quinta-feira, 25 de julho de 2013

A FORÇA DOS PERSONAGENS EM "A TRISTEZA EXTRAORDINÁRIA DO LEOPARDO-DAS-NEVES"

Um escrivão de polícia atormentado e insone, amparado por generosas e corriqueiras doses de whisky e comprimidos de anfetamina, divide suas atenções entre a rotina na delegacia e os cuidados não muito entusiasmados com o pai, senhor de idade com demência em estágio avançado (tentou duas vezes o suicídio), que gosta de ouvir do filho, antes de dormir, histórias sobre animais. Moram num sobrado no tradicional bairro do Bom Retiro, região central de São Paulo - no térreo, funciona uma antiga mercearia ainda mantida pelo patriarca; o abrigo deles fica no andar de cima.

Bem perto, num casarão misterioso, sombrio, vive a Sra X, enfermeira especializada em geriatria, formada na Inglaterra e profundamente religiosa, responsável por cuidar de uma personagem enigmática, com um metro e vinte e cinco centímetros de altura e trinta e dois quilos de peso, a usar sempre uma capa vermelha. Identificada apenas como a "Criatura", sofre com uma doença que faz a pele ficar cheia de escamas e feridas, aparência terrível. Quase um monstro. Por conta da saúde delicada e da repulsa que provoca, passa boa parte do tempo enclausurada, incomunicável, recorrendo a leituras e à televisão. Os raríssimos programas para além das paredes da mansão são noturnos. Obrigatoriamente. Para sobreviver, as duas são ajudadas por um solidário e curioso entregador de supermercado (o único que quase consegue ver a Criatura na mansão). É ele quem faz chegar comida e outros mantimentos básicos até elas (muitas vezes colocando na conta do patrão). Obcecado pela vontade de arrumar namorada, motivo de chacota entre os colegas, o rapaz quase estupra uma jovem da igreja que frequenta.

Numa das aventuras fora do casarão, cuidadosamente planejada, a Sra X e a Criatura participam do Nocturama, passeio oferecido pelo zoológico da cidade, a permitir que os visitantes tenham contato direto com animais de hábitos noturnos. São levadas ao parque por um taxista sádico, dedicado a encontrar vítimas (primeiro gatos, depois carneiros e até moradores de rua) para saciar a gana enfurecida dos três cães rottweilers que ele cria. A Criatura deseja ardentemente conhecer de perto o leopardo-das-neves que, depois de se deixar encantar pela sonoridade da voz humana, foi capturado nas distantes montanhas da Rússia e atravessou o mundo até chegar ao cativeiro paulistano. Com a rejeição inicial e posterior morte da companheira de jaula, já no zoológico em São Paulo, o felino asiático entra em profunda depressão, com transtornos de comportamento. Refugia-se numa caverna. Só sai dela à noite. Desesperado, dilacera as patas dianteiras. Quase morre.

Naquela noite fatídica, depois de deixar a Sra X e a Criatura no portão de entrada do parque, num ímpeto de fúria e movido por instinto cruel, o taxista decide voltar para buscar seus cachorros em casa, faz meia volta e retorna com eles ao zoológico, para que lá pudessem se fartar impunemente com novo desafio - caçar impiedosamente os bichos soltos. As histórias se encontram. Os caminhos se cruzam. Explode uma narrativa tensa, com cenas eletrizantes e cortes rápidos, descrições detalhadas, a lembrar os escritos do mestre Edgar Allan Poe, misturando mistério, suspense, tragédia, mortes, o fantástico e o sobrenatural, uma tempestade, uma veterinária vaidosa e sem saber como reagir, casais movidos por falsas paixões, celulares sem bateria, orelhões de emergência que não funcionam e até espancamento, exigindo finalmente investigação policial, que será acompanhada e relatada pelo escrivão. O caso do Nocturama, como o episódio ficará conhecido, será (também) narrado ao pai do policial. Noturnamente, a embalar o sono do velho. Coincidência: terminei de ler "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves", romance mais recente do mato-grossense Joca Reiners Terron, na madrugada fria e chuvosa da terça para a quarta-feira (24-25 de julho), quando os termômetros em São Paulo marcavam temperaturas baixíssimas, perto de zero grau. Inspirador.

Ao demarcar ainda território com pistas paralelas, num emaranhado de tecidos que se completam, a narrativa coloca o leitor em sintonia com reflexões diretamente relacionadas à essência do ser humano e evidencia contradições que caracterizam megalópoles como São Paulo. Em mutações com sentidos inversos, o leopardo se humaniza, despertando solidariedade e preocupações, e a Criatura se bestializa, provocando sustos, medo e ojeriza. Sem saber ao certo como lidar com a velhice e a doença, o escrivão tem no pai um estorvo, uma atrapalhação, de quem deve cuidar quase que só por pena e obrigação, a confirmar a terceira idade como uma etapa descartável da existência e de quem desejamos distância. Quando garoto, o narrador revolta-se e dá uma surra num colega que não consegue esconder comportamento racista e o chama de sarará, dizendo que "ele não podia ser filho de um homem tão branquinho" (a mãe do protagonista era negra; o pai, judeu).

O taxista, no limite do desprezo absoluto pela vida, a fazer do diferente produto também descartável, sem culpa, é capaz de oferecer aos dentes afiados e implacáveis de seus cães um morador de rua, para arrefecer o instinto selvagem de destruição dos animais. "(...) em poucos segundos o cão mais jovem conseguiu mordê-lo na garganta. A última nota da execução musical  - um dó maior - foi o som da carótida do morador de rua se partindo". Na percepção do taxista, que circulava regularmente pelo Bom Retiro e imediações à procura de passageiros, a região central da cidade, durante a noite, abriga "putas e travestis nas calçadas escurecidas. Viciados em crack. (...) Mapeou os locais utilizados pelos noias para dormir. (...) Observou a dança dos corpos envoltos por cobertores malcheirosos. As chamas avermelhadas dos cachimbos improvisados".

Na visão do narrador, desde criança morador do bairro, "no comecinho da manhã, o Bom Retiro volta à vida e é tomado pelos comerciantes coreanos que batem papo nas portas de suas lojas, enquanto os velhos judeus que restaram vão à sinagoga rezar para que em breve possam aumentar o preço do aluguel pago pelos coreanos, e as ruas então são ocupadas pelo bolivianos, por toda a população de Santa Cruz de la Sierra e de La Paz juntas, que rezam para Ekeko lhes arranjar dinheiro fácil para retornarem a seu país, mas na verdade só conseguem ser explorados pelos coreanos, que devem seus aluguéis aos judeus".

Em debate recentemente realizado na Virada da Livraria Cultura, que reuniu também os escritores Daniel Pellizzari e Andréa del Fuego, Joca anunciou a disposição literária de abandonar os raciocínios tortuosos e as frases rebuscadas presentes em obras anteriores para apostar em narrativas de personagens. História de múltiplas vozes, embalada por conflitos mundanos e comportamentos complexos, não raro espantosos e repugnantes, "A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves" registra com tintas bem nítidas essa reviravolta. E deixa o leitor com vontade de "quero mais".

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