sexta-feira, 23 de agosto de 2013

EDNEY SILVESTRE REVISITA O TERROR DA DITADURA E O FRACASSO DOS ANOS COLLOR

No premiado romance de estreia, "Se eu fechar os olhos agora" (Record, 2009), Edney Silvestre arrastava sem pedir licença (que bom) o leitor para uma eletrizante trama que combinava assassinato, mistério, investigações policiais, racismo, machismo, corrupção e influências políticas da pior espécie, permeados por memórias e resquícios da ditadura de Getulio Vargas. Na obra seguinte, "A felicidade é fácil" (Record, 2011), não tão arrebatadora, menos tensa, mas igualmente bem escrita, o sequestro de quem se imaginava ser o filho de um publicitário rico e influente é o ponto de partida para um olhar aguçado sobre a soberba e a vida pautada pelo consumo das elites brasileiras, a contrastar com as mazelas e carências das periferias e dos que ocupavam a base da pirâmide, sem perspectivas de mudanças, no Brasil do início dos anos 1990.

Em "Vidas provisórias", que acaba de chegar às livrarias pela editora Intrínseca, reencontramos Edney em seus melhores momentos como contador de histórias, a conduzir a narrativa a partir dos universos de dois personagens presentes nas obras anteriores. Paulo, um dos garotos-detetive de "Se eu fechar...", é agora um jovem estudante de Direito que vive no Rio de Janeiro. Confundido com um militante da resistência armada de esquerda à ditadura civil-militar que se instalou no país em 1964, acusado de ter participado do sequestro do embaixador alemão, é preso e barbaramente torturado. Edney não poupa o leitor das descrições, dos choques, dos urros, dos cheiros, do sangue e das dores. Logo nas primeiras páginas já se lê: "Tossiu. A dor surgida nos pulmões percorreu imediatamente o corpo inteiro. Um gosto azedo subiu até a garganta e invadiu as narinas. Sentiu ainda mais dificuldade para respirar. Se ao menos conseguisse erguer o tronco. Se ao menos conseguisse. O tronco. O peso. Sobre as pernas. Se soltasse as mãos. As mãos. Os pés descalços. Sujos. Inchados. Era sangue, aquilo? No peito do pé e nos dedos?". Exilado na Suécia, depois de ter passado pelo Chile, o rapaz convive com as marcas físicas e psicológicas das sevícias. "Este é o grande poder dos torturadores. A dor não passa. O domínio deles continua", escreve o autor. Paulo casa-se com Anna, funcionária da Anistia Internacional, com quem tem dois filhos, Edward e Joseph. Torna-se funcionário da Unesco e, nos anos 2000, passa a percorrer o mundo a defender a democracia e os direitos humanos. O fantasma da ditadura, no entanto, não lhe dará sossego. Nunca mais.

Barbara, filha do motorista morto em "A felicidade é fácil", vive a absoluta falta de perspectivas, a desesperança e a decepção profunda com o Brasil governado por Fernando Collor de Melo. Foi a época em que, empurrados pelo desemprego, pela recessão e pelas poupanças confiscadas, as mentiras do caçador de marajás, milhares de brasileiros abandonaram o país e voaram para o gigante do norte, em busca de um sonho tão sedutor quanto falso de realização profissional, prosperidade e enriquecimento. Em terras estadunidenses, a jovem vive quase em cárcere privado voluntário, auto-reclusão, pânico permanente por ser imigrante ilegal, a paúra de poder ser presa a qualquer momento pelos órgãos de controle de imigração. Sem falar inglês, trabalha como faxineira e manicure de compatriotas, que buscam construir certa rede de proteção num país que não tolera estrangeiros. Encanta-se com Filipe, que morre vítima da Aids, aproxima-se de prostitutas e vê-se em determinado momento novamente ameaçada pela presença de políticos influentes e poderosos.

