quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

2015


"A revolução acontece quando o extraordinário se transforma em cotidiano" (Ernesto Che Guevara).

Um 2015 de muitas revoluções para todos. 


domingo, 21 de dezembro de 2014

COM OU SEM 3D?

Discussões políticas-cinematográficas acaloradas em uma manhã seca, quentíssima e grudenta de um preguiçoso domingo de férias.
- Vamos ver o Hobbit?, convidou Elisa Marconi.
- Sim!, gritamos todos.
Primeiro tema da pauta do dia superado e resolvido por consenso.
- No final da tarde, sugeri.
Proposta também aprovada com quatro votos, sem divergências, questões de ordem ou de encaminhamento.
- 3D ou não?, continuou Elisa, presidindo a mesa.
A bancada rachou. Discursos e argumentos inflamados.
- Sem 3D!, bradou Luiza.
- Com 3D!, defendeu Daniel.
Eu disse que era indiferente. Abstenção. Elisa engrossou o desejo da bancada feminina. Voto de minerva. Daniel ficou isolado. Mas não desistiu.
- Deve ser muito mais emocionante com 3D.
Em silêncio, ponderei e concordei. Fiquei imaginando as batalhas dos cinco exércitos ao alcance das mãos. Mas Luiza respondeu com propriedade.
- Eu fico com muita dor de cabeça. E a mamãe também prefere sem. Dois a um. Vence a maioria. Democracia.
O moleque resolveu apelar para teses aecistas.
- Então vou pedir seu impeachment!
Achei mais sensato suspender a sessão extraordinária. Breve recesso. Para acalmar os ânimos. Voltaremos em breve, com as resoluções finais.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

REVISITANDO PALAVRA CANTADA

Espíritos dezembrinos. Corações sinceramente abertos a retrospectivas críticas e a caraminholar planos para os 365 dias vindouros. Ventos de uma boa e alegre nostalgia entraram pela janela do quinto andar de um prédio que fica no topo de uma das tantas ladeiras do bairro de Perdizes. 

Procura daqui, fuça de lá, não gosta desse, não quero aquele. Nariz torcido e caretinha para vários filmes. Nem pensar em desenho animado, adolescente que já é. Sem muita paciência para escolher, é verdade, como de costume. Mas depois de uns cinco minutos, finalmente Luiza dá um grito de quem ganhou a caça ao tesouro. Pai, posso alugar esse show do Palavra Cantada? Está no NOW, três e noventa. Quero ver. É aquele que a gente foi, tinha o DVD. Eu adorava, o Dani também. Deixa, deixa, deixa, vai. 

Devo ter feito cara de espanto. Fui pego de surpresa, confesso. Nada de Harry, Zayn, Louis, Niall ou Liam? Nada de One Direction? Trocados por Sandra Peres e Paulo Tatit? Autorização imediatamente concedida. Quem sou eu para atrapalhar esse reencontro repentino e delicioso com a infância? 

Palavra Cantada. A Lui era menininha; o Dani, um bebê. Era uma febre. O tal amado DVD, de um show no Auditório Ibirapuera, rodava várias vezes por dia, sem tréguas. Até quase furar. Com direito a rodas, palmas, danças e coreografias imitadas e inventadas. Tombos, cambalhotas e gargalhadas. "Brincadeira, choradeira, Pra quem vive uma vida inteira. Mentirinha, falsidade, Pra quem vive só pela metade". 

Paulo e Sandra são Luiza e Daniel no colo, leite na mamadeira, passeios no carrinho, manhas no berço, nas sonecas das tardes, nos tanques de areia, nas brincadeiras de bonecas e bonequinhos, nos tapetes coloridos de livrarias ouvindo histórias e fuçando prateleiras. Perninhas curtas, braços pidões sempre estendidos. Abraços e beijos estalados. "Rato, meu querido rato. Eu não sou assim de fino trato. Pra selar este contrato. Minha luz é passageira. Fico sempre por um triz. Mesmo quando estou inteira. Vem a nuvem me cobrir. Ela sim, nuvem faceira. É que lhe fará feliz". 

Eram os tempos da escola Alecrim, os amigos e amigas inseparáveis, a Lulu, a Sossô, a Julia, a Dani, o Danilo, o Ian, o Ernesto, além das aventuras no cavalão branco, no balanço de pneus, na ponte colorida, na caverna do urso imaginário. Saudades dos banhos de esguicho só com calcinha ou cueca, no ritmo gingado da capoeira e da malemolência dos primeiros toques na bola. "Gosto quando vou brincar na rua. Gosto quando encontro meu amigo. Gosto quando a mãe do meu amigo. Me oferece uma bolacha. De água e sal". 

