quarta-feira, 26 de outubro de 2016

BOLEIROS DO ÉDEN


Nem bem tinha chegado ao Paraíso dos Craques (sim, ele existe, é uma ala especial do Jardim do Éden, acessível apenas aos boleiros fenomenais), ainda tentando entender o que tinha acontecido e se adaptando à nova morada, e Carlos Alberto Torres foi logo dando as ordens.
- Vamos jogar sempre no 4-3-3, com laterais atacando o tempo todo. E vai ser um futebol bonito. Arte, como fez a Seleção de 1970. Nada de bicões ou caneladas.
Mauro Ramos e Bellini se apressaram a receber o mais novo e ilustre morador.
- Dá cá um abraço, Capita!
Um abraço de três gênios que levantaram a taça de campeões do mundo.
Ressabiado, Zito, o dono da bola do Éden, também com faixa de capitão (alvinegra) no braço, resmungou.
- Carlos Alberto, aqui quem define esquema de jogo sou eu.
Doutor Sócrates apaziguou.
- Calma, moçada. Podemos resolver essa parada democraticamente.
- Tudo bem, vamos pensar nos esquemas. Mas vocês já combinaram com os russos?, quis saber um baixinho das pernas tortas. Era o Mané.
- Só jogo se for no time do Garrincha, resmungou Nilton Santos.
- Topo ser reserva do Félix, sem problemas, disse mansamente Gilmar.
- E eu revezo com o Castilho, completou Félix.
Atento à conversa, Dener treinava embaixadinhas. 301, 302, 303, contava. Sem deixar cair a pelota.
- Vai demorar muito? Quero mais é jogar!, gritou o moleque.
Carlos Alberto e Zito terminaram de distribuir os coletes.
- Vai começar!, avisaram, juntos.
Um minuto de silêncio.
- Posso treinar esse time?
Todos olharam para o Capita e para o Zito.
Os dois sorriram. E responderam ao mesmo tempo, numa tabelinha ensaiada.
- Claro, Telê. Mestre Telê. Ninguém melhor que você para treinar esse time.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

TRISTEZAS

Acordou com a firme disposição de reverter o estado de espírito que tinha sido apontado pela filha no dia anterior, depois de ler mais uma das tantas crônicas que ele anda escrevendo. 'Pai, o texto está bacana. Mas o final é muito triste. Você anda muito triste'. Ainda era cedo. Resolveu tirar um dia de folga. Arriscou ligar para um amigo de infância, com quem não falava há anos. Conversaram um tanto. Muitas risadas. Preparou um belo café da manhã. Pão na chapa. Queijos. Sucos. Frutas. Bolos. Sentiu-se revigorado. Olhou de relance as manchetes dos jornais. Prefeito eleito de São Paulo vai privatizar até o Parque Ibirapuera. E a velocidade nas marginais vai subir de novo. Bateu desânimo. 'Vou sair para caminhar'. Viu na televisão do bar da esquina o discurso da primeira-dama vestida de princesa. Bela, recatada e do lar. Longe se vão os tempos da presidenta grosseira e histérica. Brasil angelical. Princesas. Vamos tirar o país do vermelho. Voltou para casa macambúzio. Entrou no banho. Deixou a água da ducha massagear as costas durante quase meia hora. Bateu a vontade de almoçar numa churrascaria. Lá se foi. Refestelou-se com alcatras e picanhas apimentadas, suas carnes preferidas. Voltou a sorrir. Sacou o celular e mandou uma selfie para a filha, fazendo uma careta. 'Melhor assim?'. Na mesa ao lado, um grupo de gestores, pulôveres coloridos amarrados nas costas, comemorava a aprovação, na Câmara dos Deputados, da medida que entrega o pré-sal brasileiro a empresas estrangeiras. Terminou de almoçar sem nem bem sentir o gosto da sobremesa. Torta de limão. Mastigava, mastigava, mastigava. Engolia. Mirava o infinito. Foi tirado do estado de transe pelo garçom. 'Mais alguma coisa?'. Pediu um café. Pagou a conta, mecanicamente. Débito. 'Eu prometi para minha filha'. Esboçou outro sorriso. Parou numa livraria. Sentiu-se acolhido. Passeou pelas prateleiras. Folheou lançamentos. Não resistiu. Comprou os novos do Vargas Llosa, do Cristovão Tezza, do Daniel Galera e da Elvira Vigna. Em êxtase, correu para chegar em casa e começar as leituras, interrompidas apenas para acompanhar, já início da noite, a partida do time do coração no Brasileirão. Vila Belmiro. Reta final do campeonato. Estreia da camisa nova. Vai dar Libertadores? Acho que sim. Alegria, alegria. Por impulso, puro vício, zapeou e parou no jornal global. Governo já tem os votos para aprovar a proposta de emenda constitucional que vai cortar gastos públicos. Supremo Tribunal Federal decide que prisões podem acontecer após condenações em segunda instância. Sem os repasses do Fies, cai número de alunos matriculados no ensino superior. Governo finaliza nesta quinta-feira texto da reforma da previdência. Sorumbático, desligou a TV. 'Filha, eu tentei. Me desculpe. Quem sabe amanhã'. Começou a escrever mais uma crônica. Triste.