quarta-feira, 17 de julho de 2013

FERNANDO MORAIS E LIRA NETO CONVERSAM SOBRE BIOGRAFIAS



Foi da revista Carta Capital, em seus "Diálogos Capitais", a preciosa ideia de reunir, na noite da segunda-feira, 15 de julho, na livraria FNAC de Pinheiros, em São Paulo, os escritores Fernando Morais e Lira Neto, para um papo sobre o universo das biografias. E quando o biógrafo de Olga, Assis Chateaubriand, Paulo Coelho e do ex-presidente Lula encontra-se com o biógrafo do marechal Castelo Branco, da Maysa, do padre Cícero e de Getúlio Vargas, o resultado só pode ser uma conversa danada de boa, com a contação de muitos causos e a certeza que poderíamos tranquilamente ouvi-los durante outras tantas horas, a invadir a madrugada (com o perdão do clichê).

Em pouco mais de noventa minutos, tempo de uma partida de futebol, em tabelinhas clássicas e harmônicas, como se fossem Pelé e Coutinho, e afinados como Tom Jobim e Vinicius de Moraes, os escritores revelaram os encantos e os riscos de escrever sobre a vida dos outros. Fizeram questão de ressaltar que biografias são oxigênio que procura renovar a viciada produção jornalística tradicional contemporânea, a perseguir a excelência da grande reportagem, um caminho para escapar da camisa-de-força das pautas burocráticas e dos textos curtos videoclipados. "Acho um contra-senso quando ouço donos de jornais dizendo que os leitores não têm tempo para ler. É como se eu decidisse abrir um restaurante já tendo constatado que os brasileiros não gostam de comer", comparou Lira.

Num percurso rigoroso de compreensão, o mergulho que o biógrafo faz na vida de seu personagem é tão intenso que não raro as relações entre escritor e personagem se confundem, e a vida real é invadida por arroubos de imaginação, quase delírio. Ruy Castro, outro dos principais biógrafos brasileiros, já disse em mais de uma oportunidade que acordou, cantou, dormiu, viajou e teve ciúmes de Carmem Miranda, durante os cinco anos em que escreveu a história da Pequena Notável. Quando estava debruçado sobre "O rei do Brasil", e a previsão era entregar o livro em três anos, mas acabou demorando sete para concluí-lo, Fernando teve não um, mas alguns pesadelos com seu biografado. Era o próprio Chatô, e não o editor da Companhia das Letras, quem cobrava o atraso na produção. O magnata das comunicações sempre aparecia impecavelmente bem vestido, com a cartola na cabeça, num elevador com porta sanfonada. No melhor estilo Chateaubriand, educação mandada às favas, era cortante e bem objetivo: "seu filho da puta, quando é que você vai entregar essa merda?".

Lira também sonhou com a cantora Maysa - que inclusive lhe mandava recados, enquanto ele dormia. "O biógrafo é um cara obsessivo,chato, monotemático. A relação que a gente estabelece com o personagem atrapalha até o casamento. Há um trabalho de possessão, sem ser sobrenatural, mas sem o qual é impossível escrever com fidelidade", revelou. Alertou, no entanto, que é obrigatório, mesmo apaixonado, manter em funcionamento permanente o senso crítico, para não transformar a narrativa apenas num meloso (e não jornalístico) desfile de elogios e exaltação de virtudes. O segredo está na transparência, no equilíbrio e no rigor de pesquisa, a confrontar falas e buscar a melhor versão possível da realidade. "Foi assim que pude perceber que a Maysa mentia nos diários que ela mesma escrevia", completou.

Esse fio da navalha foi enfrentado por Lira também na escrita da biografia de Getúlio Vargas, alguém ainda hoje, mesmo depois de quase 60 anos de sua morte, capaz de mobilizar sentimentos de ódio e de paixão. O biógrafo não queria consagrar nas páginas de seu livro um santo - mas também não desejava demonizar o ex-presidente. Superou a armadilha, conseguiu o que queria? Ele diz que sim - e ampara sua avaliação no fato de a contracapa do segundo volume, que está no forno e deve chegar às livrarias em agosto, trazer textos de recomendação produzidos por duas lideranças nacionais, colocadas em espectros políticos distintos, quando olham para Getúlio: Fernando Henrique Cardoso (que em várias oportunidades de seu mandato afirmou que era hora de afastar o país da herança varguista) e Lula (que fez movimento contrário e procurou não raro associar sua imagem à do carismático líder trabalhista).