Nos mais de dez anos que passa no exterior, observa a mudança de perfil dos brasileiros que por lá chegam. No final dos 90, são as peruas que tomam conta da cidade de Nova Iorque. "São mulheres recentemente enriquecidas, de cabelos alisados e tingidos, idades apagadas por bisturis e injeções, faces e corpos alterados cirurgicamente, cobertas de penduricalhos, vestidas e calçadas de marcas famosas, carregando malas e bolsas de marcas famosas, carregando bolsas estampadas com nomes de costureiros, sapateiros e fabricantes  de malas".

As vozes dos dois protagonistas se intercalam, em capítulos que são diferenciados por agradáveis soluções gráficas. Chamam a atenção também os diálogos rápidos e cortantes construídos pelo autor, as breves palavras, às vezes falas que são quase grunhidos, mas que batem no leitor repletas de significados. É uma das marcas da narrativa.

Ao trazer à tona a história recente do Brasil, sobretudo nas lembranças amargas de Paulo, Edney recorre a um aspecto que já foi definidor do romance brasileiro em outras épocas: o fazer da Literatura um exercício de reflexão sobre a nossa sociedade, a nossa identidade. É uma característica que, como traço de unidade, parece já não mais fazer parte das preocupações principais da nossa geração contemporânea de escritores, pautados por saudável pluralidade temática e reconhecidos por habilidades com linguagens, mas que acabam por perder de vista a tarefa de discutir o país. No texto "A ficção que (não) discute a realidade", o professor e jornalista Fabio Silvestre reforça que "tema recorrente na literatura de autores clássicos como Machado de Assis e Graciliano Ramos, o Brasil tem sido um assunto pouco privilegiado por escritores contemporâneos".

Edney fura esse bloqueio - e de forma consciente. No booktrailer de "Vidas provisórias", diz que deseja que as pessoas se lembrem verdadeiramente o que é uma ditadura. No livro, ele escancara essa realidade. Em trecho que trata da Guerrilha do Araguaia, o militar diz a Paulo que "não sobrou nenhum terrorista para contar a história. Seus amigos revolucionários agora são considerados desaparecidos. E assim ficarão para sempre. Corpos esquartejados e carbonizados somem da História. (...) Os subversivos que me preocupam estão vivos. E estão se reagrupando. Nas fábricas, nas igrejas, nas redações, nas faculdades, até mesmo dentro das próprias Forças Armadas. Precisamos impedir isso. (...) Geisel é uma decepção. Mas vamos dar um jeito nisso, também".

As histórias se entrelaçam ainda na permanente sensação de não pertencimento, de fuga, de raízes que ficaram perdidas no passado, identidades arrancadas e apagadas, nas dores cruas do exílio. O final não é previsível, embora não chegue a ser surpreendente. Vidas provisórias que se cruzam. Prepara, talvez, mais um capítulo da saga romanesca de Edney. Quem sabe sejamos em dois anos (esse é o tempo médio da escrita dele) presenteados com um livro que tenha como pano de fundo os anos da chamada era Lula.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A BANALIDADE DO MAL NARRADA PELO ROMANCE DE JOHN BANVILLE

