domingo, 20 de setembro de 2015

FUTEBOL QUE CASTIGA DRIBLES

'Roda, roda. Abre na lateral. Boa. Perfeito. Agora volta com o fixo, está livre. Sai para receber. Atenção, sem rifar. Sem perder a bola. Avançou um ala, o outro fica. Fica, porra! Eu mandei ficar!". Do banco de reservas, ao lado da mesa de arbitragem, o professor gesticulava e berrava, nervoso. Tinha a prancheta na mão esquerda, a direita com dedo em riste, apontando o que queria que fosse feito. Bombardeio de instruções para seus comandados. O que ele quer mesmo? Moleques de dez anos. Quem via das arquibancadas tinha a impressão de que os garotos estavam atordoados, sem saber se deveriam se concentrar no que acontecia em quadra ou se prestavam atenção nas palavras - às vezes pouco amistosas - que vinham do treinador. "Olha a marcação, já falei. Cuidado com a sobra. Olha as costas. Mas que cacete, que merda! Parece que não treinou. Quer sair? Quer sair?". Os boleiros se esforçavam. Mas as pernas pesavam. Tremiam. Nitidamente. Medo. Paúra. Pânico de errar. Qualquer passe mais forte ou torto, adversário a recuperar a bola, lá vinha expressão de desespero, mão levantada e espalmada, imediato pedido de desculpas dirigido ao banco. "Perdão, professor, foi mal aê. Foi mal. Tentei. Eu tentei". O time jogava numa retranca de dar sono. Os quatro na metade da defesa da quadra. Sem arriscar. No vestiário, o técnico tinha sido claro. Claríssimo. "Caralho, é para jogar na boa. Só na boa. Sem arriscar. Quero a posse de bola. Toca, recebe, volta. Girando, sempre girando. Vamos jogar no erro deles. O empate não é ruim. Entenderam?". O que se via dentro das quatro linhas era a obsessão mecânica por fazer valer os combinados feitos durante a preleção. Robozinhos em ação. "Corre, corre, vai!". O fixo corria. "Pára, cerca, cerca!". O ala cercava. "Para trás, acalma, recomeça!". O atacante recuava a bola. As estatísticas do auxiliar do treinador apontavam 72% de posse de bola. Magistral, perfeito, disse o treinador, ao observar as marcações num tablet. Nenhum chute a gol. Acontece. É apenas um detalhe. Perto do alambrado, um pai torcia em silêncio. Tinha visto jogar a Seleção do Telê. Aquilo era um espetáculo, oitava maravilha do mundo. Valdir, Leandro, Oscar, Luizinho e Junior; Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico; Serginho e Éder. Tinha ódio do insosso futebol de resultados. Sabia que o filho gostava de driblar - e tinha habilidade invejável para a idade. Nas peladas do bairro, nas brincadeiras no prédio, era sempre o primeiro a ser escolhido. Enfileirava adversários, dava dribles da vaca, rabiscava para lá a para cá. Tinha chute forte e bem colocado. "Sai dessa trava, garoto. Esquece esse treinador quadrado. Você pode muito mais. Joga a sua bola. Chega de regra. Alegria", murmurava, bem baixinho, para não afrontar nem desrespeitar o técnico - que, num pedido de tempo, usou o canetão azul para berrar mais um tanto e riscar trocentas vezes uma tal jogada ensaiada e o esquema tático na prancheta. A molecada se olhava, ponto de interrogação coletivo, pedido assustado de ajuda. "É assim que eu quero. É assim!". Balançaram as cabeças, afirmativamente. Sem entender. Na volta da partida, apito do juiz, a bola caiu no pé do Menino. Estava na linha da área. Pensou em recuar para o goleiro, para livrar-se da pelota e não se comprometer. Sem querer, parou o olhar no alambrado, bem onde estava o pai, que piscou para ele. Sentiu um estalo. Virou o corpo e saiu pelo meio, deixando o atacante adversário para trás, abobado, sem reação. "Na lateral, na lateral", berrava freneticamente o técnico. "Solta essa porra dessa bola". Menino fez que não ouviu, agora é comigo. Seguiu avançando. Passou o pé por cima da bola, gingou, pedalou, deu mais um giro, livrando-se do segundo marcador, engatando uma quinta marcha, em diagonal. "Filha da puta, não faz isso, vai perder a bola. Toca! Solta essa porra dessa bola! Vai dar contra-ataque, sua besta". Menino respondeu com rolinho estupendo, deslizando a redonda pelo meio das canetas do primeiro zagueiro. "Eu mandei tocar! Agora!". Cabeça erguida, tronco reto, bola presa na canhota, olhou o gol. Cortou o goleiro, que tinha saído atabalhoado, e rolou de leve, da entrada da área, já saindo para comemorar. O pai agora não fazia mais questão de esconder a torcida. "Vai, vai, vai...", quase entrando na quadra para empurrar a bola, que corria manhosamente na direção do gol. Um golaço. Arte pura. Improviso. Rebeldia. O segundo zagueiro, no entanto, resolveu manchar a pintura e, num carrinho espetacular, salvou em cima da linha. Pecado. Até o árbitro cerrou os punhos e irritou-se, discretamente. Em pé, eufóricos, os torcedores nas arquibancadas soltaram um "uuuuuhhh!" que durou alguns segundos. Aplaudiram o Menino, que deu um murro no chão, lamentou com um "que droga" e voltou correndo para a defesa, para assumir seu lugar de origem. Colérico, pulando como uma perereca, o professor berrava e babava. Cuspia para todos os lados, atingindo todos os reservas. "Vai sair. Babaca. Irresponsável. Olha o que você fez. Quer me ferrar? Sai. Eu avisei. Sai. Agora". A placa de substituição subiu, indicando que Menino estava fora do jogo. Balançou a cabeça. Mas não disse "a". Obedeceu. Pediu água, refrescou a nuca. Do banco, viu seu time obediente taticamente e bem treinado perder no último minuto da partida, numa bola espirrada que os zagueiros não conseguiram cortar. Com 81% de posse de bola. O técnico foi para o vestiário fuzilando o Menino com o olhar. Tudo que conseguiu dizer foi "no meu time, você não joga mais". Menino baqueou. Deixou escorrer uma lágrima. Segurou. Jogar bola era sua paixão. Pegou sua mochila e foi procurar o pai na arquibancada. Cabisbaixo, triste. O pai fez um carinho nos cabelos do filho e disse "ei, assim não. Levanta essa cabeça". Menino esboçou um sorriso, leve, de canto. Buscou de novo os olhos do pai. Piscada. Caiu na gargalhada, sem dó. "Fui bem, né, pai? Ia ser um golaço! Puta merda!". Ganhou outra piscada, um abraço longo e apertado. "Foi uma baita jogada. Neymar não faria melhor", exagerou o pai, no ouvido do Menino. "Vai tomar banho e se trocar. Te espero". Menino saiu correndo. Parou. Acenou. "Valeu". O pai piscou.  

