sexta-feira, 12 de julho de 2013

FLIP 2013, EM OITO TEXTOS

Foto - vivoporaqui.wordpress.com





1. GRACILIANO RAMOS, UM ESCRITOR EDUCADOR

A decisão de fazer do alagoano Graciliano Ramos o homenageado da décima primeira edição da Festa Literária Internacional de Paraty aconteceu ainda no ano passado e levou em consideração as inquestionáveis qualidades e contribuições narrativas do escritor, mas acabou casualmente, e por conta do momento político vivido pelo Brasil, assumindo ares de decisão ainda mais acertada e pertinente. Afinal, se Graciliano fosse vivo, estaria certamente e de alguma maneira, talvez usando a própria escrita, colocando-se ao lado dos indignados que tomam as ruas do país para exigir mais democracia e serviços públicos com qualidade e para todos. "Ele fazia uso de uma linguagem concisa e clara, nada pomposa, para refletir em sua obra a respeito de duas vertentes de crueldade: a opressão do meio físico, a exploração estabelecida pelo mais forte, como se vê em Vidas Secas, e um outro tipo de maldade, mais difícil de explicar, de uma violência gratuita, marcada por vingança e ressentimento, como aparece em Infância. Tinha uma postura ética que recusava o cinismo e a indiferença diante das chagas sociais", destacou o escritor Milton Hatoum, na Conferência de Abertura da FLIP, realizada nesta noite de 03 de julho.

Num ensaio instigante e habilmente construído, lido linha por linha e a viajar por diferentes obras e com citações a diversos críticos, Hatoum sugeriu que uma das pistas para compreender Graciliano é a relação que se pode estabelecer entre os personagens por ele criados e a esfera da Educação. Quando prefeito da cidade de Palmeira dos Índios, entre 1928 e 1930, Graciliano já evidenciara em seus relatórios administrativos essa sensibilidade social, caracterizada pela preocupação com as minorias e por um profundo fervor democrático, que se materializaram no enfrentamento com os coronéis, no eleger a questão fundiária como uma de suas prioridades e no incentivo à construção de escolas e à formação de professores. "São questões que em seguida seriam fortemente exploradas em seus livros", completou Hatoum.

Como se viu na Conferência, Graciliano é um autor que permanentemente pensa sobre o sentido do aprendizado, questionando a pouca disposição das elites em educar os de baixo e denunciando a palavra como instrumento de exploração. Em Angústia, de 1936, Julião Tavares é um filho de negociante que fala sem qualquer sofisticação, recorrendo sempre aos pensamentos que abusam dos adjetivos, mas vazios de conteúdo. Em Caetés, de 1933, Evaristo Barroca é um advogado capaz de improvisar contundentes discursos - e que acaba se dando bem e virando político. A linguagem marca os territórios e espaços sociais por onde os dois transitam.

A mesma provocação pode ser encontrada em São Bernardo, de 1934 - o protagonista Paulo Honório não gosta de mulheres sabidas. Não aceita a insubmissão da esposa Madalena, professora bondosa e altruísta, conhecedora das coisas do mundo, que domina a palavra e exige melhores condições de vida para os trabalhadores rurais. "Sem a presença de Madalena, a história se resumiria a um homem bruto, que enriquece de maneira ilícita", ressaltou Hatoum. Em Vidas Secas, de 1937, a mesma pegada: a palavra falta, e os personagens são vítimas da opressão e da miséria imposta pelo meio e têm profundas dificuldades para pensar e evidentes carências de saber, comunicando-se muitas vezes por gestos, quase grunhidos. No final do livro, a esperança de que o futuro dos filhos, que frequentariam a escola, pudesse ser diferente. "Ainda assim, é um sonho incerto, impreciso, que se coloca no condicional, no futuro do pretérito", destacou o conferencista. 

Para ele, Graciliano sempre procurou escancarar em suas obras as relações desiguais, sem jamais se submeter a propagandas ideológicas, em narrativas marcadas pela brutalidade do Brasil, mas que ao mesmo tempo falam da humanidade que está em todos nós. "Era conhecido por ser áspero e intratável, mas foi sempre profundamente afetuoso com os amigos e muito rigoroso consigo mesmo", afirmou. Miguel Conde, curador da FLIP, completou: "Graciliano foi um sujeito desconfiado da mistificação da figura do escritor, que pensou criticamente o seu lugar na sociedade e que rechaçava a cultura letrada como espaço de demarcação das diferenças sociais". 



2. HISTÓRIAS DE FRACASSOS

"Formas da derrota" foi o tema da conversa que reuniu os romancistas pernambucano José Luiz Passos, autor de "O sonâmbulo amador" (2012), e o gaúcho Paulo Scott, que escreveu "Habitante irreal" (2011) e acaba de lançar "Ithaca road". Como fio condutor do papo, a constatação de que há histórias, antigas e contemporâneas, marcadas por tons pessimistas e que, de antemão, anunciam a impossibilidade de enredos felizes e harmônicos. Os personagens dessas narrativas são sujeitos que buscam permanentemente realizar seus sonhos, sem jamais conseguir concretizá-los. Flertam com o fracasso. Em sua provocação inicial, e como exemplo categórico dessa forma de enredo, o mediador João Gabriel de Lima, da revista Época, citou o romance "Madame Bovary" (1857), de Gustave Flaubert, que, segundo ele, pode ser considerado um dos livros fundadores do romance ocidental - e que compartilha exatamente a história de uma mulher derrotada, que almeja o grande e perfeito amor, mas não é dona de seus próprios desejos. "De certa forma, todos nós que escrevemos a partir de então somos filhos dessa derrota original", completou Lima.  