Lembro de termos ido a três shows do Palavra. O primeiro foi comemorativo, o famoso, no Ibirapuera, com o palco se abrindo ao fundo e revelando os encantos do Parque na música final, para deleite das crianças, boquiabertas e sem piscar. O segundo foi uma espécie de acústico, apresentação intimista para pequeno público, na FNAC de Pinheiros. Conseguimos os três últimos lugares, quando os dois já ameaçavam beicinho e faziam menção de começar a chorar, decepcionados. Não foi só: ao final, abraços, beijos, fotos e autógrafos no CD. "Luiza e Daniel, beijos do Paulo e da Sandra". O terceiro, animadíssimo, foi num carnaval, com direito, claro, às canções do CD Carnaval. Sem esquecer os clássicos. "Entre o Oriente e ocidente. Onde fica? Qual a origem de gente? Onde fica? África fica no meio do mapa do mundo do atlas da vida. Áfricas ficam na África que fica lá e aqui. África ficará". Os tambores dessa música são impressionantemente fortes e tocantes. Tribais. Contagiantes. 

Eles gostavam muito também dos Saltimbancos, Casa de Brinquedos, Arca de Noé, Plunct-Plact-Zum, cantigas de roda, Hélio Ziskind. Mas não havia quem pudesse concorrer com Palavra Cantada. Quantas não foram as vezes em que se fantasiaram de Paulo e Sandra, na companhia da prima Maristela, e atormentaram a vida da tia-madrinha para que desenhasse a dupla com seus instrumentos musicais. Palavra Cantada é cheirinho de infância saudável e feliz. Gosto de diversão com cidadania. Textura híbrida de ritmos maluca e harmonicamente variados e costurados. É também um tantão do meu aprendizado como pai. "Lápis, caderno, chiclete, pião. Sol, bicicleta, skate, calção. Esconderijo, avião, correria, tambor, gritaria, jardim, confusão. Criança não trabalha, criança dá trabalho. Criança não trabalha..".

Estão lá de novo, grudados no sofá, só no pé com pé e esperando a sopa do neném - a garbosa fã de One Direction, doze anos, e o marrento campeoníssimo boleiro, oito anos. Com quase 43, vou lá me juntar a eles.  Saborosa sexta-feira. "Oi, oi, oi... Olha aquela bola. A bola pula bem no pé. No pé do menino. Quem é esse menino? Esse menino é meu vizinho...Onde ele mora? Mora lá naquela casa...Onde está a casa? A casa tá na rua...Onde está a rua? Tá dentro da cidade... Onde está a cidade? Do lado da floresta... Onde é a floresta? A floresta é no Brasil... Onde está o Brasil? Tá na América do Sul, no continente americano, cercado de oceano e das terras mais distantes de todo o planeta". 

