segunda-feira, 29 de agosto de 2011

ESTUDANTES CHILENOS QUEREM SER OS PAIS DE UMA NOVA DEMOCRACIA


Começou com os estudantes universitários marchando diariamente e cantando "y va caer, y va caer, la educación de Pinochet". Familiares, secundaristas e professores logo engrossaram os protestos. Na semana passada, trabalhadores da iniciativa privada e do setor público organizaram uma greve geral que paralisou boa parte do Chile. E os milhares de chilenos, origens distintas, que tomaram conta das ruas da cidade de Santiago nos últimos meses, em passeatas, panelaços e comícios gigantescos, conseguiram finalmente alcançar uma relevante vitória política ao obrigar o governo do país a abandonar a posição inicial de intransigência para abrir canais de diálogo com os manifestantes. 


Acuado e pressionado, forçado a compreender a capacidade de resistência, o alcance e os significados dos protestos, o presidente Sebastián Piñera tomou a iniciativa de sugerir e de agendar, para esta terça-feira, dia 30 de agosto (agora adiada para sábado, 03 de setembro), o que chamou de uma audiência de trabalho com a líder Camila Vallejo, da Confederação dos Estudantes do Chile. Será mais um capítulo da queda de braço que coloca em campos antagônicos o mais impopular presidente do período da redemocratização chilena, que já afirmou que "nada na vida é de graça" e que conta com apenas 26% de aprovação da sociedade, e o movimento estudantil, que exige ensino público, gratuito e de qualidade.     

Para Alberto Aggio, professor titular de História da América Latina da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Franca), o que estamos acompanhando atualmente no Chile é um amplo movimento social e político de descontentamento generalizado com o modelo de educação básica e universitária que o país adotou há 30 anos, durante a ditadura do general Augusto Pinochet. "O movimento estudantil faz um questionamento profundo ao sistema educacional, que se ampliou fantasticamente, até respondendo à demanda. Ocorre que a resposta a essa pressão da sociedade se deu por meio de universidades privadas, que custam muito caro e que na maior parte das vezes não garantem qualidade de ensino. Mesmo as públicas, que ficaram em segundo plano e tiveram a expansão contida, são pagas. O governo oferece financiamentos, mas o que acontece é a reprodução de uma situação de injustiça gravíssima, pois há famílias que levam até 15 anos para conseguir saldar os compromissos e quitar esses cursos. O índice de evasão é alto", explica o pesquisador, em entrevista exclusiva ao Blog. 

Ele conta que tem amigos chilenos que, quando os filhos nascem, já abrem poupança com objetivo exclusivo de financiar futuros estudos universitários. Os bancos disponibilizam linhas de crédito específicas para essa finalidade. "Quem leva vantagem clara com essa mentalidade selvagem mercantilista e de lucros são os ricos, os mais abastados, que podem pagar para estudar. A situação tornou-se explosiva, insustentável. Há muita gente de fora. O que pode ser considerado um paradoxo, pois a economia chilena vai relativamente bem, mas não há perspectiva de futuro para os jovens. O sistema de proteção social foi totalmente destruído. Tinha restado a Educação. Hoje, nem mais", completa Aggio. Para lembrar: o Chile foi um dos pioneiros na implementação das políticas neoliberais e um dos mais aplicados alunos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Nesse processo de desmantelamento do aparato social do Estado, não há como isentar de responsabilidade a Concertación, aliança de centro-esquerda que comandou o Chile até a recente eleição de Piñera, legítimo representante da direita. A coalizão optou por uma saída da sangrenta ditadura militar que não representasse ruptura de fato com o modelo anterior. Temia-se que a redemocratização pudesse ser sabotada ou retroceder e, em nome da governabilidade do país, não foram profundas as mudanças promovidas pelos governos democráticos. "Nesse momento, a juventude critica nas ruas tanto a direita pinochetista quanto a esquerda da Concertación. Os estudantes levantam a bandeira de uma outra transição, com força e sustentação para confrontar o modelo, que foi pensado para garantir estabilidade econômica, mas não equidade social", avalia Aggio.

Mas ele faz um alerta: é precipitado e temerário afirmar que as manifestações ignoram os partidos. No Chile, há ainda uma profunda identificação com forças organizadas. Para o professor da Unesp, o que se nota é uma cultura política que se expressa como antagonista do modelo herdado da ditadura e reforçado pela democracia, mas as lideranças do movimento atuam no sentido de ampliar os canais e espaços de negociação - ou seja, reconhecem a legitimidade das instituições. "Não há discursos que terminem em propostas como 'sem Estado, sem partidos, sem organizações'", completa. De outra forma, ele concorda que as mobilizações no Chile fazem parte de um processo mais amplo - de uma crise geral da democracia representativa, que dá sinais de esgotamento.

"Não dá mais conta do dinamismo que as sociedades estão vivendo, fomentado pelas tecnologias. Há demandas novas, que o processo eleitoral e as velhas lideranças não são capazes de acompanhar. As mobilizações e os protestos ganham as ruas e se expressam dessa maneira, no espaço público. É um movimento que faz sacudir a democracia chilena. Há uma faixa em frente a uma universidade que diz claramente: 'não somos filhos da democracia. Somos pais de uma nova democracia'".      