O mediador lembrou então que Jurandir, o personagem principal da mais recente obra de Passos, é um homem de 60 anos, que contabiliza perdas ao longo da vida - de sua paixão, do filho, do melhor amigo. Narelle, protagonista de "Ithaca road", é uma índia neozelandesa, maori, que vê o irmão desaparecer, herda dívidas e se envolve com criminosos. Lima questionou: "como acontece para vocês essa aventura da criação?". 

Passos contou que, como desdobramento de seu primeiro romance, queria narrar a história de alguém que manifestasse profundo desencanto com a realidade, sem que tivesse essa clareza ou percepção, e sem também precisar explicar objetivamente essa característica para o leitor. Decidiu apostar em alguém que sonha. Mirou-se em Dom Quixote, desenvolvendo a ideia de que as amizades que compartilhamos nos levam muitas vezes a investir em ações que não nos são apenas sugeridas, mas impostas. "O Jurandir é alguém de quem se espera um relatório sobre erros cometidos durante a vida que ele próprio não compreende". O autor levou seis anos para escrever o livro - e inspirou-se ainda em episódios muito, muito próximos. Enquanto escrevia, decidiu visitar uma usina de cana-de-açúcar onde o avô havia trabalhado nos anos 1930. Depois de apresentar-se com evasivas e algumas mentiras, a pessoa que o recebeu lembrou-se do avô. E ainda foi capaz de encontrar na clínica da usina o médico que tinha feito o parto de Passos. "Um clima de profunda nostalgia nos envolveu. Era uma história extraordinária, do ponto de vista afetivo". Segundo o escritor pernambucano, foi a chave para engatar a história de pessoas que ficam imobilizadas pelas lembranças. "Era alguém que ficara, mas que ainda sonhava e tinha esperanças. O Jurandir também nasceu dessa maneira". 

Scott preferiu revelar o nascimento da índia Maína, uma das figuras importantes de "Habitante irreal". Ele lembrou que estava viajando pela BR-116, no trecho que liga Porto Alegre a Pelotas, quando se deparou com um acampamento indígena à beira da estrada. Eram índios que já não conseguiam sequer espaço em aldeias, e lá estavam, abandonados à própria sorte. Àquele cenário, somou informações de altas taxas de suicídio entre adolescentes indígenas, em distintas aldeias e etnias. "Eles não conseguem entrar no nosso mundo. O diálogo com os nativos é sempre muito difícil, em qualquer lugar. E eles continuam sendo exterminados, dizimados. Poucos são os que prestam atenção a essa tragédia. Maína nasceu dessas inquietações". A obra tem ainda como trama de fundo as desilusões políticas, marcadas pela chegada, pela primeira vez, de um partido de esquerda à administração da capital. No entanto, no exato momento em que o governo se constitui, bandeiras de luta são abandonadas e a barganha por cargos se impõe, deixando para trás os sonhos de uma geração. "Foi por isso até chamado de romance profético", lamentou. 

O mediador sugeriu nova provocação: "a crítica diz que trabalham com pequenas realidades e que falta a vocês ambição para escrever o romance de uma geração...".

O autor pernambucano sorriu de leve. Disse que não saberia como escrever algo que representasse a geração dele, até porque a literatura brasileira atual é múltipla, plural, a lidar até mesmo com realidades que não são nacionais. Reforçou que procura desenvolver histórias nas quais há pequenos canais que nos conectam a um passado que irrompe e de onde algumas questões voltam para nos atormentar. O que ele almeja é entender a complexidade dessa relação temporal, que não raro nos cobra preço alto. "É a minha questão. Não sei se é a da minha geração". Scott aproveitou a deixa e, num desabafo, reforçou que o fato de a geração dele ter falhado em suas experiências políticas e de ter prometido uma democracia que jamais foi capaz de colocar em prática é algo que o incomoda profundamente. "Queríamos construir um futuro acima de qualquer suspeita. Mas o sonho foi perdido. De alguma maneira, meus livros promovem esse acerto de contas", reconheceu.

Foi inevitável: "vocês acham que uma geração será sempre responsabilizada pelos erros cometidos pelas anteriores?", Lima insistiu e cutucou. Passos foi mais do que rápido no raciocínio: "Escrevo para contar histórias de pessoas que arcam com consequências de escolhas e decisões que elas não tomaram. Para mim, imaginar essas narrativas significa chamar a atenção para o atual estado das coisas". Scott foi sucinto. E perspicaz: "Acompanho o senhor relator!".    