AMANHÃ



Fazia muito tempo que não tinha insônia. Nem sou capaz de dizer quando foi a última vez que contei carneirinhos, sem sucesso, e vi o dia clarear, sem ter conseguido pregar os olhos. Pois nessa madrugada a maldita da danada me pegou de jeito. Sem avisar nem pedir licença. Implacável. E tome virar na cama, de um lado para o outro, setecentas e sessenta e oito vezes, sem encontrar (nem passei perto) os caminhos de sonhos para alcançar os aconchegantes embalos dos braços de Morfeu. Ariano é aquele sujeito que, além de não fugir de briga alguma (está olhando por quê?) e de ter sempre fé na vida (vai dar tudo certo, confia em mim), carrega consigo a deliciosa e teimosa mania racional de achar que tudo pode controlar. E não pode? Olhando para o teto, braços cruzados atrás da cabeça, cidade incrivelmente silenciosa, comecei a agendar, passo a passo, como vai ser o sábado. Acordar, controlar a ansiedade, votar nas eleições do Santos, controlar mais um pouco a ansiedade, almoçar, continuar controlando a ansiedade, tomar banho, não esquecer de controlar a ansiedade, vestir o uniforme. Ansiedade. Nada de ficar enrolando nos vestiários. O jogo começa seis em ponto. É importante chegar cedo, com antecedência, para preparar as arquibancadas e respeitar os convidados-torcedores. Quando o árbitro apitar e a bola começar a rolar, será preciso ter muita técnica e disciplina, como ensina o hino do glorioso alvinegro praiano, e ser ligeiro (para poder fazer tabelinhas e trocar passes com todos os que lá estarão) e hábil (para agradecer, com palavras, autógrafos, fotos e dedicatórias singulares os representantes das diferentes tribos e torcidas que prometem marcar presença).  Excepcionalmente, por motivos óbvios, na arena padrão FIFA onde acontecerá a partida literária de confraternização de final de ano – também conhecida como Arena Bar São Cristovão – será permitida a venda de bebidas alcoólicas. Recomenda-se deixar os carros em casa.  99 táxis pode ajudar. O time treinou forte, o grupo está unido, vamos colocar em prática tudo o que o professor pediu, o coração vai na ponta das chuteiras. Ousadia e alegria, muita alegria, um sete a um (a nosso favor) de alegrias, numa noite que se anuncia como inesquecível. O friozinho na barriga é inevitável. É decisão de campeonato. Já enfrentei outras finais e lancei outros dois livros, é verdade, golaços muito queridos, a sugerir reflexões sobre o fazer jornalístico e algumas contribuições sobre as relações entre Saúde e Cidadania. Mas não posso negar – “Memórias de uma Copa do Mundo” é especial. Aquele gol de placa, uma matada no peito e um sem-pulo no ângulo. Porque é meu primeiro (de muitos, espero) livro de histórias. Trinta e cinco crônicas que preservam um tanto do que foi o Mundial disputado por aqui. Relatos de um torcedor, o universo boleiro – outra de minhas paixões – em cena, em suas mais diferentes e fascinantes facetas. Ficção e realidade juntas e misturadas. Fez o caminho inverso – legítimo filho das redes sociais, saiu primeiro em formato digital, para então ter os direitos federativos e econômicos generosamente adquiridos pela Chiado Editora, que abraçou o projeto e fez nascer a tão sonhada versão impressa. Tornou-se possível graças aos bondosos incentivos dos leitores-torcedores, que fizeram tremular as bandeiras e não pararam de cantar um minuto – “publica! Publica! Publica!”. E como o mundo do futebol é marcado por mandingas e superstições (prometo seguir à risca os rituais amanhã), devo lembrar que há exatamente vinte anos, numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1994, com as arquibancadas do auditório Freitas Nobre da querida ECA/USP lotadas, explosão de afetos, defendi meu Trabalho de Conclusão de Curso e me formei nas artes e ciências do Jornalismo. Naquele mesmo dia, conheci a Elisa, amor da minha vida, eterna capitã da minha Seleção. Bons presságios. Duas décadas depois, e agora já com Luiza e Daniel, joias das categorias de base, oxalá outros universos narrativos, não necessariamente jornalísticos, estejam a exigir e cobrar minhas letras. Um novo tempo de escritas. Sei que todos já sabem, muitos já confirmaram presença. É ansiedade de autor-atleta principiante. Reforço o convite – será imenso prazer poder abraçá-los amanhã, no lançamento de “Memórias de uma Copa no Brasil”.  De certa forma, Neymar, Messi, Cristiano Ronaldo, Suárez, James Rodriguez, Robben, Feghouli, Navas, Kroos e tantos outros craques estarão conosco. Os deuses do Himalaia, senhores soberanos e protetores do futebol, também já compraram ingressos para a festa. Abraços e beijos e até lá (goooool da Alemanha...). 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