De qual democracia estamos falando? Para Aggio, de um regime que resolva o dilema da educação, mas que também busque uma nova institucionalidade, com potencial para enfrentar não apenas a exigência de estabilidade, mas principalmente para estabelecer políticas públicas de equidade e de justiça social. O pesquisador avalia que, a depender dos rumos encaminhados, o movimento pode abrir uma nova vertente, a saber: um poder constituinte. Afinal, há grandes déficits na transição chilena, que saiu e voltou para a democracia, mas não idealizou nova ordem constitucional. A Carta em vigor é a de 1980, dos anos Pinochet. "Em algum momento, pode ser colocada na ordem do dia a refundação das instituições do Estado, para estabelecer nova Constituição", admite Aggio.

Esse é o dilema que está colocado. Os próximos dias - e o que vai sair das conversas que serão travadas entre o governo e a liderança estudantil - serão decisivos para indicar se o movimento terá forças para fazer nascer essa nova democracia ou se vai arrefecer e se restringir ao espaço educacional e universitário. "Os atores políticos podem compreender que há limites. Os estudantes são capazes de liderar o movimento, mas não de segurá-lo isoladamente. Na semana passada, a greve foi representativa no setor público, mas fraca no privado. Se for assim, mais localizado, podemos chegar a um cenário em que o movimento pulsa e arrefece, pulsa e arrefece...". 

Aggio critica duramente o comportamento da polícia chilena que, convocada por Piñera e sustentada por leis da ditadura, não hesitou em agir de forma truculenta e repressiva, com condutas muito próximas das adotadas nos anos Pinochet. Durante a greve geral, o estudante Manuel Gutiérrez, 16 anos, foi morto com um tiro no peito, disparado pelas forças policiais. O episódio colaborou para que o governo acendesse o sinal de alerta e decidisse negociar com os estudantes. Sobre esse diálogo, Aggio lembra que os estudantes já pressionam as lideranças do movimento a não ceder a pressões de Piñera. Segundo o pesquisador e professor da Unesp, não adianta alocar mais recursos para a Educação. É preciso mudar o modelo. "Os donos de universidades particulares não podem ganhar essa exorbitância dos alunos e do governo, via financiamentos. Esse sistema privado é selvagem. Precisa ser radicalmente substituído".  

domingo, 28 de agosto de 2011

O QUE VEJA FAZ NÃO É JORNALISMO

Escrevi ontem nas redes sociais e reforço aqui: não tenho procuração para defender José Dirceu. Nem quero ter. O ex-ministro deve à Justiça e à sociedade explicações sobre situações lamentáveis e escabrosas. Também discordo da maneira como pensa e faz política. Colocadas essas premissas, é preciso rechaçar com veemência a "matéria" de capa da revista Veja desta semana, que é jornalisticamente indecente. Fosse a dita "reportagem" um Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo, estaria reprovada. Eis alguns dos motivos que levariam à reprovação em banca:


- O que temos na "matéria" é um texto editorializado, opinião travestida de informação, prática aliás que é muito comum no "jornalismo" patrocinado pela publicação, que invariavelmente confunde propositalmente os gêneros e diz lidar apenas com fatos, quando o que tenta de fato e invariavelmente é nos convencer ou nos obrigar a pensar como ela, com seus discursos ideológicos e opiniões impostas como se fossem verdades absolutas. As fontes na "reportagem" são raras, bem poucas - e, quando aparecem, ou servem para legitimar o discurso previamente estabelecido (o argumento de autoridade) ou são anônimas ("um cacique petista"). Fácil trabalhar assim. Ah, sim, os poucos que falam para desmontar a versão da revista são, em seguida, contestados pela própria revista - no limite, a verdade de Veja sempre prevalece. A última palavra é sempre da revista.

- A "reportagem" trabalha com uma série de ilações, de suposições, de sugestões, sem apuração, sustentação ou confirmação, requisitos básicos do bom jornalismo. Fica consagrada assim a prática do achismo, do impressionismo - que novamente a revista tenta transformar em verdade. Veja briga com os fatos. Apenas um exemplo - o panfleto de quinta categoria (assim chamado pelo jornalista José Arbex) registra que, no dia 06 de junho, durante 30 minutos, o presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, foi recebido por José Dirceu no quarto do hotel que funcionaria como gabinete do ex-ministro. Com base nessa informação, e apenas e tão somente nessa informação mesmo, Veja sugere que Gabrielli e Dirceu se encontraram para confabular sobre a demissão do então ministro da Casa Civil, Antonio Palocci. Como a revista chega a essa conclusão? Quem sustenta essa afirmação? Ninguém sabe. Porque Veja não participou daquela conversa. Perguntou para Gabrielli o motivo do encontro. O presidente da Petrobras respondeu: "Sou amigo dele, não devo dar conta dessa reunião para ninguém". Ignorando a fala da própria fonte que ouve, e sem apresentar qualquer indício que pudesse contestá-la ou mesmo declaração de outra fonte capaz de sustentar outra versão, o panfleto então conclui, por conta e vontade próprias, que o encontro definiu a demissão de Palocci. Não há sequer fontes em off, prática comum nesse tipo de jornalismo, a minimamente amparar a tese de Veja. O que está na "matéria" é aquilo que a revista ACHA ou SUPÕE que tenha acontecido no quarto do hotel. Qualquer estudante de primeiro ano de Jornalismo sabe que apuração é fundamental - e que matérias não podem ser produzidas com base em nossas vontades e desejos ou levando em consideração aquilo que "achamos". Veja inverte a mão de direção e acaba por consagrar a máxima do péssimo jornalismo que se concentra na produção de factóides amparados por ilações e suposições.