Frederick Montgomery é um matemático respeitado, a vislumbrar promissora carreira de pesquisador na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos. Sem muitas explicações, talvez movido pelo desejo do desconhecido, tocado pela adrenalina das aventuras, a incapacidade de criar raízes, esquece as pesquisas e abandona repentinamente a academia. Casa-se com a jovem Daphne e com ela passa a desbravar ilhas paradisíacas na Europa. Sem dinheiro para bancar as extravagâncias crescentes, envolve-se com traficantes e, mergulhado em dívidas e ameaçado pelos criminosos, retorna à terra natal, uma cidadezinha chamada Coolgrange, na Irlanda, disposto a arrecadar o que estava devendo. Ou para fugir do problema. Deixa mulher e filho como reféns. Parece não se importar. Não fala mais neles. Em casa, reencontra a mãe, com quem guarda relações tensas e cheias de arestas e divergências, além de retomar contato com um velho conhecido, Charlie French, a quem considera como pai. Na esperança de recuperar obras de arte que tinham pertencido à família, vendidas pela mãe para garantir sustento, invade a mansão Whitewater, onde os quadros estavam agora expostos, e rouba a pintura "Retrato de uma mulher com luvas", do século XVII, que teria sido feita por mestre anônimo. Pego em flagrante por uma empregada da casa, mata a pobre coitada com uma, duas, três marteladas na cabeça. Passa nove dias na casa de Charlie, sem manifestar qualquer remorso ou arrependimento - nem evidencia preocupação em esconder as marcas do crime. Também não faz menção de fugir. Apenas aguarda o inexorável. É finalmente preso. Interrogado, confessa o assassinato. Na cadeia, escreve aquela que seria sua defesa no tribunal. É esse testemunho tenso, em primeira pessoa, que chacoalha e incomoda pela aparente naturalidade, quem conduz a narrativa de "O livro das provas", romance do irlandês John Banville publicado em 1989, lançado por aqui pela Record em 2002 e que agora tive a oportunidade de ler. É a história do assassino, de sua juventude às vésperas do julgamento. Ou não. Porque o que leitor acompanha é a reconstrução dos fatos comandada exclusivamente pelos desejos e anseios de quem talvez pretenda mais despistar e esconder do que revelar. É a fala, cínica e manipuladora, de um criminoso frio, de um psicopata, de uma mente perversa que cria e recria explicações e situações, misturando realidade com fantasia, que assume ter matado porque teve a chance de matar. Sem mais. E que quase nos convence. Quase. É daquelas obras para ser lida em uma sentada, a invadir a madrugada, sem respirar. Todas as palavras e parágrafos estão em seus devidos lugares, sem firulas, sem excessos, na medida certa. Por meio da ficção, Banville, destaque da última FLIP e um dos mais importantes escritores em língua inglesa da atualidade, pega o leitor pela mão e o convida a refletir sobre o mal, o desespero, a violência e os desvios de comportamento que assombram a existência humana.

domingo, 11 de agosto de 2013

PAI


Para segurar a mão da mãe, mesmo arfando, tremendo, tenso, as pernas bambas, quando as dores do parto começam.
Para andar nas ruas com sorriso aberto no rosto, se achando o sujeito mais importante do mundo, a caminho do cartório, para registrar os filhos.
Para virar as madrugadas e cuidar das dores de barriga, mesmo tendo de acordar cedíssimo no dia (que já não era mais) seguinte.
Para embalar nos braços quentinhos.
Para contar histórias. Muitas histórias.
Para proteger dos monstros. Dos medos.
Para descer do ônibus lotado, cansado por mais um dia de trabalho, escritório em outra cidade, e ter forças e alegria para botar no colo e perguntar "foi bom seu dia? E a escola? Vamos jantar".
Para brincar de bola (mesmo não sendo a praia dele), de bonequinhos, de Genius, de forte apache, de botão, de barbie, de casinha, de aluno/professora.
Para ajudar a escolher o vestido bonitinho.
Para ajudar a dar banho e pentear o cabelo.
Para dizer "hoje não dá" quando a gente pede só mais um brinquedo. Porque a vida não é fácil. Nem só dinheiro.
Para ensinar o que nos faz seres humanos. Solidariedade. Tolerância. Justiça. 
Para correr para o hospital quando o dedo cortado fica pendurado, esguichando sangue.
Para correr para o hospital quando a cabeça quase racha na quina de um bebedouro na escola.
Para correr para o hospital tentando fazer de tudo e mais um pouco para a tosse parar.
Para marcar presença nas arquibancadas dos campeonatos de futebol e das apresentações de dança.
Para sorrir com as notas que vêm do piano.
Para mandar estudar. Para comemorar as conquistas na escola. 
Para dar bronca sobre as bobagens feitas na escola.
Para orientar.
Para brigar. Às vezes, brigas sérias. Fortes. Para a gente depois entender que ele tinha razão.
Para programar as melhores férias do mundo, na praia ou na montanha.
Para soltar e dizer "vai ser feliz. Aproveita o mundo".
Para conversar e alertar. "Cuidado, não vá beber demais. Não exagere. Cuide-se. Sem maluquices com o carro. Vai com quem? Volta com quem? Aonde vai? Quero você em casa meia-noite. Uma. Duas. Três. Quero você em casa".
Para querer saber "quem é esse novo namorado?".
Para conversar sobre as coisas da ditadura. Para chorar com as derrotas em eleições. Para comemorar as vitórias em eleições. Para torcer junto nas Copas do Mundo.
Para cortar o cabelo da gente quando a gente passa na faculdade.
Para ter certeza que somos os melhores jornalistas, advogados e professores de Educação Física do mundo. E não se fala mais nisso.
Para passar meses planejando as festas, com pastas de cores diversas debaixo do braço.
Para fazer discursos em todas as festas e, em todas elas, cantar "onde é que mora a amizade..."
Para ficar de péssimo humor e fazer caretas. Para estourar. Para passar dos limites. Porque todo mundo tem seus dias ruins. Porque todos somos humanos.
Para sonhar com os netos. Para abraçar os netos. Para ensinar os netos. Para passear com os netos. Para ser apaixonadamente apaixonado pelos netos.
Para contar para todo mundo, em qualquer situação, que tem os "seis netos mais lindos do mundo". Ai de quem discordar...
Para brigar mais um pouco. Para pedir desculpas - ele e nós.
Para ser referência. Para ser porto seguro, farol que a gente sempre mira, exemplo em quem a gente sempre se inspira e colo para aonde a gente sempre volta.
Para ser o cara. Aquele que representa.
Para dar um beijo estalado, outro, mais um, para abraçar bem apertado, cheio de carinho. E querer que o tempo pare. Agora. Pode ser?
Pai.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