3. A VOZ DAS RUAS, EM QUATRO VOZES

As vozes das ruas também se fizeram presentes - e foram debatidas - na Festa Literária Internacional de Paraty. Na noite de quinta-feira, na Tenda dos Autores, entre aplausos e gritos de "fora, Cabral!", puderam ser ouvidas quatro narrativas sobre os protestos que tomam conta do país. Em comum, o tom otimista, a percepção de que vivemos momento político privilegiado e a convicção de que o Brasil que sairá das manifestações será bem melhor do que aquele que temos hoje.

Pablo Capilé, coordenador da Rede Fora do Eixo e da Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) - "Hoje, só consegue entender o que está acontecendo nas ruas quem está no mesmo lugar onde as manifestações acontecem, onde estão os desejos dessa geração. Há uma sinergia, é algo orgânico. Se não está dentro, não entende a dimensão dos atos, dos protestos. Há uma evidente crise dos intermediários, o jornalismo feito por empresas como Globo, Folha e Veja caducou. Não estão entendendo nada, estão perdidos. Não é nem mais a tentativa de impor agenda conservadora, mas a reação a um fim que é inevitável. Há quinze anos, algo parecido aconteceu com a música, quando rompeu-se a centralidade da distribuição das gravadoras. Esse dilema agora impacta a imprensa, que estava acostumada a controlar, a ser filtro e é pega de calças curtas. A partir da experiência que tivemos aqui no Brasil, acabamos de mandar um repórter para passar vinte dias no Egito, financiado por colaboradores. É o novo que se impõe. O governo Lula teve a competência para tirar 40 milhões de pessoas da miséria, mas criou novas expectativas e levantou novas perguntas. Há muitas micro indignações nas ruas, que estão se somando. O Brasil pode ser vanguarda nessa crise civilizatória, na crise do capital e vetor de um novo mundo possível. Nessa hora, ficar em cima do muro não é opção. Não dá para ter medo". 

Marcus Vinicius Faustini, escritor, diretor teatral e criador da Agência Redes para a Juventude - "Estamos filmando uma história de amor que nasce nas passeatas. É ficção, usamos atores que encenam pessoas que não são militantes e que se conhecem nas ruas. Queremos discutir como se constrói essa imagem das manifestações, quem narra, como narra, retratando ainda as agressões que o capital impõe ao território do Rio de Janeiro. O gigante não acordou agora. Os movimentos sociais estavam agindo, vivos, discutindo, cobrando. O que aconteceu foi uma reordenação dessa expressão, quando todo mundo se encontrou nas ruas. É algo expressivo, vem dos coletivos, das plenárias, das assembleias, das periferias. Nesse momento de disputa do país, vários setores passaram a constituir suas dicções. Por medo, todos querem controlar a multidão, categorizar, hierarquizar. Estamos atrás da nossa versão. É uma disputa interessante. A pauta é clara: queremos espaços de participação. Também não tenho medo. E é preciso dizer bem alto que a Polícia Militar não está preparada para lidar com essas demandas populares e democráticas. É fundamental acabar com essas polícias".

Fabiano Calixto, poeta e organizador do e-book 'Vinagre: Uma antologia de poetas neobarracos' - "A manifestação do dia 13 de junho em São Paulo, duramente reprimida pela PM, gerou uma mistura de preocupação e de solidariedade. Pensei na força que teria um grito. Não importava o poético. Conversando com amigos que estavam produzindo textos para distribuir na manifestação do dia 17, decidi viabilizar um material on-line. A iniciativa repercutiu no face, ferramenta fantástica para esse tipo de demanda, e conseguimos reunir, no final, 170 poetas. O livro foi resultado desse trabalho coletivo. É a linguagem como ferramenta política. Disputamos narrativas e ressignificamos o 'vândalo' midiático, que ganhou sentido de alguém que se insurge contra as coisas que incomodam. Fazer poesia já é uma forma de resistência, é algo anárquico em um país que não lê poesias. Juntamos poemas visuais, alguns que implodiam a linguagem, outros mais formais, outros bem humorados. A antologia foi esse gesto de solidariedade". 

Juan Arias, correspondente no Brasil do jornal espanhol El Pais - "Estou muito orgulhoso. O Brasil é um adolescente rebelde agora. Nos últimos dez anos, eu viajava pela Europa e por outros lugares do mundo e ouvia sempre maravilhas sobre o Brasil. Era um país tido como rico, invejado, cheio de conquistas, que não tinha mais pobres, onde hospitais e escolas funcionavam perfeitamente. Pensava comigo mesmo: é verdade, o país cresceu, está melhor. Mas faltava muita coisa. E a sociedade estava morta. Em 2011, escrevi um artigo que questionava quando esse Brasil que juntava milhões em passeatas do orgulho gay e das marchas de Jesus iria também protestar contra tantas coisas que estavam ausentes. E aconteceu. Na Espanha, os protestos são contra direitos que eles estão perdendo. No Brasil, as pessoas se manifestam e tomam as ruas por coisas que ainda não têm. É diferente. A sociedade resgatou sua voz e está fazendo perguntas aos poderes. E a História se faz perguntando, não obedecendo. O Brasil já perguntou. A responsabilidade agora é dos que estão no poder. E não vai adiantar tentar enganar e criar respostas para questões que não nasceram nas ruas". 



