada tem a garantia de que ficará de pé, estamos dispostos a experimentar algo que ainda não tem nome. Nessas horas, vale a lição de Maria Antonieta: aqueles que não percebem o fim de um mundo são destruídos com ele. Há momentos na história em que tudo parece acontecer de maneira muito acelerada. Já temos sinais demais de que nosso presente caminha nessa direção. Nada pior do que continuar a agir como se nada de decisivo e novo estivesse acontecendo".

No domingo, 14 de agosto, foi a vez da socióloga holandesa Saskia Sassen, entrevistada pelo caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo, afirmar que "é mesmo impressionante a quantidade de manifestações de rua. A economia roubou desses jovens um futuro razoável e o sistema político roubou-lhes a voz política, a capacidade de serem ouvidos. A rua se tornou, portanto, o espaço para a política daqueles que não têm acesso aos instrumentos formais. O fio condutor que, a meu ver, une todas essas manifestações é uma estrutura de luta social. (...) Vivemos numa situação de extremos. Temos uma vasta fome em partes do mundo, ao passo que temos também jovens com educação que não estão aceitando o fato de que terão uma vida pior que a dos pais. Isso me faz crer que chegamos a um tipping point, um momento de mudança".

Pensando sobre tudo isso, inevitável não lembrar de "Velha Roupa Colorida", canção que se destaca na voz fanha de Belchior, mas que ficou imortalizada na voz da genial e inesquecível Elis Regina - "Você não sente, não vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo. Que uma nova mudança em breve vai acontecer. O que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo. E precisamos todos rejuvenescer".

Ainda como lembra a canção, "o passado é uma roupa que não nos serve mais". Talvez seja hora mesmo de trocá-la. Para que, como lembra Safatle, nossas cabeças não rolem - como aconteceu com Maria Antonieta.

5 comentários:

  1. Carlos Eduardo Cunha15 de agosto de 2011 às 07:31

    Boa Professor ! Há maneiras delicadas de se elogiar, mas seus artigos são Fudidos ! Abre nossos olhos para a cortina de fumaça que se coloca na nossa frente !

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  2. Sim, Fran, vivemos tempos de mudanças! Ótimo texto.
    Bj

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  3. Chico, quando tiver tempo assista esse vídeo com depoimento de um morador negro que vivencia os conflitos e com certeza foi contrário ao que os jornalistas esperavam. Um relato forte e honesto! http://www.youtube.com/watch?v=8W0dOuqWOAs&feature=player_embedded#at=416

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  4. Algo que também escapou das análises sobre o assunto é o fato de que a onda de protestos em Londres se assemelha muito com a ocorrida nos subúrbios franceses, em 2005. Até mesmo o tipo de ação é parecido e a tentativa de caracterizar os manifestantes como "bandidos".
    http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u89621.shtml

    Outra coisa que me veio a cabeça foi o filme "Faça coisa certa", do Spike Lee, que retrata esta situação de panela de pressão prestes a explodir...

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  5. Gostaria de parabenizar o prof. Chico pelo excelente texto publicado em seu Blog. Sou professor de Geografia, e compartilho com ele as idéias, criticas e indignações a respeito desses últimos acontecimentos que se espalham sobre as principais cidades globais.
    Ao professor Chico, os meus sinceros parabéns.
    Prof. Marcos
    geo_marcosm@yahoo.com.br

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