Há ocasiões em que o insólito parece ser a confirmação mais efetiva de acerto do biógrafo. Algumas semanas após ter publicado a biografia de Castelo Branco, Lira tomou um susto ao receber uma ligação de um general, uma voz gutural do outro lado da linha. Imaginou que viria encrenca. Mas o interlocutor, todo efusivo, queria parabenizá-lo pelo livro, dizendo que pela primeira vez alguém havia tido a decência de colocar o militar no seu devido lugar de relevância e respeito. "Deu tudo errado", pensou Lira. "Fiquei deprimido". Mais algumas semanas depois, no lançamento da obra em Fortaleza, reencontrou um velho amigo estalinista, dos tempos do movimento estudantil, que fez questão de elogiar Lira publicamente, dizendo ter adorado o livro, que mostrava que Castelo era um grande filho da puta. Bingo! O escritor finalmente aquietou-se - se a esquerda e a direita tinham apreciado a narrativa, era sinal de que o tão desejado equilíbrio havia sido alcançado. "Você faz bom jornalismo exatamente quando busca pluralidade. Esses personagens polêmicos nos dão espaço para explorar contradições que não são apenas deles, mas nossas também".

Fernando não escapou dessas provações - aliás, está justamente vivendo tarefa tão instigante quanto delicada, daqueles riscos que todo biógrafo adoraria correr, já que está escrevendo um pedaço da trajetória política recente do ex-presidente Lula (o período que vai da prisão do sindicalista, em abril de 1980, até o final do segundo mandato, em 2010). "Quem poderia imaginar que aquele pernambucano analfabeto e sem dedo poderia virar presidente da República?", provocou. "Estou me deliciando, embriagado pelo novo projeto", confessou. A encrenca está justamente nas relações muito próximas que o escritor e jornalista sempre manteve com o ex-presidente, amplificadas pelo fato de Fernando ser confesso admirador de Lula. Polêmica à vista.

Equilíbrio sufocado, impossível? Receberemos um livro chapa-branca? A tensão existe, é inerente, mas quem conhece o trabalho idôneo e competente de Fernando sabe que pode ficar sossegado. Ele próprio garante ter duas vantagens em relação a qualquer outro autor que se aventurasse a tocar a proposta: conheceu Lula ainda em São Bernardo do Campo e acompanhou muito de perto boa parte das histórias que serão narradas. "Eu vi, testemunhei. Ninguém vai precisar me contar". Além disso, vangloria-se de não ter qualquer vínculo funcional ou partidário com o ex-presidente. "Quem paga meu livro? Não é o PT, não é o governo, não é uma fundação. É meu editor. Será um trabalho jornalístico", definiu.  

Conseguir o aval não foi fácil. Fernando precisou ser paciente e teve de gastar muita saliva. Quando Lula foi eleito, em 2002, fez a primeira investida. A intenção era passar quatro anos acompanhando todos os passos do presidente, anotando cada movimento dele, nos bastidores do governo, para contar a história ao final do mandato. Proposta negada. Com a reeleição, a ideia renasceu. "Nem pensar", devolveu novamente Lula. Em 2010, Fernando arriscou o que imaginou ser cartada de mestre: acessou o jornalista e amigo de longa data Ricardo Kotscho, que havia trabalhado no Planalto e era uma das pessoas mais próximas de Lula, para que o ajudasse e fizesse a ponte. Kotscho rebateu com uma gargalhada: "Fernando, você e mais 400 jornalistas querem essa história. Inclusive eu".

O desejo adormeceu. Surpreso e já sem muitas expectativas, Fernando voltaria a ser procurado por emissários do ex-presidente em julho de 2011, quando o escritor passava férias na França. O celular tocou. "O Lula quer almoçar com você", foi convidado. "Pode ser na minha volta ao Brasil?", sugeriu. Concordaram. Quando estiveram frente a frente, Lula foi objetivo: "não quero uma biografia, prefiro um ângulo específico". Depois de muita conversa, definiram o recorte: do sindicalista ao presidente, período que costura justamente a formação política mais explícita do líder popular. O jornalista conta que já deve ter gravado entrevistas com quase 50 pessoas. Tem viajado com Lula pelos mais diferentes cantos do mundo - apenas numa delas, para a Índia, foram mais de 23 horas de conversa. O editor da obra, no entanto, deve ter saído da Fnac com a pulga atrás da orelha. "Olha, devo confessar que estou meio preocupado. Há uns dez dias, Frei Betto me procurou e me entregou um saco plástico com trinta fitas cassete. São 50 horas de gravações que o Betto e o Chico Buarque fizeram com o Lula, entre 1978 e 80. Estou ouvindo as fitas. São informações absolutamente virgens. É ouro puro. Acho que meu editor vai ter de esperar mais um pouquinho para eu terminar o livro".