- Qual a novidade da matéria, "o gancho", como se diz no jargão jornalístico? Que José Dirceu continua a ser uma personalidade política importante, uma referência no mundo da política, um sujeito que continua se reunindo com senadores, deputados, ministros? Ora, até as pedras usadas na construção da Muralha da China sabem dessa condição protagonista do ex-ministro! E qual é a "denúncia" mesmo? Que José Dirceu recebia colegas de partido e outras figuras da política nacional? Ah... Veja chove no molhado, traz mais do mesmo, requenta um denuncismo vago e politizado, que dá bem os contornos de uma revista que tenta ocupar o espaço de oposição, vazia por sua vez de discursos e de projetos. O único objetivo da matéria é desgastar o governo, enfraquecer a Presidenta (que não teria sequer autoridade sobre seus ministros e a base aliada, que ouvem muito mais o ex-ministro que a própria Presidenta). Critérios como "ineditismo, atualidade, relevância e interesse público", tão ensinados nos cursos de Jornalismo como referências para a seleção de pautas, não valem para a revista. A propósito: os encontros reportados na "matéria" aconteceram nos dias 6, 7 e 8 de junho. Se eram tão urgentes e relevantes, tão graves, por que a revista demorou mais de dois meses para revelá-los, em matéria de capa?

- Por fim, quem tenta obter informações de forma ilícita, safada mesmo, procurando convencer uma camareira a ser cúmplice de uma invasão de quarto, na expectativa de obter de forma absolutamente imoral e ilegal qualquer "papel secreto, comprometedor", pode ser qualquer outra coisa (gângster, por exemplo). Mas jamais poderá ser chamado de Jornalista.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

PASSEIO NO CENTRO DE SÃO PAULO

(*) Luiza Pereira, 9 anos, é filha do Chico Bicudo e da Elisa Marconi e aluna do quarto ano do Colégio Pentágono (Unidade Caiubi)


Não faz muito tempo, pedi para minha mãe para visitar o centro de São Paulo. Nós fomos, mas estava um sábado frio e chuvoso, e não conseguimos visitar todos os lugares. E uma coisa ficou martelando na minha cabeça: como seria o famoso Páteo do Colégio?

Eis que descubro que, na quarta-feira, dia 24 de agosto, visitaríamos o centro com a escola. Uma luz - finalmente conheceria o Páteo pessoalmente! Fui. E que surpresa, ele era todo diferente do que sempre achei que fosse. Imaginei algo pequeno, mas é grande e com muitas atrações.

Não foi só isso. Também visitei o Marco Zero, que é bem legal, pois é dali que aviões e carros começam a contar os quilômetros; a Catedral da Sé, bem bonita e também gigantesca; a Faculdade de Direito, onde meus avós estudaram e que foi a primeira do Brasil; o Edifício Altino Arantes (Banespa), entre outras coisas.

De tudo o que vi, o que mais gostei foi da torre do Banespa, porque de lá eu pude ver a cidade de São Paulo inteirinha.

Depois, fui ao Mercado Municipal, comer pastel. Que delícia!

Acho que essa é uma dica cultural bacana. Recomendo!

domingo, 21 de agosto de 2011

PREGUIÇOSOS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!

As noites já não são mais o momento de cair profundamente nos braços de Morfeu para buscar o justo descanso - ao contrário, transformaram-se em tormenta angustiante, mais uma etapa da ininterrupta jornada de preparação para as tarefas do dia seguinte, que vai começar cedo, bem cedo. Sem pregar os olhos, passamos mentalmente em revista as agendas, as reuniões, os textos, os deslocamentos pela cidade, as pressões, os relatórios, os projetos, as ligações, os e-mails que devem ser respondidos com urgência e sem falta e todo o restante de ações de que teremos de dar conta em mais um dia de exaustivo trabalho. Implacável, o relógio anda. Meia-noite. Uma da madrugada. A gente vira e revira na cama. Duas horas. O corpo pede, a cabeça não pára de funcionar. Três da matina. E vamos ficando cada vez mais agoniados.


Quando finalmente a manhã se anuncia (tudo o que conseguimos foram fragmentados cochilos), já passamos então a organizar a agenda da tarde - e quando esta chega, pensamos nos compromissos da noite. O sono é presença constante. Hora de dormir? Não conseguimos, novamente. Finais de semana? Momento de dar conta do que ficou pendurado durante a semana. O mundo do trabalho, mais do que em qualquer outra época, nos consome. O sistema é tão cruel que, quando dispomos por exemplo de tempo livre para uma sessão de cinema em uma tarde de uma segunda-feira qualquer, não conseguimos relaxar e aproveitar o filme, nos sentimos culpados. É um estranhamento que não cessa, algo como "nossa, o que estou fazendo aqui, não estou produzindo, sou inútil". Incorporamos definitivamente a máxima do "tempo livre é perda de tempo". O capitalismo agradece.  

Há exatamente um ano, em agosto de 2010, li no jornal "O Estado de São Paulo" o artigo "O prazer da leitura sem pressa", de Patrick Kingsley, do jornal britânico "The Guardian", quando fui apresentado ao movimento "slow reading" que, sem negar os benefícios da internet, lembrava também que a rede está nos tornando sujeitos em permanente estado de excitação, cada vez menos atentos e concentrados, com enormes dificuldades de memorização e pouquíssima disposição para enfrentar leituras longas. O texto pedia para "desligarmos os computadores com mais frequência para redescobrirmos a alegria do envolvimento pessoal com o texto físico e a de absorvê-lo integralmente". Em tempo - o jornalista do "Guardian" já citava também o "slow food" e o "slow travel". 