4. POR QUE GOSTAMOS DE LER?

O escritor e ensaísta Francisco Bosco pediu que desenhássemos no ar um diagrama, com uma reta dividindo o plano imaginário em duas metades. Na porção direita (aqui, sem qualquer conotação ideológica) encontraríamos o lugar da cultura - os hábitos, tradições e representações que vivemos, a partir dos quais nos reconhecemos e que nos ajudam a reforçar identidades. À esquerda, a oposição, o campo que ele chamou de destruição absoluta, uma espécie de contra-cultura, aquilo que se choca diametralmente com todos os nossos valores e convicções e que de alguma maneira duvida daquilo que somos. 

Para o autor, doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a sensação de prazer  que a leitura nos proporciona pode ser explicada pelo lado direito do desenho, pois é uma percepção que mantém relações de proximidade com a cultura. Já o gozo que sentimos pelos textos explode por conta da outra metade - nasce dos ruídos, estranhamentos e confrontos estabelecidos com a cultura. "Os livros de (Honoré de) Balzac, por exemplo, nos dão prazer, porque reafirmam a nossa identidade e nos confortam. Revelam o mundo tal qual o conhecemos. Já 'Ulisses', de James Joyce, é claramente uma obra que nos faz transbordar de gozo, porque nos tira da zona de conforto, em função da desconstrução de linguagens, do tempo, das estratégias narrativas distantes dos modos tradicionais de contar histórias", ilustrou. 

Foram esses dois conceitos originalmente desenvolvidos pelo escritor e crítico literário francês Roland Barthes (1915-1980) que inspiraram e ditaram o norte do debate travado na mesa "O prazer do texto", que aconteceu no início desta tarde ensolarada de sexta-feira na FLIP.

Ao olhar para o próprio ofício e abordar a outra face do mesmo processo - o prazer de escrever -, Bosco afirmou que essa sensação é resultado do potencial que o escritor manifesta de conseguir passar para os seus leitores aquilo que ele (autor) não é. "A literatura faz com que a gente saia do campo do 'eu', implodindo a relação de impessoalidade que carregamos. Escrevemos para acionar esse transporte para a impessoalidade", insistiu. 

Candidatíssima a conquistar o posto de xodó da FLIP 2013, esbanjando didatismo e simpatia, falando em Português quase perfeito (com o charme do sotaque francês) e até arriscando cantar alguns versos de 'Trem das Onze', a escritora Lila Azam Zanganeh (francesa, filha de iranianos) embarcou na exposição inicial de Bosco e lembrou que Vladimir Nabokov (1889-1977) costumava dizer que lemos para nos encantar com o mundo. 

Autora de "O encantador - Nabokov e a felicidade", lançado recentemente no Brasil e onde desenvolve ensaio de fôlego sobre a obra do clássico russo, Lila revelou que decidiu escrever o livro justamente porque sentia falta de transgressão na Literatura contemporânea. "Há muitos autores atualmente nos Estados Unidos e na Europa que falam de origens, de identidades. Respeito, mas não são assuntos que me interessam. Pode parecer estranho, mas 'Lolita'  (1955) é o mais importante romance de amor do século XX, exatamente porque lida com os dois grandes tabus do nosso tempo, a pedofilia e o incesto. É dessa forma que promove o jogo do êxtase, que é algo bem próximo daquilo que o Bosco chama de gozo", analisou. Ela lembrou ainda que Nabokov admirava sobremaneira os contos de fadas, que considerava a literatura verdadeira, pontes mágicas para a criação de universos originais. "Ler nos faz imaginar o mundo", completou.

Ela admitiu que "O encantador" sistematiza algumas verdades - mas é ao mesmo tempo permeado por muitas invenções e mentiras, desafiando o leitor a todo instante a exercitar esse território da imaginação. O ponto alto da narrativa é o capítulo em que Lila "entrevista" Nabokov (detalhe: ela tinha apenas dez meses quando o escritor russo morreu, muito embora alguns jornalistas já tenham perguntado para ela, em tom sério, como teria sido a experiência...). "Sonhei várias vezes com Nabokov, era uma obsessão literária. Nos sonhos, ele nunca era perfeito, tinha várias ideias atrasadas e erradas, não gostava de escritoras mulheres. Chegou uma hora em que não queria mais apenas sonhar, mas falar com ele". 

Materializou-se assim a suposta e idealizada conversa, de forma crítica e irreverente. "Construir aquele diálogo me fez sentir imenso prazer. Era a voz dele na minha voz, ele, eu, ele novamente, alternando falas, num jogo de espelhos infinito", contou. A tensão veio à tona quando ela teve de ler o trecho, em voz alta, para o filho adoentado de Nabokov. Ele não gostou. Ficou bravo. Questionou cada resposta, afirmando que muitas não representavam o que o pai pensava. "Mas ele acabou me ajudando. E fomos procurar juntos o que significava aquela felicidade proporcionada pela escrita".

Como bem lembrou o mediador Cassiano Elek Machado logo no início da conversa, o advento das novas tecnologias e plataformas fez com que o cuidado com as narrativas fosse relegado a quinto plano. "Mas haverá um tempo em que daremos conta da importância do tema, que voltará a ser valorizado". Concordo. Afinal, não há existência humana civilizada sem o contato muito estreito - marcado por prazer ou por gozo - com uma boa e bem contada história. 



