terça-feira, 29 de julho de 2014

PROCURA-SE BAKUNIN. PAGA-SE BEM

Era difícil se movimentar na sala discreta, acanhada e inundada por parafernália de fios coloridos pendurados em todos os cantos. Fumavam freneticamente. Era automático, em sequência, nem pensavam - acendiam um novo cigarro na bituca do outro, antes de finalmente apagá-la no pires de café que fazia as vezes de cinzeiro. Os olhos lacrimejavam. Pouco se importavam. Durante o dia, tinham matado meia dúzia de barras de chocolate. As embalagens vermelhas e melecadas ainda estavam rasgadas e jogadas no chão. Agora, mandavam ver em sanduíches do McDonald's. Dois Big Macs e dois Quarteirões. Batatas fritas. P1 limpou com o dorso da mão o filete de queijo cremoso que ficou preso no bigode. Virou de uma vez só um golaço de coca-cola, copo grande. Light. Soltou um arroto, falando quase o abecedário inteiro. P2 caiu na gargalhada. Maluco, pegamos aqueles terroristas de surpresa. Que maravilha. Os elementos nem tiveram tempo de se evadir, meu chapa. QAP. Certo, copiei. QSL. Valeu. TKS. Perdão, foi esse maldito rádio. Como estava dizendo, a operação foi nota dez. Tudo na maciota. Sigilo total. E a carinha daquele babaca daquele filhinho de papai que estava com a lata de vinagre escondida na mochila? Molotov puro. A namoradinha estava limpa. Mas o Vagnão foi mais esperto, rato velho, soltou um panfleto subversivo na bolsa da malandra. Foi enquadrada junto. Cretina. E agora fica esse povinho dos direitos humanos falando em prisões ilegais, fazendo campanha sem vergonha pela libertação desses terroristas. Porra, os caras são meliantes, sujeitos de alta periculosidade, ameaçam quebrar tudo, falam em revolução, pregam contra o tal de sistema. Formam quadrilha. Planejam atentados. E querem ficar soltos? Tem de prender preventivamente mesmo. Antes que a porcaria da merda aconteça. Se ainda não fizeram, vão aprontar. Pode ter certeza, meu irmão. Às favas com os escrúpulos de consciência. Ouvi isso outro dia, do chefe. Ele contou que é da época da ditadura. Outros tempos. Hoje a coisa é bem diferente. Só estou encafifado porque ainda falta o cabeça. É, o cabeça, maluco. O chefão. O que apita. O que manda. P2 fez sinal com as mãos, agitado. Rápido, para de falar e ouve. Ouve! Estão se falando! Vai, vai, vai! Sentaram imediatamente. P1 quase se estatelou no chão. Foi salvo pela pontinha da cadeira. O ossinho da bunda doía. Fones de ouvido a postos. Garranchos começaram a aparecer nas folhas de papel estrategicamente colocadas ao lado dos aparelhos de gravação. A ligação foi rápida, pouco mais de um minuto. Olharam-se. Quase ao mesmo tempo, arrancaram os fones, atirados longe, e saíram correndo. P1 empurrava P2, que atropelava P1, que tentava ganhar a frente de P2, que quase conseguiu passar um rodo em P1. Entre ombradas e pernadas, chegaram juntos à sala do delegado. Chefe, chefe, conseguimos, não falta mais nada. Quadrilha completa. Missão cumprida. Temos o nome do chefão da quadrilha! É, a ligação estava meio ruim, uns chiados. Mas deu para ouvir os dois subversivos grampeados falando em destruir o sistema, em anarquismo coletivista, em acabar com as classes. E citaram com todas as letras o sujeito que está inspirando esses atos terroristas todos. É o manda-chuva, vai na nossa, só pode ser. Chama-se Bacurin. Não, peraí, está aqui anotado. É Bakunin! Isso, Bakunin! Tenho certeza. Anotei direitinho, não tem erro. Ba-Ku-Nin. Veja aqui. Deve ser gringo. E precisamos ser rápidos, senhor, os tontinhos estavam saindo de casa para um seminário com ele. Sim, certeza, textos xerocados e tudo. Encadernados. Material explosivo. Onde? Na universidade. Federal. Se a gente acelerar, pegamos todos juntinhos, de uma tacada só. Perfeitamente, vou pedir os mandados de prisão e preparar a equipe. Preciso dos outros dados do tal Bakunin, Procura lá nos registros, P2, RG, CPF, filiação, endereço. Rápido e rasteiro. Chegou seu dia, Bakunin. Nos aguarde! E lá se foram os dois pelos corredores da delega, punhos e dentes cerrados, sem conseguir esconder a felicidade da conquista.