Por coincidência feliz, e sinal razoável de que muito provavelmente o desejo do "slow" se esparrama por diferentes frentes da vida cotidiana, li recentemente na "Folha de São Paulo" matéria da repórter Sabine Righetti a respeito do movimento "slow science". Nascida na Alemanha, a iniciativa cobra mais tempo e serenidade para que os cientistas possam desenvolver suas pesquisas, sem ter em suas gargantas a espada do "é preciso publicar, com urgência, para ontem". O texto cita o manifesto lançado pelo grupo, que não deixa dúvidas: "Somos cientistas, não blogamos, não tuitamos, temos nosso tempo. A ciência lenta sempre existiu ao longo de séculos. Agora, precisa de proteção." 

Devo confessar que, de alguma maneira especial, provavelmente porque me aproximo dos 40 anos, o tal do "slow" acabou por me cativar e encantar. Menos pé no acelerador - mais pé no freio. É algo que, mesmo a duras penas, com avanços e recuos, vitórias e derrotas, tenho procurado viabilizar em meu cotidiano - tempo para a leitura reflexiva, tempo para a conversa com os amigos, tempo para as risadas com os filhos, tempo para pensar a vida com a esposa, tempo para o futebol, tempo para os almoços com pais e irmãos. Tempo. Arrumar tempo. Não é fácil. Trata-se de uma batalha diária, de conseguir conter ansiedades, de reprogramar cobranças. Mas tem valido - muito - a pena. Por isso, fico cá pensando com meus botões se não seria desejável investir na articulação de todos os "slows" para criar um grande movimento - o "slow life", que poderia ainda estar associado e carregar como lema complementar o "carpe diem", mensagem central inesquecível do filme "Sociedade dos Poetas Mortos".  

Talvez um bom começo para a construção desse movimento seja a leitura de textos como os relacionados ao seminário "Elogio à Preguiça", organizado pelo filósofo Adauto Novaes (www.elogioapreguica.com.br). No artigo em que apresenta os princípios fundadores da iniciativa, Novaes cita o escritor francês Albert Camus para lembrar que “são os ociosos que transformam o mundo porque os outros não têm tempo algum” e que "é na vida meditativa que o homem toma consciência da sua condição – seus vícios e virtudes – e cria soluções para seus problemas". Para o coordenador do seminário, "o que importa hoje é propor a luta do progresso contra o progresso; isto é, a valorização do progresso do espírito, a valorização dos valores contra o progresso técnico, esta “ilusão que nos cega”. Eleger a quietude, o silêncio e a paciência para conhecer e aprofundar indefinidamente as coisas dadas". 

Porque afinal, como lembra ainda Novaes, é preciso desconstruir e colocar rapidamente por terra os preconceitos que ainda envolvem a preguiça ("o preguiçoso é indolente, improdutivo, nostálgico, melancólico, indiferente, distraído, voluptuoso, incompetente, ineficaz, lento, sonolento, silencioso") para radicalizar seus efeitos transformadores e revolucionários - o silêncio e o fazer conscientemente nada que abrem brechas para a reflexão crítica e criativa, a construção de consciência sobre o mundo, o desabrochar de ideias e projetos, as iniciativas que rompem os grilhões que nos aprisionam à falsa premissa "para além do trabalho não há salvação. Ou dignidade". 

Também participante do seminário, a filósofa Marilena Chauí reforça que "não é demais lembrar que a palavra latina que dá origem ao nosso vocábulo “trabalho” é tripalium, instrumento de tortura para empalar escravos rebeldes e derivada de palus, estaca, poste onde se empalam os condenados. E labor (em latim) significa esforço penoso, dobrar-se sob o peso de uma carga, dor, sofrimento, pena e fadiga". E Oswaldo Giacoia Junior escreve que "uma antiga sabedoria oriental considerava sábios aqueles homens simples, que mantinham-se ocupados o dia todo, e, no entanto, nada faziam. Isso porque a sa­bedoria deles consistia na consciência de que, em meio à mais intensa atividade, impera o repouso, por força do qual os homens agem, sem agir". 

Não se trata de negar as tecnologias e as profundas transformações no mundo do trabalho - mas, ao mesmo tempo, não se deve aceitar com resignação o fato de sermos reféns do sistema. Se não dá mais para encostar a nuca em uma pedra para contemplar o firmamento, brincar de ligar os pontos e desenhar as constelações, como faziam os gregos, é fundamental resgatar e explicitar o potencial político da preguiça - não um pecado, mas um direito. Como afirma Novaes, em tom de brincadeira verdadeira, "é hora de criar uma Internacional da Preguiça".

Portanto: preguiçosos de todo o mundo, uni-vos! 

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

PROTESTOS EM LONDRES - "O PASSADO É UMA ROUPA QUE NÃO NOS SERVE MAIS"

Costurar essa narrativa não é tarefa simples, mas, passados quase dez dias do início dos protestos na Inglaterra, com os elementos que consegui reunir, penso ser possível sugerir duas ordens de reflexões. 