5. MANIFESTAÇÕES MOSTRAM QUE DEMOCRACIA REPRESENTATIVA BRASILEIRA CADUCOU

Se estivesse vivo e pudesse observar as manifestações que acontecem em todo Brasil, Vladimir Lênin, líder da revolução socialista russa de 1917, talvez em algum momento perguntasse: "O que fazer?". Um outro Vladimir, o filósofo Safatle (brasileiro, por coincidência bem parecido com o xará famoso), responderia sem pestanejar: "camarada, não devemos ter medo do povo". Em sua coluna semanal na Folha de São Paulo, Safatle já havia escrito, em 18 de junho, ainda no calor dos acontecimentos e no dia seguinte à gigantesca manifestação que ocupou a cidade de São Paulo, que "democracia é barulho e quem gosta de silêncio prefere ditaduras". 

Foi essa a mensagem que ele reforçou em sua participação na FLIP, quando não escondeu a satisfação com os tremores populares vividos pelo país e destacou que as recentes passeatas e protestos cumpriram a tarefa de recolocar a política nas ruas, resgatando uma característica de identidade da população brasileira - que, ao contrário do retrato que se pinta dela, não teria nada de submissa ou pacata. 

"Esses últimos vinte anos é que representaram exceção. Somos um povo de lutas. O que fizemos agora foi negar a política dos gabinetes e dos bastidores para reconectá-la ao espaço público, a partir de demandas populares que são amplas. Quem acompanhou o que aconteceu no Brasil nos últimos dois anos não se surpreendeu. Não tomou susto. Nem deve temer. É o novo eixo da política funcionando", afirmou. Para ele, as tensões vão existir. A disputa está em curso. "Mas nos impedir de tentar é um crime", completou.

Safatle lembrou que as duas últimas décadas foram dominadas pela polarização entre PT e PSDB, dois consórcios que sentiam-se confortáveis por achar que controlavam por completo o jogo político nacional. O PT acreditava que tinha o monopólio dos movimentos sociais e a hegemonia das mobilizações de rua, e o PSDB entendia que aglutinava o pensamento conservador e a antiga classe média. "Os dois pólos estão atordoados. Já não representam mais quem imaginavam representar", definiu. 

Ele citou como exemplos dessa crise de identidades as passeatas que se espalham pelo país (à esquerda) e a mais recente marcha para Jesus (à direita). Nos dois casos, PT e PSDB estiveram muito longe de serem protagonistas dos processos e das mobilizações. Ficaram à margem, como meros espectadores, vendo a banda passar. "Havia um descontentamento social crescente no Brasil, criando um caldo de indignações que acabou explodindo".

Na avaliação que faz, Safatle identifica pelo menos duas pautas que estão definitivamente instaladas na agenda nacional. A primeira diz respeito ao esgotamento das possibilidades de funcionamento da democracia representativa parlamentar, incapaz de dar respostas aos anseios populares. Segundo o filósofo, o Brasil vive uma profunda crise de representação, não só dos políticos, mas também da imprensa, atores que se descolaram por completo do que acontecia nas ruas. 

Diante desse estremecimento, e sem um novo modelo institucional, a política não vai funcionar. A melhor resposta para essa crise teria sido a Constituinte, que permitiria à população escapar do papel de mero boneco de ventríloquo. O filósofo ironizou: "A iniciativa era tão boa que durou apenas 24 horas", em uma capitulação que sugere mais uma evidência da falência do atual sistema. "Não dá mais para reformar. É preciso refundar as nossas instituições". Veio então o xeque-mate: "o que se quer é que o último mensaleiro petista seja enforcado nas tripas do último mensaleiro tucano, levando com eles os empreiteiros e banqueiros que corromperam o Estado nacional". 

A segunda mensagem que vem das ruas, diz Safatle, exige novo ciclo de combate à desigualdade social e a ampliação dos serviços públicos oferecidos pelo Estado. A era Lula produziu inclusão importante, mas não é mais capaz de dar conta das esperanças do povo, que cobra saúde, educação e transporte gratuitos e de qualidade. O Estado vai precisar ampliar o seu leque de atuação e de cobertura e terá de ser capaz de ler e entender o que acontece nas ruas. "O lulismo atingiu seu máximo, esgotou-se", sentenciou.

Com a bola pingando na área e pedindo "me chuta", o psicanalista Tales Ab'Saber, autor de "Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica", entrou em cena, procurou contextualizar a discussão e retomou as origens do movimento, que começou com um pequeno grupo de militantes que, segundo o especialista, fizeram uma avaliação teórica aprofundada das tensões latentes na sociedade brasileira e do ponto que poderia exatamente revelar o eixo de desequilíbrio da nossa democracia. "Eu me lembro de passar pela avenida doutor Arnaldo em 2006, 2007 e ver os meninos do Movimento Passe Livre protestando contra as passagens de ônibus. Eram poucos, algumas dezenas, mas sempre que a tarifa subia eles estavam lá, com cartazes, chamando a atenção para o tema. Foram minando o sistema". 