MARIA RESOLVEU CONTAR A HISTÓRIA DE JESUS

O ponto de vista é original - Maria, mãe de Jesus Cristo, revela sua versão privilegiada da história e narra, em primeira pessoa, acontecimentos marcantes da vida do filho, como as bodas de Canaã, o julgamento comandado por Pilatos e a crucificação no monte Gólgota. Lançado pela Companhia das Letras, "O testamento de Maria", romance do irlandês Colm Tóibín, coloca as duas mãos num vespeiro e compra briga: para a protagonista que o escritor idealiza, Jesus, nada divino e mortal como qualquer um de nós, foi homem de bons princípios, mas deixou-se levar pela soberba e esteve acompanhado por companheiros pouco equilibrados. "Meu filho reuniu desajustados, embora ele mesmo, apesar de tudo, não fosse um desajustado, ele poderia ter feito qualquer coisa, poderia até ter sido tranquilo, também tinha essa tão rara capacidade de poder ficar a sós sem dificuldade, podia olhar para uma mulher como sua igual, e era grato, bem-comportado, inteligente".

Com a certeza de que Jesus não era filho de Deus - e ninguém melhor do que ela para negar essa condição -, Maria rejeita os milagres atribuídos a Cristo. Sabe que tais feitos são amparados pela necessidade de garantir condição superior a quem liderava multidões, sendo depois disseminados pela imaginação popular, pelas tradições orais. Como não reconhece no filho a fonte de nova religião, dá-se o direito de frequentar templos não cristãos. "Lembro-me então de me voltar e ver pela primeira vez a estátua de Ártemis (deusa grega da caça); no instante em que olhei fixamente, a estátua irradiava constância e generosidade, fertilidade e graça, talvez beleza, sim, até mesmo beleza (...) Com o dinheiro que havia poupado, comprei de um dos prateiros uma pequena estátua da deusa, que me fez sentir melhor. E a escondi".  