Em primeiro lugar, nota-se mais uma vez um alinhamento ideológico automático entre governos conservadores e parcela considerável dos veículos de comunicação. Se dependêssemos do jornalismo hegemônico a que temos acesso diariamente, concluiríamos rapidamente, sem grandes dificuldades ou exercícios mentais, que os jovens ingleses, talvez motivados por algum tipo de pesadelo noturno, acordaram com uma vontade imensa e incontida, selvagem mesmo, de quebrar vidraças, saquear lojas e supermercados, virar carros, invadir delegacias e incendiar casas e prédios. Eram todos vândalos, bandidos, membros de gangues que andavam encapuzados pelas ruas da cidade, a espalhar pânico e terror. 

No fundo, o que o discurso governista reverberado pelas narrativas midiáticas pretendia era criar cortina de fumaça, desviando a discussão de suas verdadeiras raízes e contextos, de suas histórias. Permanecer na superfície e evitar mergulhos de compreensão significa também agir para impedir que, em uma dinâmica dialógica, os jovens de Londres sirvam como exemplo ou inspiração para lutas que se espalham pelo planeta (Cairo, Madri, Santiago, Tel Aviv...), além de tantas outras que estão por estourar. Era preciso isolá-los, tratá-los de forma rasa, demonizá-los. Já imaginaram afinal se fôssemos lembrar que os protestos eclodiram justamente nas periferias, nos bairros e áreas mais pobres e marginalizados de Londres? Já pensaram no perigo que representa sugerir reflexões sobre o fato de a Inglaterra de Margaret Thatcher ter sido, ao lado dos Estados Unidos de Ronald Reagan, ainda nos anos 1980, uma das pioneiras na adoção das políticas excludentes neoliberais? Nem pensar. 

A vociferação simplista e genérica do "são bandidos" tinha ainda outro propósito - esvaziar as manifestações de conteúdo político e criminalizar os protestos, em amplo sentido, para tratá-los apenas como caso de polícia e procurar justificar a repressão (mais de 1600 pessoas já foram presas), legitimando os cacetetes, as bombas de gás lacrimogênio, as invasões a residências na calada da noite, a censura às redes sociais - era a "única forma de combater esse vandalismo", disse o atônito e perdido governo inglês à opinião pública, em várias oportunidades. Os jornalões compraram rapidamente a versão. 

Ainda sobre a tabelinha discurso oficial inglês-narrativas midiáticas, alcançou repercussão negativa por aqui uma das tentativas jornalísticas mais descaradas de associar a qualquer custo jovens que protestavam com gangues criminosas. Aconteceu em entrevista veiculada na quarta-feira, dia 10 de agosto, na Globonews. A tese da emissora já estava pronta - só faltava confirmá-la com um especialista. Mas, como diria o mestre Mané Garrincha, esqueceram de combinar com o entrevistado. Caíram do cavalo. O apresentador abriu a conversa perguntando ao sociólogo Silvio Caccia Bava: "não estão aproveitando o caos para praticar crimes?". O pesquisador respondeu: "Não vejo assim. Estamos vendo de fato um contingente de jovens pobres, na maior parte negros, em bairro multiétnico, com educação deficiente. Sem futuro, explodem em revolta". A apresentadora insistiu: "mas não são marginais, não estão cometendo crimes?". Bava emparedou: "você chamaria de criminosos os 100 mil chilenos que ontem estavam nas ruas de Santiago?". Xeque mate.

Se estivessem dispostos a combater o senso comum, contemplar pluralidades e superar tabus (ora, são alguns dos tão cantados em verso e prosa princípios editoriais das Organizações Globo, não?), os apresentadores da Globonews teriam lido o texto de Mary Riddell, do Daily Telegraph, que destacou que "o fato de a maior onda de violência nas últimas décadas ter ocorrido sobre um cenário de economia global prestes a fracassar não é coincidência. As causas de recessão estabelecidas por J. K. Galbraith, no seu livro The Great Crash 1929, foram as seguintes: má repartição de rendimentos, um setor de negócios comprometido num “roubo corporativo”, uma fraca estrutura bancária e o desequilíbrio na exportação/importação". 

Poderiam ter buscado ajuda também em reflexões como as apresentadas pelo filósofo Vladimir Safatle em entrevista concedida ao Sindicato dos Professores de São Paulo: "Voltamos para uma situação típica do início do século 19, que é um contingente da população que está totalmente excluído de qualquer possibilidade de amparo do Estado. Todos acompanhamos como o governo inglês reduziu o orçamento social nesses bairros que estão passando por violências, os clubes públicos ali que eram 13, hoje são cinco. A Inglaterra colocou na rua 400 mil funcionários públicos, gente que atuava na saúde, na educação, na assistência social. Esperavam o quê? Que as pessoas fossem ficar aplaudindo? Que seriam resignados? Esses jovens se sentem excluídos da vida social e da perspectiva da vida social. Então eles partem para uma violência pura e simples". 

Teria valido a pena ainda consultar artigo de Seumas Milne, do Guardian, que reforçou que "os distúrbios irromperam em várias partes do que é hoje a cidade mais desigual do mundo desenvolvido — onde a riqueza dos 10% mais ricos atingiu 273 vezes a dos mais pobres — atraindo jovens que tiveram sua ajuda de custo em educação cortada justamente no momento em que o desemprego de jovens bateu recorde e o acesso à universidade foi dificultado depois que as mensalidades foram triplicadas. (...) A maioria dos que participaram não tem nada a perder, numa sociedade que os trancou para fora ou num modelo econômico que atolou na areia". 