Apesar de controversa, ele fez questão de insistir na tese de que o MPL agiu com lucidez política singular e que conseguiu costurar um diagnóstico preciso de onde falhava a máquina da nossa democracia, recusando o cabresto da máquina lulo-petista. Os líderes do Movimento revelaram que há pontos estruturais e nevrálgicos em nossa organização social e que, se bem apontados e apertados, fazem rachar um cristal imaginário. "É a leitura das contradições da sociedade de classes e a aposta nas questões em que a esquerda deve investir para ganhar esse embate. É uma análise marxista da realidade. Por conta dela os meninos souberam conquistar a totalidade". 

O psicanalista afirmou ainda que a consolidação do transporte público e de qualidade como um direito da cidadania e o recuo da Polícia Militar fascista de São Paulo, que foi obrigada a abandonar a postura truculenta e repressora das primeiras manifestações, podem ser consideradas as duas primeiras vitórias - concretas e simbólicas - do movimento. "O que está nas ruas é um evidente questionamento sobre para onde vai a riqueza produzida pelo país, se ela vai servir à eterna concentração ou se vai ser destinada à cidadania. Essa agenda é clara. Só não vê quem não quer. Ou quem tem medo e quer fragmentar e dividir", avaliou.



6. AS REVOLUÇÕES NO EGITO

O escritor egípcio Alaa Al-Aswany, também especialista em relações internacionais, cravou em entrevista publicada neste domingo pelo caderno "Aliás" do jornal "O Estado de São Paulo" que a derrubada do presidente Mohamed Morsi não foi um golpe de Estado. "Democracia não é um livro sagrado. A sensação é de vitória. Morsi é um terrorista fascista. Estamos tomando de volta a revolução roubada. Estávamos frustrados, pois não víamos nada mudar. Agora tomamos as rédeas, ninguém poderá ignorar a vontade do povo", comemorou. Sobre o protagonismo do Exército nos acontecimentos recentes e a possibilidade de as Forças Armadas se perpetuarem novamente no poder, ele foi também categórico: "não aceitaríamos um novo regime militar nem por um único dia". 

Essa pergunta - o que se deu agora foi um golpe ou nova revolução? - não apareceu no debate sobre o Egito que aconteceu na FLIP. O filósofo Vladimir Safatle e o professor, tradutor e especialista em literatura árabe Mamede Jarouche aproveitaram experiências pessoais, escolheram outro recorte e dedicaram-se a tecer reflexões sobre a explosão popular inicial que tomou conta da Praça Tahrir, em janeiro de 2011, além de analisar os desdobramentos da revolta, um ano depois da queda de Hosni Mubarak, quando o sentimento de euforia já tinha sido substituído por nuvens de preocupações. A imagem que se usava era que a primavera fora substituída pelo outono ou até mesmo pelo inverno. Com essa opção de avaliação, e ainda que não tocassem diretamente na nova onda de protestos, os especialistas ajudaram a jogar luzes sobre o processo de convulsão social que tomou conta do Egito. 

Mamede presenciou o início da versão egípcia da Primavera Árabe. Estava na cidade do Cairo no começo de 2011, para aproveitar as férias e aprofundar pesquisas para a tradução do livro "As mil e uma noites", que estava desenvolvendo. As manifestações começaram na Tahrir um dia depois que o brasileiro desembarcou por lá. Ele confessa que foi pego de surpresa. "Estudo o mundo árabe antigo, até o século XIII, no máximo. Para mim, o século XIV já é por demais moderno. Não tinha a menor noção da ebulição vivida pelo país. Sinto-me envergonhado, mas eu era um completo alienado sobre aquele processo". 

Quando a praça foi tomada, a cidade parou. Bibliotecas e universidades fecharam as portas. Ficou perigoso transitar pelo Cairo. O hotel onde Mamede estava hospedado resolveu jogar a diária para 300 dólares, valor que ele se recusava a pagar. Depois de atravessar barricadas e tanques carregando malas, conseguiu alugar uma casa numa rua perto do Departamento de Polícia da cidade - segundo o proprietário, era o local mais seguro da capital. De sua janela, via os franco atiradores do governo postados em cima dos prédios no entorno, atirando contra os manifestantes. Define essas cenas como apavorantes. 

"Comecei a prestar atenção naquilo tudo. Notei uma insatisfação enorme no país, principalmente por conta da miséria. E, havia muitos anos, um movimento de jovens vinha se organizando nos subterrâneos, com muito cuidado, germinando. Naquele mês, ganhou as ruas". Segundo ele, a tática dos jovens era o enfrentamento direto com a polícia, atacando, emboscando e fugindo, em combates violentíssimos. "Fui espectador privilegiado de uma revolução que estava em curso", confirmou.

Um ano depois, em janeiro de 2012, Safatle viajou pela Tunísia, Egito e Palestina e entrevistou cerca de 60 pessoas, disposto a compreender as tensões, tendências e possibilidades assumidas pela Primavera. Os relatos dele foram publicados no caderno "Ilustríssima" da "Folha de São Paulo". "Fiz uma espécie de reportagem de ideias", define.