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Crônica inspirada no texto de Ugo Giorgetti - "Ouviram do Ipiranga" - O Estado de São Paulo, 20 de setembro.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

FUTEBOL FRASE-FEITA

Não deixa chegar. Se chegar, ninguém segura. Empolgou. A torcida é o décimo segundo jogador. Vamos buscar a vitória, mas o empate não é um mau resultado. Jogar fora de casa é sempre mais difícil. Gol na casa do adversário vale dois. Melhor é sempre sair na frente. É muito ruim correr atrás do prejuízo. Jogamos com o regulamento debaixo do braço. Eita, apito amigo. Juizão operando hoje. Está de brincadeira. Esqueceu o apito em casa, professor? Só contra a gente, só contra a gente. Uma vezinha contra os caras, vai. Não fala comigo. Está chegando a hora, está chegando a hora. Esquenta, esquenta. Vamos ligar! Motivação é tudo. Pai nosso, que estás no céu, santificado seja o vosso nome. Vamos ligando, vamos ligando. Não se brinca em decisão. Tira, tira, tira. Pega, pega, pega. Olha o rabo! Cuidado com o ladrão! Mata, mata, mata! Quebra essa bola, maluco! Vai, pega esse passinho... Deixaram gostar do jogo. Está namorando com a zona do rebolo. Zona da confusão. Zagueiro marca. Volante rouba a bola e passa, Meia arma. Atacante faz gol. Se fosse bom, não seria zagueiro. Goleiro? Era sempre o último a ser escolhido nas peladas da rua. Foi uma guerra. Foi uma batalha. É só um jogo. É uma caixinha de surpresas. Ninguém pode prever o que vai acontecer. É pura paixão. O grupo está fechado. Seguimos as orientações do professor. O técnico continua prestigiado. Ninguém derruba treinador. Foi-se o tempo. Não tem mais bobo no futebol. Tudo pode acontecer. Que bomba! Que bica! Que tiro! Que petardo! Que furada! Que frango! Que peru! Goleiro mão de alface! Deixa de bater roupa! Que merda! É uma besta. É bestial. É a festa das arquibancadas. Não é possível, tem um sapo enterrado nessa área. Só uma palavrinha, por favor. Como você viu o jogo? Cada um pega o seu. A bola, a bola, a bola... não o jogador. Um passa, outro recebe. Pé trocado, perigo aumenta. Colocou no ângulo com a mão. Que pintura! Olha o sem-pulo! Fecha as pernas. Olha a caneta. O rolinho. Olé! O drible da vaca. O elástico. A flecha. Fez fila. Entortou a espinha. Deixou falando sozinho, com a bunda no chão. As duas linhas de quatro. A infiltração. Precisa subir a marcação. Aperta! Não marca o goleiro. Não, não, nada de dois em um. Jogaram por música. Jogaram como nunca, perderam como sempre. Treino é treino, jogo é jogo. Já combinaram com os russos? Foi épico. Inesquecível. Momento mágico. Fim de espetáculo. Que me desculpem os cricas, mas a beleza dos clichês boleiros é fundamental.