Um novo mundo?
A segunda reflexão sobre os protestos em Londres que quero sugerir está relacionada a textos publicados, durante a semana que passou, por dois pensadores - e que me provocaram choques e chacoalhões intelectuais, uma saudável inquietação, ao chamar a atenção para o momento de profundas transformações que estamos vivendo. Para os pesquisadores, a velha ordem, à esquerda ou à direita, aquilo que conhecemos como projetos de sociedades no século XX, estaria com os dias contados. Ainda não se sabe ao certo o que se quer - mas, nas praças e nas marchas, parece crescer a consciência sobre o que não se quer.

Em artigo publicado em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, na terça-feira, 09 de agosto, o filósofo Vladimir Safatle escreveu que "essas milhares de pessoas dizem algo muito mais irrepresentável, a saber, todas as respostas são de novo possíveis, nada tem a garantia de que ficará de pé, estamos dispostos a experimentar algo que ainda não tem nome. Nessas horas, vale a lição de Maria Antonieta: aqueles que não percebem o fim de um mundo são destruídos com ele. Há momentos na história em que tudo parece acontecer de maneira muito acelerada. Já temos sinais demais de que nosso presente caminha nessa direção. Nada pior do que continuar a agir como se nada de decisivo e novo estivesse acontecendo".

No domingo, 14 de agosto, foi a vez da socióloga holandesa Saskia Sassen, entrevistada pelo caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo, afirmar que "é mesmo impressionante a quantidade de manifestações de rua. A economia roubou desses jovens um futuro razoável e o sistema político roubou-lhes a voz política, a capacidade de serem ouvidos. A rua se tornou, portanto, o espaço para a política daqueles que não têm acesso aos instrumentos formais. O fio condutor que, a meu ver, une todas essas manifestações é uma estrutura de luta social. (...) Vivemos numa situação de extremos. Temos uma vasta fome em partes do mundo, ao passo que temos também jovens com educação que não estão aceitando o fato de que terão uma vida pior que a dos pais. Isso me faz crer que chegamos a um tipping point, um momento de mudança".

Pensando sobre tudo isso, inevitável não lembrar de "Velha Roupa Colorida", canção que se destaca na voz fanha de Belchior, mas que ficou imortalizada na voz da genial e inesquecível Elis Regina - "Você não sente, não vê, mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo. Que uma nova mudança em breve vai acontecer. O que há algum tempo era novo, jovem, hoje é antigo. E precisamos todos rejuvenescer".

Ainda como lembra a canção, "o passado é uma roupa que não nos serve mais". Talvez seja hora mesmo de trocá-la. Para que, como lembra Safatle, nossas cabeças não rolem - como aconteceu com Maria Antonieta.

domingo, 7 de agosto de 2011

E A GLOBO, QUEM DIRIA, RENDEU-SE À BLOGOSFERA

Quem diria... a vênus platinada acusou o golpe, teve de render-se aos ventos dos novos tempos e apressou-se em dar resposta a um texto que nasceu, cresceu, multiplicou-se e ganhou corpo e repercussão... na blogosfera! Claro, sem ufanismos, alcances e audiências continuam a ser gritantemente distintos, sem termos de comparação, com vantagem ainda enorme para a TV Globo. Mas foi-se o tempo do monopólio da verdade - e a gigante ardilosa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro já não pode mais simplesmente ignorar o que se passa no andar de baixo, nesse mundinho virtual. 

Para resgatar a linha do tempo: na sexta-feira, 05 de agosto, no blog "O Escrevinhador", o jornalista Rodrigo Vianna, que conhece as entranhas do dito jornalismo global, publicou um texto que citava uma fonte anônima da Globo que dizia ser cada vez mais insuportável trabalhar na emissora, por conta dos desmandos e das pressões, e revelava ainda que a ordem era bater firme no novo ministro da Defesa, Celso Amorim, que a vênus não suporta, para criar clima de instabilidade nas esferas militares. 

Alertava Vianna: "o jornalista, com quem conversei há pouco por telefone, estava indignado: “é cada vez mais desanimador fazer jornalismo aqui”. Disse-me que a orientação é muito clara: os pauteiros devem buscar entrevistados – para o JN, Jornal da Globo e Bom dia Brasil – que comprovem a tese de que a escolha de Celso Amorim vai gerar “turbulência” no meio militar. Os repórteres já recebem a pauta assim, direcionada: o texto final das reportagens deve seguir essa linha. Não há escolha. Trata-se do velho jornalismo praticado na gestão de Ali Kamel: as “reportagens” devem comprovar as teses que partem da direção".

Pois eis que, coincidência, 24 horas depois da circulação do texto (que se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais), a Globo veio a público, na edição do Jornal Nacional deste sábado, 06 de agosto, para cantar em verso e prosa um documento que estabelece "os princípios editoriais que norteiam o trabalho das redações das Organizações Globo". A tal carta de intenções fala em "independência, isenção, correção, lealdade com a notícia e não sensacionalismo, garantia de contraponto" e reafirma que "para a Globo, não há assunto tabu"; faz questão também de reforçar o "espírito pluralista e apartidário". 

Logo na Introdução do documento, texto assinado pela santíssima trindade Roberto Irineu Marinho, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho diz que "com a consolidação da Era Digital, em que o indivíduo isolado tem facilmente acesso a uma audiência potencialmente ampla para divulgar o que quer que seja, nota-se certa confusão entre o que é ou não jornalismo, quem é ou não jornalista, como se deve ou não proceder quando se tem em mente produzir informação de qualidade". O apelo parece claro, não? Só faltou dar nome aos bois e implorar "por favor, não acreditem no que andam por aí escrevendo o senhor Rodrigo Vianna e seus asseclas".  Como escreveu o cineasta, jornalista e blogueiro Mauricio Caleiro no twitter, "declaração de princípios da Globo é vitória incontestável da blogosfera. Está na cara que é reação ao post do Rodrigo Vianna".