A primeira percepção que saltou aos olhos do filósofo foi a incomunicabilidade entre as sociedades ocidentais e o mundo árabe. Na imprensa daquela região, sempre que lia análises sobre os movimentos populares e seus desdobramentos, eram textos escritos por especialistas europeus (de origens diversas) ou estadunidenses. Raramente era ouvido algum pesquisador das universidades do Cairo ou de Túnis, por exemplo. "As narrativas sobre os impasses eram sempre construídas a partir de olhares de fora, deixando extravasar outros problemas e medos, que não especificamente os do mundo árabe. Dessa forma, alimentavam-se caricaturas", explicou.

O filósofo também entendeu com mais propriedade a importância das religiões para aquelas sociedades. Novamente de acordo com a visão ocidental, ali viveriam somente povos atrasados, fundamentalistas e reféns dos deuses e dos dogmas, como se a razão e a consciência iluminista terminassem exatamente no Estreito de Bósforo, que separa a Europa da Ásia, na Turquia. "A imagem que temos é que lá as religiões seriam obstáculos intransponíveis ao exercício da democracia e à presença da modernidade, o que não procede". Na verdade, em grande medida as crises instaladas naquela porção do globo têm também raízes nas relações estabelecidas com o Ocidente, nas intervenções e negociatas feitas por conta da geopolítica internacional, além das imposições da agenda neoliberal."Não há nada de irracional ou de atrasado naqueles países. Aliás, se formos entrar nessa discussão e quisermos destacar uma nação que sofre grande intervenção da religião na política, talvez devamos olhar para os Estados Unidos".

A viagem pela região permitiu ainda que Safatle tivesse mais clareza sobre a natureza política que caracteriza acontecimentos históricos com essa magnitude. "Revolução é uma trama que se dá em dois tempos, com uma abertura que dá início a uma série de efeitos, que vão ressoar durante anos", definiu. Para ele, é um erro e uma temeridade intelectual querer rotular um processo tão complexo e profundo apenas a partir de seus primeiros passos. "O que vemos hoje no Egito? Novamente a força da população, em mobilizações gigantescas de rua, que derrubam mais um governo e insistem na necessidade de levar esse processo revolucionário adiante. É o modelo revolucionário clássico. Foi assim que se desenrolou a Revolução Francesa". 



7. AS HISTÓRIAS DO GALERA

O paulista criado em Porto Alegre Daniel Galera é certamente um dos autores mais intensos e talentosos da atual Literatura brasileira, elogiado pela crítica e apreciado pelo público. "Barba ensopada de sangue", seu romance mais recente, lançado no final do ano passado, foi o protagonista da fala dele na mesa "Tragédias no microscópio", realizada na FLIP. Na obra, o personagem principal decide morar na cidade litorânea de Garopaba, em Santa Catarina, disposto a desvendar um mistério que envolve o avô dele. A partir desse universo específico, Galera faz estourar uma avalanche de dúvidas, aprendizados, angústias, amores, desejos sexuais, traições e violências, numa muito bem tramada narrativa que escancara dramas existenciais coletivos, a incomodar toda a humanidade, sem perder de vista as dimensões individuais, as pequenas histórias.

O livro não nasceu ao acaso. Desde muito jovem, morando em Garopaba, o escritor ouvia falar de pessoas que tinham virado lendas, em enredos marcados por superstições, e que vão se propagando e crescendo, até se tornarem inquestionáveis, impositivos. Para ele, nessas trajetórias, quando se faz o caminho inverso, de desconstrução, percebe-se que eram sujeitos anônimos, pessoas absolutamente normais, que não tinham a menor ideia de que poderiam alcançar essa imagem gigantesca. Foi esse roteiro que ele pretendeu levar para "Barba". Na definição do autor, o romance é um pequeno estudo sobre como um aspecto mítico pode brotar de uma história trivial. E nesse jogo narrativo, ao desejar descobrir o que aconteceu com o avô, o protagonista vai simultaneamente se reencontrando e passando sua vida a limpo. "Quis provocar no leitor a sensação de estar dentro da obra, que ele estivesse no mesmo ritmo da narrativa".

Outra característica marcante do livro é que o personagem principal não tem nome - é sempre 'ele', o 'nadador', 'o que veio de fora', o que exigiu de Galera um esforço literário extra, já que foi preciso encontrar recursos eficientes para que ninguém na obra pronunciasse o nome dele. "Não é para esconder, não sei mesmo o nome do cara, nenhum nome tinha o jeito dele. Pensei em vários, mas acabei recusando todos", explicou. Sobre o fato de a história se passar em uma cidade pequena, Galera considera que o romance funciona exatamente por isso. "Articula e identifica relações e situações que dificilmente aconteceriam numa cidade grande".

Muito leitores já perguntaram a ele se não foi deprimente escrever sobre um personagem infeliz, em permanente dúvida, que não sabe o que quer. Galera diz que entende o protagonista de forma oposta - um sujeito a viver exatamente como gostaria, a encontrar o lugar que lhe pertencia. É alguém feliz. Quem percebe essa felicidade, já no final da trama, é a ex-namorada dele, que identifica que o antigo amor está justamente escapando e deixando para trás os traumas antigos - a paixão que não deu certo, o suicídio do pai, os entreveros com o irmão. "Ela é a única que saca que ele está bem, não está sofrendo". 