MELIANTES DE ALTA PERICULOSIDADE

Foi dos medos mais terríveis que já senti na vida. Aquela adrenalina que toma conta de cada mitocôndria de cada célula do corpo e paralisa todos os músculos. Só tenho lembrança de pavor parecido quando, aos seis anos, em férias de verão, chácara em São Bernardo, moleque abusado, achei que poderia encarar numa boa o filme "Sete máscaras da morte". Cabeças degoladas rolando escadas e mulheres afogadas em banheiras, sem contar os choques elétricos. A calça do pijama quase amanheceu molhada. Na madrugada, corri para a cama do meu avô. Três noites sem dormir. Pesadelos e lencóis cobrindo a cabeça, artimanha que, imaginava em minha incocência de criança, seria suficiente para me proteger e escapar dos assassinos televisivos que, àquela altura, tinha certeza, sabiam quem eu era e me perseguiam.
No meio da tarde de ontem, cruzamento da rua Cardeal Arcoverde com a João Moura, agradável e tradicional bairro de Pinheiros, fui tomado por aquela mesma tremedeira, subindo em ondas arrebatadoras pelas pernas e braços. O trânsito estava lento - o que não é exatamente uma novidade na cidade que é senhora da maior frota de carros do país (quase seis milhões de carangos). Amarelo. Vermelho. Parei. Antes da faixa de pedestres. Foi quando bati os olhos na ladeira onde ainda resistem bravamente alguns sobradinhos simpáticos e aconchegantes, que me remetem a cheiros e cores da minha infância. Eles estavam se aproximando. Pedaladas firmes e ritmadas. Caras de gente dos infernos. Pouco enxergava dos rostos deles, é verdade, escondidos por máscaras e capacetes. Mas eram expressões perversas. Tenho certeza. Nem olhavam para os lados. Luvas e joelheiras ajudavam a compor o figurino dos meliantes. Cavaleiros medievais repaginados, versão século XXI. Darths Vaders com roupas coloridas.
Eram três. O primeiro vinha um pouco mais à frente, como um líder destemido, seguido de perto por mais dois malfeitores. Um triângulo, típica posição de ataque. Já tinham certamente tudo combinado e e ensaiado. O comandante dá o bote. A retaguarda protege e termina o serviço. Eu era a vítima escolhida. As rodas continuavam girando em sintonia, rasgando com firmeza a faixa vermelha lulo-petista. O líder soltou a mão esquerda do guidão. Ergueu o tronco. Fez um sinal. Os três imediatamente apertaram os breques, reduzindo em seguida a frequência das pedaladas. Assaltos, sequestros-relâmpago, espancamentos... São capazes das mais terríveis atrocidades, essa escória sob duas rodas.
Travei as portas do carro. Fechei os vidros. Cerrei os dentes, maxilar doendo com tanta pressão. A mão esquerda procurou a carteira. Com a direita, digitei 190 no celular. Bastaria apertar discretamente a tecla verde com a figurinha do telefone e gritar, sei lá, 'socorro, atenção, marginais na Cardeal com João Moura'. Os policiais militares entenderiam a senha, meu sufoco. Pelo retrovisor, pude notar que a motorista do carro de trás, sei lá qual desses possantes de luxo, conversava animadamente pelo viva-voz, sem qualquer receio. Que cretina. Fiz menção de avisá-la, de gritar 'cuidado, vagabundos de bicicleta'. Recuei. Permaneci imóvel. Se perceber qualquer movimentação suspeita, não reaja, não faça movimentos bruscos e que possam assustar. É o que recomendam os bons manuais de segurança e sobrevivência nessa selva urbana.
Com todo cuidado, desligo o rádio. Tocava Raul. 'Mamãe não quero ser prefeito. Pode ser que eu seja eleito. E alguém pode querer me assassinar'. Não digo matar, que não sou dessas coisas, sou gente de bem; mas bem que tenho vontade de dizer poucas e boas para esse prefeito gato que resolveu atrapalhar o trânsito paulistano com essas malditas e imprestáveis ciclofaixas vermelhas. Para quê? Só para enfeiar a metrópole? Para atrair e juntar essa corja? Olho para elas e me revolto. Diabos, como farão os moradores dessas ruas nesse final de ano? Onde os familiares e amigos vão estacionar seus carros para as ceias natalinas e as confraternizações sempre muito autênticas e verdadeiras, embriagadas de sinceros afetos e de presentes com valores mínimos? Como vão essas pessoas carregar os perus? As saladas? Os manjares? Os fios de ovos? As cerejas e uvas? Fico imaginando a correria desbragada pelas calçadas e as trombadas, choques de travessas e tabuleiros, já que serão obrigados a deixar os automóveis sabe-se lá onde.
Foi só insight. Voltei. As bicicletas estão muito perto, sei lá, uns vinte metros, se tanto. Pé na embreagem. Engato a primeira. Cinco metros. Pedal direito, pedal esquerdo, pedal direito, pedal esquerdo, as correias girando em compassos sincronizados. Chegaram. É agora. Vamos lá. Mais duas pedaladas. Tomara que levem só o dinheiro. Dos males, o menor. Sem violência física. Não tiro os olhos deles. Eles me ignoram. Passam reto. Nem olham para mim. Escapei. Escapei! Perceberam que eu estava esperto, preparado. Só pode ser. Certamente. Vão atacar algum outro desavisado logo mais adiante. Ainda deu tempo de observar aquelas luzinhas vermelhas piscando acima das rodas traseiras. Verde. Acelerei, ainda com a adrenalina estourando. Parti cantando pneus. Pedestres olharam assustados. Fiquem espertos, seus tontos, não sou eu a ameaça. Ainda estão rondando por aí. Virei à direita na Cardeal. Músculos queimando de tão doloridos, as pernas ainda tremendo, sem conseguir controlar direito o pedal da embreagem (exatamente como acontece quando a gente faz exame de auto-escola).
O susto ainda não passou. Aquelas figuras pedaleiras não me saem da cabeça. Quem anda de bicicleta não presta. Todos sabemos disso. São gente sem qualificação. São pessoas do mal. Meliantes. Vagabundos. Muito, muito cuidado com esses calhordas. Olha, está cada vez mais difícil viver em São Paulo.