Aliás, agora que a Globo resolveu mesmo fazer jornalismo, poderia estabelecer um mea culpa público a respeito do apoio irrestrito dado à ditadura militar e repudiar as versões históricas levianas que ajudou a construir e consolidar, usando seus pressupostos críticos e cidadãos para destacar a importância da Comissão da Verdade, certo? E, já que não existem mais assuntos tabus, poderia veicular algumas reportagens a respeito das negociações que resultaram nas assinaturas de contratos com os clubes brasileiros para garantir transmissões do Campeonato Brasileiro, não é mesmo? E que tal produzir uma série especial dedicada exclusivamente a debater as falcatruas na CBF e na FIFA? Ajudaria a começar essa "nova era". 

Tudo discurso vazio, jogo de cena. Sim, porque a mesma edição do JN silenciou sobre pesquisa feita pelo Instituto Datafolha e divulgada neste sábado que mostra que a aprovação do governo da presidenta Dilma Rousseff continua elevadíssima (48% de ótimo e bom, 39% de regular e apenas 11% de ruim ou péssimo), mesmo depois das turbulências e recentes denúncias de corrupção no Ministério dos Transportes. É, talvez tenha sido apenas um lapso... a Globo faz jornalismo "apartidário"...

Para além dos desvios jornalísticos globais, a mensagem que o episódio deixa é que a Globo não nada mais de braçada, não fala mais sozinha, não tem mais o poder que ousou acumular em décadas passadas. Entre 2000 e 2010, a audiência média do Jornal Nacional caiu mais de dez pontos percentuais (de 39,2% para 28,9%). Penso que um momento marcante recente e emblemático desse processo de decadência foi o episódio do "atentado com bolinha de papel" cometido contra José Serra na campanha presidencial do ano passado. A farsa tucana já tinha sido desmontada e desmentida na blogosfera. Mas, para tentar mantê-la, o Jornal Nacional usou cerca de nove minutos de uma de suas edições, recorrendo a depoimentos de "legistas especialistas". 

Ora, se a web fosse mesmo tão irrelevante, pouco importante, sem capacidade de irradiação e repercussão, sem impacto e condições de dialogar com a opinião pública de forma ampla, por que raios o telejornal de maior audiência da principal emissora do país precisaria ter usado quase dez minutos para contestar o que nas esferas virtuais se dizia? Por que gastar um tempo tão precioso e prestar atenção ao que inofensivos tuiteiros e blogueiros escreviam? Sinal evidente, me parece, de que havia algo de podre no reino do (superado) monopólio da verdade.

Para Antonio Lassance, cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a "velha mídia está derretendo". Exagero? Talvez. É certamente um processo complexo, longo, marcado por conflitos, idas e vindas, avanços e recuos. A Globo continua a ser extremamente poderosa, uma gigante da comunicação. Não vai deixar de sê-lo da noite para o dia, num passe de mágica. Por outro lado, parece evidente que já não é mais proprietária do samba de uma nota só. Há fraturas, diálogos e dissonâncias, contestações, resistências, outras versões - que em boa medida encontram-se na web (embora não residam apenas nela). 

Sim, a blogosfera conversa o tempo inteiro com os descaminhos vividos pelo ser humano, de forma mais geral, e com os desvios de rota do jornalismo, mais especificamente. Não é o paraíso dos puros - nem o inferno dos demônios. Não estará equivocado assim quem disser que a internet abriga aventureiros, oportunistas, pilantras, gente que faz pseudo-jornalismo, e até mesmo criminosos. Mas acertará na mosca quem bancar que é possível encontrar na web matérias sérias e responsáveis, textos jornalísticos que levam à reflexão e que cumprem o papel de estabelecer contraponto e de prestar serviço público. 

Na miscelânea chamada blogosfera, espaço democrático de contradições, há afinal bom exercício de jornalismo analítico sendo feito - que em alguns momentos, cada vez mais frequentes, consegue inclusive inverter a mão de direção. E pautar a agenda da velha mídia. Consegue incomodar a vênus platinada. Nessas horas, que falta faz o engenheiro Leonel Brizola...

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

DIA DO ORGULHO HÉTERO? LAMENTÁVEL, SÃO PAULO.

Os negros foram, durante mais de 300 anos, submetidos no Brasil a condições animalescas de vida. Arrancados de suas terras africanas, de suas raízes, eram transportados acorrentados em porões de navios para lá de insalubres, sem higiene, sem luz, sem comida e onde os ratos tinham mais liberdade; os que sobreviviam eram vendidos como mercadorias quaisquer, avaliados pelos músculos, pelos dentes, pelos peitos, pelas bundas. A abolição da escravidão, em 1888, esteve longe de representar a plena, ampla e imediata incorporação deles à sociedade brasileira e aos direitos, acessos e oportunidades consagrados aos brancos. O racismo, velado e explícito, continuou a patrocinar atrocidades. Ainda hoje, mesmo reconhecendo avanços inquestionáveis em relação à negritude, trabalhadores brancos (homens e mulheres) ganham mais que negros, ocupando mesmos cargos e posições; negros são parados nas ruas quando estão dirigindo carrões; jogadores negros são aviltados em campo e chamados de macacos; nas cabeças de muitos, negros continuam sendo incapazes de desempenhar trabalhos intelectuais - servem apenas para serviços mecânicos e braçais. A cor da pele infelizmente continua servindo como torpe instrumento de hierarquização e imposição de "melhores e piores", de legitimação e de manutenção de falsas diferenças e de perpetuação de desigualdades. Mais do que necessário, portanto, que o Estado atue para combater e criminalizar o racismo, para garantir cotas nas universidades, dentre outras políticas públicas fundamentais.