Galera reconheceu que não tem pudor de se deixar influenciar por outros escritores e que também não acha ruim que os leitores detectem essas influências. "Inspiração é para ser usada". Em "Barba", ele admitiu que, para estruturar os longos trechos descritivos, bebeu na fonte do falecido romancista e contista estadunidense David Foster Wallace (1962-2008). Mas a contribuição decisiva, garante, veio de outro estadunidense - Cormac McCarthy, autor de "A Travessia", onde é possível notar a presença do misticismo. "Essa foi uma conexão literária decisiva para meu romance", reforçou.

Em determinado momento de "Barba', Jasmin, a segunda namorada em Garopaba do homem que não tem nome, decreta que 'estamos vivendo a era do tá foda". Para Galera, sempre estivemos despreparados para o sofrimento, mas o excesso de informações nos faz sofrer ainda mais. Em contrapartida, ele disse que a vida não é difícil, e que a felicidade está em saber aproveitar a beleza dos pequenos momentos e gestos. Aqui, parece existir estreita conexão entre autor e personagem. "Se há algo de heroico nele, e é uma característica com a qual concordo, é que ele é um cara desprovido de ambições, que pensa que o excesso resulta em transtornos. Talvez seja uma projeção minha. É algo que também procuro colocar em prática". 



8. ENSAIO, ESSA AGRADÁVEL BAGUNÇA LITERÁRIA

O inglês Geoff Dyer já escreveu a respeito de jazz, ioga e fotografia; John Jeremiah Sullivan, estadunidense, acaba de publicar no Brasil um livro que reúne textos sobre um festival cristão de rock, o furacão Katrina e o ídolo pop Michael Jackson. Com temas tão diversos, o que têm em comum? O fato de terem alcançado a condição de mestres na arte do ensaio, gênero tão sedutor, se considerarmos seus atrativos literários, quanto controverso, quando se pretende conceituá-lo, e que mais recentemente vem cavando espaços importantes por aqui, em revistas como a Piauí e a Serrote. Juntos na última mesa da FLIP, já em clima de final de festa, desafiando as formalidades e investindo mais num bate-papo divertido e bem humorado, os dois escritores, em discursos afinados, arriscaram algumas respostas para a dúvida principal que incomodava boa parte da plateia presente: afinal, o que é um ensaio?

De fato, a primeira definição foi sugerida pelo mediador do debate, o escritor, jornalista e editor da Serrote, Paulo Roberto Pires, para quem "ensaios são textos movidos por curiosidade sobre os mais diferentes assuntos, narrativas impecáveis, com estilo, sem preconceitos, que pensam e fazem pensar. Não pretendem concluir, mas sugerir. É um texto para alguém que deseja algo além do jornalismo e aquém do que fazem os especialistas". 

Ajudando a desenrolar o novelo conceitual, Dyer afirmou que o ensaio está presente em nossas vidas desde a educação básica, quando somos obrigados a fazer dever de casa, escrevendo redações que exigem pesquisa, registro de notas e citações. "É uma espécie de ensaio, que agora tornou-se moda. O fato é que nunca parei de fazer essa tarefa de casa", completou. Foi a estratégia que encontrou para garantir um processo contínuo de auto-educação, que escapasse das aulas à distância e das escolas formais, mas permitisse manter a disciplina para aprender sobre assuntos que lhe interessam. Para o autor inglês, a vida acadêmica tende a limitar e afunilar a trajetória intelectual - e o ensaio é a brecha para fazer exatamente o movimento contrário, de anti-especialização. "É uma miscelânea de saberes, de áreas e de temas. E só funciona por conta desse hibridismo". Trata-se, em essência, de uma jornada que nos conduz da ignorância ou da curiosidade para algum tipo de conhecimento. E, mais fascinante ainda, o leitor é também um convidado privilegiado dessa viagem, a compartilhar com o autor esse processo de descobertas. "O ensaísta é um exímio contador de histórias", cravou.

As reflexões de Sullivan também exaltaram essa mistura, que representaria justamente a principal virtude do ensaio. "É uma forma solta, informal, que funciona bem para amadores", completou. Ele não nega: é confusa mesmo, gera dúvidas e arrepios dos mais puristas e que gostam de rótulos absolutos, uma mescla anárquica de reportagem jornalística, precisão conceitual e espírito literário. "Não há separação explícita entre gêneros. É propositalmente bagunçado. O ensaio é como aquele pasto comum nas aldeias inglesas, algo natural, lugar que todos desejamos visitar e onde nos encontramos", comparou. Para ele, os assuntos devem obrigatoriamente ser diversos, múltiplos, e o bacana é poder aprender sobre o que se deseja. O escritor estadunidense disse que não briga com essas características - ao contrário, as aceita e também reconhece que são as características marcantes de um  bom ensaio. O que deseja é escrevê-los da melhor maneira possível. "Eu me sinto privilegiado por poder fazer perguntas que me encantam e seduzem o meu leitor. O ensaio é o veículo para alcançar essa empatia". Por fim, revelou que a ausência de relação de autoridade é outra qualidade que o empolga. "O que dizemos para nossos leitores é: que tal sentarmos juntos para pensar sobre esse problema?". 

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