terça-feira, 30 de julho de 2013

EM 'SAL", LETICIA WIERZCHOWSKI RETOMA SAGAS FAMILIARES

Durante várias décadas, homens de sobrenome Godoy foram responsáveis por cuidar com esmero do farol da ilha de La Duiva, que ilumina os caminhos e dá as referências de perigos escondidos no mar aos barcos que navegam pela região. Com a morte do marido Ivan, educado nas artes de entender o sobe e desce das ondas, o último dos Godoy que de fato soube controlar a pulsação daquele acende-apaga incansável de luzes, Cecília, a viúva, decide solicitar à capitania dos portos a contratação de um faroleiro profissional. Achava que era preciso colocar fim aos naufrágios que passaram a ser registrados por ali, em quantidade fora do comum. "O farol precisava de alguém à sua altura, um homem forte e jovem que pudesse domar-lhe o selvagem coração de luz, o ventre de concreto, as vísceras brancas e vermelhas". No fundo da alma, a velha senhora alimentava outro desejo: sozinha na ilha, queria aproveitar o tempo livre para dedicar-se a resgatar as memórias da família. "Sal", romance escrito pela gaúcha Leticia Wierzchowski e que chegou recentemente às livrarias, narra essas lembranças. O livro é um tapete colorido, várias camadas, tecidas pelas mãos hábeis da costureira/narradora Cecília. Deixando vir à tona amores profundos e remoendo dores ainda intensas, bem vivas, a matriarca mistura novelos de lã de cores variadas.

O entrelaçar das agulhas, que trabalham em ritmo frenético, permite ao leitor conhecer as trajetórias dos seis filhos do casal. Cada um deles é identificado por Cecília com uma cor. Lucas, o primogênito, é azul. Sente remorso pela morte súbita do pai e decide abandonar muito jovem a ilha. Julieta, sépia, não suporta a avó paterna, tem pesadelos com ela e é vítima de espécie rara de epilepsia. Eva e Flora são gêmeas e, embora associadas à mesma cor (magenta), escancaram personalidades opostas. A primeira é ardilosa, sedutora, encantadora de rapazes, a colecionar conquistas amorosas. Não suporta viver na ilha. Odeia ler. Adora nadar. A outra é romântica, sonhadora, conhecedora profunda das obras clássicas da Literatura. E escritora.

Artesã das letras, é Flora quem divide com Cecília a tarefa de preservar a história da família. Em "Sal", as vozes das duas se alternam, se completam, brigam. Lançam olhares distintos sobre o mesmo universo. A filha fica assustada, porque muito daquilo que ela escreve acaba acontecendo de verdade. As tramas se esparramam, difusas, convidando novos e decisivos personagens a participar do enredo. Por caminhos tortos, o romance produzido por Flora chega às mãos de Julius, professor da Universidade de Cambridge, estudioso da nova literatura latino-americana. Ele fica em êxtase, profundamente encantado com a competência narrativa da jovem e anônima autora que morava naquela ilha distante, litoral do Uruguai. Vai ao encontro dela. Começam a namorar. É apenas atração intelectual.

Porque Julius apaixona-se desbragadamente mesmo é por Orfeu, outro irmão de Flora, também mais velho que ela. Associado ao vermelho, intenso, libertário, leitor voraz, sofre desde criança com os olhares fulminantes de condenação do pai, que só aceita filho 'macho'. Busca abrigo nos braços compreensivos da mãe. E de outros rapazes. Por um tempo, esconde a homossexualidade (embora todos já soubessem). Quando decide assumi-la, foge da ilha para viver grande amor com o professor de Cambridge. Arrisca-se e morre por ele, longe de casa. Quem sai pelo mundo para tentar reencontrar o irmão, a pedido da mãe, é Tiberius, cor amarela, o caçula do casal Godoy. Tem premonições, consegue adivinhar o futuro. Depois de cumprir sua missão, de enfrentar agruras e de conhecer conquistas, o rapaz volta para a ilha, levando com ele o filho Santiago. Cecília, que se identifica com a cor branca (em tempo: Ivan é verde), vê as esperanças renovadas. Alegra-se com a possibilidade de cuidar do neto. O mais novo Godoy. O herdeiro. Um menino, cor violeta, que será apresentado ao farol da ilha de seus ancestrais. "Ainda posso, ainda tenho forças nestes meus braços. Meu coração alquebrado não esqueceu como se ama", comemora a matriarca.

Cecília, importante destacar, é uma narradora nada egoísta. Na costura que faz, dá vez a outros personagens: Ivan fala sobre Orfeu, Tiberius revela suas impressões sobre Lucas, Eva diz o que pensa sobre Flora. Não há censuras. A polifonia é marca de "Sal". Sim, a obra tem duas narradoras principais, a conduzir o leitor pela mão - mas a saga familiar é reconstituída a partir de um furacão múltiplo de vozes, que sistematiza sobreposição de sotaques, numa (compreensível) torre de Babel. Há momentos em que várias linhas são desfiadas ao mesmo tempo, e o leitor, instigado e curioso, passa a persegui-las, movendo-se de lá para cá, perguntando-se aonde a autora pretende chegar com tantos novelos sendo desenrolados. Será que vai perder o fio da meada? É recurso para não permitir desviar a atenção. Há de fato trechos em que essa dispersão parece exagerada. Um risco. Aos poucos, com habilidade e sutileza, as pontas vão se encontrando, os nós vão sendo dados. Há surpresas reservadas, claro. O que estava desconectado forma conjunto. E o tapete ganha contornos nítidos. O leitor consegue enxergá-lo, com todas as suas cores.

Em "Sal", publicado pela editora Intrínseca, Leticia retoma caminho que já havia seguido em livros anteriores, como "A casa das sete mulheres" e "Aparados" - esmiuçar histórias familiares, tratando das picuinhas e desavenças cotidianas, problemas ditos menores, mas que acabam por minar convivências, como as relações sempre conturbadas entre sogra e nora. Aborda também dúvidas e angústias mais profundas de todos nós (no romance, além do preconceito, do tabu a acompanhar a homossexualidade, e por conta da paixão de Orfeu e Julius, há sensíveis reflexões sobre o início da epidemia mundial de Aids, quando a síndrome não era conhecida, sequer tinha nome).

Ao conversar tão de perto com o passado e permitir-se acessar as caixas interiores mais íntimas, a matriarca Cecília faz um convite aos leitores, independentemente de idades: sempre é tempo de tecer tapetes coloridos e de fazer balanços de perdas e ganhos.  

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