Historicamente, as mulheres representam outro segmento social vítima de injustiças e de perseguições, pautadas por uma sociedade que infelizmente ainda entende o macho como o centro da família, o provedor, o líder inquestionável, a autoridade a quem a mulher deve apenas obediência e serviços. É simples: quando o homem trai, é garanhão (um elogio confesso); quando a mulher trai, é uma galinha (expressão pejorativa). Isso sem contar as milhares de vítimas de seus maridos, patriarcas que se julgam no direito de bater, espancar, ferir (física e emocionalmente), atirar, matar... Eis que surge a Lei Maria da Penha, como resultado direto das lutas das mulheres, para protegê-las e agir contra os que agem para agredi-las e humilhá-las.

Crianças e adolescentes, seres ainda em processo de formação, ainda frágeis e inocentes, vítimas muitas vezes de maus tratos, de violência doméstica, de pedofilia, de espancamentos, de trabalhos forçados, carecem também de atenção especial, de cuidados e carinhos intensos, de proteção psicológica, de aconchego e formação que lhes garanta crescimento e amadurecimento dignos, equilibrados, críticos e conscientes. Daí a beleza - e a necessidade civilizada - do Estatuto da Criança e do Adolescente, a preocupar-se com momento fundamental de nossa evolução. O mesmo raciocínio vale para a terceira idade, já que ainda prevalecem no Brasil percepções e comportamentos que vislumbram a velhice como um momento a ser ignorado - viabilizando um discurso que diz que "o velho é descartável, o tempo dele já passou, virou peça de museu, tornou-se chato, desagradável, um estorvo com o qual devemos lidar. Ou dar cabo dele, abandonando os idosos à própria sorte". Sabedoria acumulada, experiência, memória e trajetória de vida são desconsideradas e desrespeitadas. O bom mesmo é ser eternamente jovem. Pois eis que entra em cena a relevância humanista do Estatuto do Idoso, que tem como objetivo minimizar esse cenário e reverenciar e valorizar a cidadania também na terceira idade.     

Mais recentemente, passamos a perseguir os "novos diferentes", os homossexuais, cerceados em sua liberdade de expressão, impedidos muitas vezes de manifestar afeto em público, tratados como doentes, delinquentes, pessoas com desvios de comportamentos, representados não raro de forma caricata e estereotipada em novelas, vítimas de preconceitos e ações violentas que com frequência cada vez maior acontecem em espaços públicos. Faz-se portanto mais do que urgente a aprovação do projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, que criminaliza a homofobia e a iguala ao crime de racismo; além disso, é preciso investir na educação, na conscientização, nos argumentos contra a força bruta, consagrando iniciativas como a distribuição dos kits anti-homofobia em escolas públicas, tarefa que infelizmente foi suspensa pelo governo Dilma.

Como se vê, o Estado deve agir para proteger e garantir direitos e dignidade a segmentos e grupos da sociedade que não são necessariamente minoritários, mas que são historicamente vítimas de preconceitos, de injustiças, de desigualdades e de violência, alijados do exercício da ampla cidadania.

Confesso que, em quase 40 anos de vida, não conheço caso de heterossexual, homem ou mulher, que, por manifestar essa condição, tenha sido agredido durante a madrugada na avenida Paulista; ou tenha tido a orelha arrancada a dentadas por abraçar o filho em público; ou tenha recebido cascas de banana na cabeça em campo por, depois de marcar um gol, ter mostrado a camisa com a inscrição "sou hétero"; ou receba salários menores em empresas por ter declarado na ficha de admissão ser casado com pessoa de outro sexo; ou que apanhe do pai ao revelar namoro com menina (no caso do garoto) ou com menino (no caso da moça). Enfim, os exemplos seriam muitos. 

O que importa dizer é: a aprovação, pela Câmara dos Vereadores de São Paulo, do "Dia do Orgulho Heterossexual", não faz parte das políticas afirmativas cidadãs que devem ser patrocinadas pelo Estado; bem ao contrário, representa uma política revanchista, uma cruzada fundamentalista intolerante movida por setores expressivos e obscurantistas de nossa sociedade, truculentos e pouco afeitos à diversidade, em sua plenitude.     

Como escreveu em seu blog o jornalista Leonardo Sakamoto, trata-se de um "perigo representado por uma maioria (com direitos assegurados) que começa a se manifestar de forma organizada diante da luta de uma minoria por seus direitos, reivindicando a manutenção do espaço que já é seu – conquistado por violência, a ferro, a fogo e na base da Inquisição. Mesmo que a conquista de direitos pela minoria não signifique redução de direitos da maioria mas, apenas, necessidade de tolerância por parte desta. Lembrando que “maioria” e “minoria” não são uma questão numérica, mas sim de quanto um grupo consegue efetivar sua cidadania".

Diante da aberração chamada "Dia do Orgulho Hétero", aprovada pelos nobres vereadores paulistanos, Sakamoto diz ter vergonha de ser hétero. É bem por aí. 

Lamentável, São Paulo.