Foto - Divulgação FLIP |
O paulista criado em Porto Alegre Daniel Galera é certamente um dos autores mais intensos e talentosos da atual Literatura brasileira, elogiado pela crítica e apreciado pelo público. "Barba ensopada de sangue", seu romance mais recente, lançado no final do ano passado, foi o protagonista da fala dele na mesa "Tragédias no microscópio", realizada na FLIP. Na obra, o personagem principal decide morar na cidade litorânea de Garopaba, em Santa Catarina, disposto a desvendar um mistério que envolve o avô dele. A partir desse universo específico, Galera faz estourar uma avalanche de dúvidas, aprendizados, angústias, amores, desejos sexuais, traições e violências, numa muito bem tramada narrativa que escancara dramas existenciais coletivos, a incomodar toda a humanidade, sem perder de vista as dimensões individuais, as pequenas histórias.
O livro não nasceu ao acaso. Desde muito jovem, morando em Garopaba, o escritor ouvia falar de pessoas que tinham virado lendas, em enredos marcados por superstições, e que vão se propagando e crescendo, até se tornarem inquestionáveis, impositivos. Para ele, nessas trajetórias, quando se faz o caminho inverso, de desconstrução, percebe-se que eram sujeitos anônimos, pessoas absolutamente normais, que não tinham a menor ideia de que poderiam alcançar essa imagem gigantesca. Foi esse roteiro que ele pretendeu levar para "Barba". Na definição do autor, o romance é um pequeno estudo sobre como um aspecto mítico pode brotar de uma história trivial. E nesse jogo narrativo, ao desejar descobrir o que aconteceu com o avô, o protagonista vai simultaneamente se reencontrando e passando sua vida a limpo. "Quis provocar no leitor a sensação de estar dentro da obra, que ele estivesse no mesmo ritmo da narrativa".
Outra característica marcante do livro é que o personagem principal não tem nome - é sempre 'ele', o 'nadador', 'o que veio de fora', o que exigiu de Galera um esforço literário extra, já que foi preciso encontrar recursos eficientes para que ninguém na obra pronunciasse o nome dele. "Não é para esconder, não sei mesmo o nome do cara, nenhum nome tinha o jeito dele. Pensei em vários, mas acabei recusando todos", explicou. Sobre o fato de a história se passar em uma cidade pequena, Galera considera que o romance funciona exatamente por isso. "Articula e identifica relações e situações que dificilmente aconteceriam numa cidade grande".
Muito leitores já perguntaram a ele se não foi deprimente escrever sobre um personagem infeliz, em permanente dúvida, que não sabe o que quer. Galera diz que entende o protagonista de forma oposta - um sujeito a viver exatamente como gostaria, a encontrar o lugar que lhe pertencia. É alguém feliz. Quem percebe essa felicidade, já no final da trama, é a ex-namorada dele, que identifica que o antigo amor está justamente escapando e deixando para trás os traumas antigos - a paixão que não deu certo, o suicídio do pai, os entreveros com o irmão. "Ela é a única que saca que ele está bem, não está sofrendo".
Galera reconheceu que não tem pudor de se deixar influenciar por outros escritores e que também não acha ruim que os leitores detectem essas influências. "Inspiração é para ser usada". Em "Barba", ele admitiu que, para estruturar os longos trechos descritivos, bebeu na fonte do falecido romancista e contista estadunidense David Foster Wallace (1962-2008). Mas a contribuição decisiva, garante, veio de outro estadunidense - Cormac McCarthy, autor de "A Travessia", onde é possível notar a presença do misticismo. "Essa foi uma conexão literária decisiva para meu romance", reforçou.
Em determinado momento de "Barba', Jasmin, a segunda namorada em Garopaba do homem que não tem nome, decreta que 'estamos vivendo a era do tá foda". Para Galera, sempre estivemos despreparados para o sofrimento, mas o excesso de informações nos faz sofrer ainda mais. Em contrapartida, ele disse que a vida não é difícil, e que a felicidade está em saber aproveitar a beleza dos pequenos momentos e gestos. Aqui, parece existir estreita conexão entre autor e personagem. "Se há algo de heroico nele, e é uma característica com a qual concordo, é que ele é um cara desprovido de ambições, que pensa que o excesso resulta em transtornos. Talvez seja uma projeção minha. É algo que também procuro colocar em prática".
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