Depois de todo o martírio que terminou com a trágica morte do filho, Maria vive atormentada, escondida em Éfeso, sob responsabilidade de dois protetores - um deles é provavelmente João, apóstolo e evangelista. A ele, na cruz, Jesus teria dito, de acordo com relato bíblico: "homem, eis aí tua mãe; mulher, eis aí teu filho", referindo-se a Maria. Ela estabelece com a dupla de "anjos da guarda" um jogo cínico de conveniências: já na velhice, precisa deles para comer e dormir, para ser amparada e sentir-se segura, longe do alcance dos inimigos do filho; os benfeitores cobram dela que conte com detalhes lembranças da relação com Jesus, aproveitadas na elaboração daqueles que viriam a ser os evangelhos. Desafiada, não hesita em mostrar sua face humanamente violenta. Quando um dos protetores ousa tentar sentar na cadeira que teria sido de Jesus, e que Maria preservava vazia num canto da sala desde a crucificação de Cristo, ela faz uma ameaça nem tão velada. "Rapidamente encontrei a faca afiada, segurei-a e toquei na lâmina. Não a apontei na direção deles, mas meu movimento para pegá-la havia sido tão veloz e repentino que lhes chamou a atenção. Sorri para eles e depois olhei para a lâmina".

Em tempos de intensa turbulência política e de conflitos religiosos, das tensões entre judeus e romanos e de ameaças de revoltas populares, Maria sabia que, ao assumir a condição de líder das massas, Jesus corria grande perigo. Ela foi até o casamento em Canaã fortemente disposta a convencer o filho a abandonar o enfrentamento com os poderosos do Império e voltar para Nazaré, na casa da família. Já era tarde. Encontrou um Cristo irredutível, ouvidos moucos aos apelos da mãe, talvez entorpecido pelos afagos do povo que imaginava que iria defendê-lo se fosse preciso. Julgava-se inalcançável, ninguém me pega. "Compreendi que não tinha perdido a oportunidade de tirar meu filho dali, compreendi que nunca tinha tido tal oportunidade e que estávamos todos condenados". Resignada, acompanha, disfarçada e perdida na multidão, o julgamento de Jesus. Sofre horrores, sem poder gritar. Mas não fica ao pé da cruz até o final. Escapa dali antes do último suspiro de Cristo. "Mas vou dizer isto agora porque precisa ser dito por alguém ao menos uma vez: eu fugi para me salvar. Fugi por esta única razão".

Durante todo o livro, Maria é tomada pela dúvida - o que contar? Para quem e como narrar? É uma mulher solitária, vulnerável, com idade já bem avançada, mais perto da morte, tomada pela angústia, e a recordar acontecimentos dolorosíssimos. A força literária do romance vem um tanto desse exercício de retomada do passado. As memórias, afinal, são os fragmentos que somos capazes de reunir. São inevitavelmente reconstruções, com perdas e ganhos, lacunas e exageros, recordações de fato e brancos totais da (na) mente. Como então confiar plenamente naquilo que está sendo contado por Maria? Como consequência (e aqui vai percepção minha, não necessariamente motivação do autor), e também reconhecendo que falamos de distintas propostas literárias e de tempos diferentes, a obra sugere que essa mesma conexão crítica, ressabiada e de desconfiança deva ser estabelecida com outros relatos que tratam da vida de Cristo, sem adotá-los, a priori, como o estatuto da inquestionável verdade.

Para além das polêmicas e provocações religiosas, "O testamento de Maria" é uma história bem contada, sem firulas ou recursos literários rebuscados, conduzida pela voz angustiada de uma protagonista cravada por contradições, que procura escapar de um discurso hegemônico que já começava a ser forjado - "Jesus é o filho de Deus". Sensibilidade ímpar, Tóibín consegue alcançar a dor de uma alma feminina em frangalhos. Parece que não há intermediários entre escritor e leitor - Tóibín é Maria. A simbiose confere autenticidade e autoridade ao que se lê. O escritor é ainda artista com admirável capacidade de construção de cenas, descritas em mínimos detalhes. O leitor, espectador privilegiado do calvário de Jesus, é quase transportado para as vielas e casas de uma Palestina remota.

A crítica especializada parece também ter gostado do livro: "O testamento de Maria" é um dos finalistas do Man Booker Prize de 2013. O vencedor será anunciado em 15 de outubro.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

PARTO NORMAL, SEMPRE QUE POSSÍVEL. SEM DEMONIZAR AS CESARIANAS.