Com o ex-presidente, Fernando revive o trauma que já o havia atormentando com Paulo Coelho - biografar personagem vivo. O autor de "Diário de um mago" e "Brida" passou meses sem falar com o próprio biógrafo, depois do lançamento do livro. "Não me atendia", lembrou. Na volta de uma viagem para a Líbia, Fernando passou por Paris. Sem avisar, bateu na porta da casa de Paulo Coelho, que tomou um susto. Refeito, admitiu que não havia erro algum na biografia, mas confessou que tinha ficado chocado ao ler sobre a própria vida. Reclamou apenas que o jornalista não conseguira enxergar o lado espiritual do mago - mas reconheceu ainda que já esperava esse comportamento de um marxista, de um comuna. Fernando disse que bem que tentou, mas notou que seria bem mais complicado quando, certa vez, Paulo Coelho disse ter sido visitado por um anjo. "Você estava na França... o anjo falava francês ou português?", cutucou e questionou o jornalista, com certo sarcasmo apropriado. Ouviu como resposta alguns impropérios. "Mas respeitei profundamente a espiritualidade dele. No livro, não assumo, mas digo que ele me narrou todas as experiências extra-sensoriais, sem deboches ou julgamentos". O estranhamento passou. Os dois voltaram a se falar. Mais leve, Fernando prometeu que nunca mais biografaria gente viva. "Mas, sabem como é, a tentação é grande, a gente acaba tendo recaída". E, afinal, o novo desafio não era de pequena monta. Nunca antes na história desse país.

Nas idas e vindas das estradas das biografias, as penas (ou os arquivos, os computadores) de Fernando e Lira já se cruzaram algumas vezes. O autor de "Getúlio" recordou que foi justamente o escritor de "Chatô" o responsável por despertar nele a paixão pelas histórias dos outros. No início da carreira, quando morava em Fortaleza e já tinha narrado a trajetória do sanitarista Rodolfo Teófilo, Lira foi chamado por Fernando, que pensava num livro sobre a história "B" do Brasil (anônimos e pouco conhecidos), e convidado a atuar na pesquisa sobre Floro Bartolomeu, médico e político que atuou no Nordeste no início do século XX e acabou por tornar-se espécie de alter ego de padre Cícero. A obra acabou não saindo - mas fez despertar em Lira o desejo de biografar o Romão Batista. Com aval de Fernando, pôde publicizar uma história real tão fascinante e desconcertante que, segundo o escritor cearense, talvez nem Gabriel García Márquez, em seus melhores momentos e mesmo sob efeito de alucinógenos, seria capaz de inventar. Com Maysa, viveu o receio de biografar uma mulher, por quem acabou mesmo se apaixonando, literariamente falando. Reportar a história de Getúlio significou a disposição para encarar o mais amado e odiado personagem da história republicana brasileira. "Assim é que vale a pena. Deve ser tedioso biografar personagens que caminham em linha reta, sem conflitos. Com todo o respeito, mas eu não gostaria de escrever sobre Madre Teresa de Calcutá".

Fernando, que já concluiu a apuração para um livro sobre Antônio Carlos Magalhães e não descarta trazer à tona a história de José Dirceu, concordou com a tese da não linearidade e do gosto por personagens contraditórios. Reconheceu que essas opções são sempre marcadas por singularidades, empatias, e citou Tancredo Neves e Juscelino Kubitschek como personalidades que não o encantam, quando pensa em possíveis biografados. "O personagem precisa me tirar o fôlego". Ao final do papo, depois de criticar o culto às celebridades, efêmeras e vazias de conteúdo, e de condenar duramente as restrições legais ao trabalho dos biógrafos, que estão alçando os departamentos jurídicos das editoras a papeis que não deveriam ter, Fernando retomou uma fala do antropólogo Darcy Ribeiro, para quem "o Brasil tem muitas histórias para contar. Falta quem queira contá-las".

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