Eu sei, corro risco de apanhar um tanto. Mas às vezes é preciso dar a cara a tapa, assumir posições que talvez não representem "a maioria". Tem me incomodado bastante um burburinho que começa a surgir por conta do filme "O renascimento do parto", que chega na semana que vem aos cinemas. Atenção: não vi o filme, apenas o trailer, e minha crítica portanto não é ao documentário, mas à repercussão feita a partir de textos, posts e falas.

Sou fervorosa e apaixonadamente favorável ao parto normal, que certamente guarda todas as vantagens possíveis e imagináveis, em relação à cesariana. É menos invasivo. Sabe respeitar o tempo do bebê. É o ritmo da natureza. É preciso lembrar ainda que o Brasil é atualmente, segundo a Organização Mundial de Saúde, o campeão mundial de cesáreas (em hospitais particulares, chegam a representar 80% dos partos).

Uma parcela considerável dessas cirurgias poderia certamente ser evitada. São intervenções desnecessárias. Dão conta de caprichos daqueles que querem escolher quando vão nascer os bebês, porque há datas simbólicas que pretendem homenagear; há quem não queira sentir dor, vamos rápido com isso. Os planos de saúde pressionam, em evidente processo de mercantilização da medicina, porque cesareanas movimentam mais suas caixas registradoras e departamentos financeiros. Há médicos que preferem comodidade - escapam do inesperado, resolvem a questão rapidamente (o parto normal é sempre uma surpresa, pode demorar um tempão), não perdem outras consultas em seus consultórios (e grana polpuda). É fundamental esclarecer, usando as mais diferentes estratégias e recursos (escolas, campanhas, redes sociais...), as vantagens do parto normal. Falo de uma quase revolução de mentalidades. São as minhas premissas. Até aqui, tudo sossegado.

Agora vem a parte chata: recuso também com veemência certo discurso fundamentalista e intolerante, que só faz excluir e demonizar as mães que têm seus bebês por meio de cesarianas, como se fossem, essas mulheres, mães desnaturadas, quase criminosas, a jogar sobre as costas delas imensa carga de culpa e remorso, a construir certa imagem pública que nas entrelinhas diz que "são menos mães que aquelas que tiveram parto natural". Seriam "mães de segunda categoria", estariam num patamar inferior. Acho lamentável que essa contaminação de "tudo ou nada", o Fla x Flu que marca tantos outros debates de nossa sociedade, atinja e dê o tom de mais essa discussão. A saber - entre os extremos, há muito mais que cinquenta tons de cinza, não? Será que conseguimos escapar desse maniqueísmo que contempla (falsos) mocinhos e (também falsos) bandidos?

A cesariana, afinal, é mais um recurso que a medicina coloca à disposição das mulheres - e há casos, muitos casos, em que é insubstituível, procedimento fundamental, obrigatório para garantir a vida do bebê, da mãe - ou dos dois. É sinônimo de vida - não motivo para execração pública. Quando a pressão arterial sobe, nos últimos dias de gestação, e a mulher não dá qualquer sinal de contração, quando o bebê continua lá, quietinho, corre-se o risco de manifestação de um quadro de eclâmpsia. Vale insistir? Quando a bolsa estoura e, mesmo depois de muitas horas de paciente espera, a mulher não tem dilatação suficiente, o caminho fica aberto para infecções, que podem ser gravíssimas. Fatais. Tudo em nome do parto natural?

E será que as mães que precisaram recorrer à cesárea amam menos seus filhos? Guardam com os bebês relações de afetos menos intensos? Foram essas crianças menos desejadas, recebidas com indiferença? Não é cruel fazer dessas mulheres vítimas de modelos absolutos, implacáveis, de fórmulas infalíveis e truculentas até, ainda mais em momento em que estão muito mais frágeis, a exigir - e precisar receber - justamente carinho, cuidados especiais e atenção? Sim, o parto normal deve ser prioridade. Mas, quando ele não é possível, considerando princípios de saúde, a valorizar a vida, não pode significar imediatamente ataques e apedrejamentos de mulheres que precisaram recorrer à cesariana.

Que as patrulhas comecem a atirar as pedras.