domingo, 13 de julho de 2014

13 DE JULHO - CAPÍTULO FINAL. DECIME QUE SE SIENTE AHORA...

Quando o árbitro apitou o fim do jogo, Alejandro Sabella, técnico da Argentina, olhou para Joachim Löw, treinador da Alemanha, e deixou escapar um sonoro "que meleca!". Tensão para mais de cem minutos. Schürrle arranca pela esquerda. Rente à linha lateral. Deixa o marcador argentino para trás. Eu levanto da cadeira. O atacante alemão olha para o meio da área. Percebe a jogada. Cruza. Götze mata no peito estufado. A bola vai caindo mansinha. Já estou quase dentro da televisão. O camisa 19 bate com a perna esquerda esticada. Chute cruzado, colocado, maroto, canto esquerdo do goleiro. Puffff. Fim da invencibilidade do arqueiro Romero. Oito minutos do segundo tempo da prorrogação. A maioria da torcida explode no Maracanã. Angela Merkel aplaude nas tribunas do estádio. Os índios pataxós comemoram em Santa Cruz de Cabrália. Berlim e Munique pulam e começam a festa. Eu grito pela janela da casa dos meus pais. Alemanha campeã do mundo. Tetracampeã. Teve até dança indígena e pajelança no círculo central do templo do futebol mundial. Merecido. Quando a presidenta Dilma entregou a taça, vi de relance, bem rapidinho, atrás do ombro dela, o presidente do conselho dos deuses do futebol. Estava feliz. Fez sinal de positivo. Justiça divina. Desapareceu sem deixar rastros. Torci. Não escondi. Sem ódios. Sem desprezar infinitas afinidades e canções latino-americanas. Adoro e respeito profundamente a Argentina. O povo argentino. Mas, porém, contudo, entretanto, todavia, não obstante... Que me desculpem os hermanos, como já escrevi por aqui, mas torcer na final pela Alemanha era fundamental. Rivalidades futebolísticas que movem boleiros. A Argentina foi guerreira, taticamente quase perfeita. Defesa muito bem montada, fechando espaços, ocupando o meio. Viu como funciona, Felipão? Jogaram por uma bola. Um lampejo de genialidade de Messi, quem sabe. Tiveram chances. Três - com o camisa 10, com Higuaín e com Agüero. Desperdiçaram. Paciência. Venceu o melhor. Levou a taça quem esteve se preparando para essa Copa pelo menos desde 2002. Projeto de longo prazo. Oxigênio renovado de cabeças e mentalidades. Estilo de jogo. Treinamento. Pararam em duas semifinais nos últimos dois Mundiais. Beliscaram o terceiro lugar em ambos. Estava na hora. Um brinde ao futebol da Seleção da Alemanha, capaz de resgatar a arte do toque de bola para combiná-la com a eficiência de um esquema tático moderno. Os germânicos atuaram embalados pelas defesas de Neuer, o melhor goleiro do planeta bola. A versatilidade de Lahm. A exuberância técnica de Boateng - que partida fez esse príncipe negro hoje. Schweinsteiger foi boleiro incansável, presente em todos os cantos do campo. Kröos é um senhor maestro, a reger a orquestra. Na frente, Klose e Müller têm faro de gol. E Götze foi iluminado. Como é só futebol, tudo é brincadeira, tenho certeza que os argentinos, mesmo amuados, vão levar na boa. Até porque entoaram a canção nas arquibancadas de todos os estádios por onde passaram. Aprendemos. Reinventamos. Sei lá, não me sai da cabeça essa nova versão. Ando pela sala de casa a cantá-la. Argentina, me diz como se sente. Ver de longe cinco estrelas a brilhar. Te juro, ainda que os anos passem. Você nunca vai me alcançar. Cinco Copas, só eu tenho. E sem trapacear. Mi 'papá' não se dopou para jogar. Uma coisa mais te digo. Pra nunca mais esquecer. O Pelé tem mais Copas que você! Tudo na paz. Só sarro. Na boa. Lamento. Aqui, não. Mais quatro anos na fila. Pelo menos. Pai, todas as seleções sul-americanas jogaram no Maracanã. Menos o Brasil. Sábio Daniel. Pois é. Felipão insiste em ser personagem de realidade paralela. Saga trágica e cômica. A gente chora e ri. De raiva. Usa a piada para processar a dor. É deprimente ver o treinador num tal vídeo que teria sido vazado por sabe-se lá quem. As imagens mostram o técnico da Seleção mais uma vez insistindo na ladainha do fizemos nosso papel e vivemos seis minutos de pane. Armação pura. Felipão gosta bem delas. Aposta nelas. A CBF é também mestra nessas arapucas. Tudo de caso pensado. Showzinho estapafúrdio. Recusamos o papel de bobos da corte. Na coletiva de ontem, após a derrota para a Holanda, o treinador escorregou perigosamente no exercício do mau-caratismo. A empáfia e a arrogância atingiram níveis insuportáveis. Recusa-se terminantemente a assumir os erros. Hora de pedir o boné. Reconheço virtudes do Felipão. Mas parou no tempo. Só para lembrar: jabuti não sabe subir na árvore. Quando chega ao topo, é porque alguém o colocou lá. Estrutura. Tem algo maior, chamado Confederação Brasileira de Futebol, entidade autoritária e intocável. É mais do que tempo de defenestrar essa corja. Não é por seis minutos. É por dignidade. História. É preciso condenar também com veemência o que aconteceu hoje no Rio de Janeiro, fora do estádio. Não há democracia com prisões arbitrárias. Não há democracia que possa conviver com proibição de manifestações e protestos. Basta. Basta. Não tem mais relato? Acabou? Sério? Foi maravilhoso enquanto durou. Vou sentir saudade. Nasceu como quem nada queria. Prosperou, abraçado pela generosidade dos amigos leitores. A minha Copa do Mundo. Singular. Sonho de criança. Vivido intensamente, muito de perto, espaços variados. Personagens múltiplos. A nossa Copa do Mundo. Foram trinta e cinco textos. São falas de um torcedor. Nada de especialista. Nem tenho cacife para tanto. Naveguei nos mares de fortes emoções. Fotografei, com palavras, momentos inesquecíveis. Como dizia Nelson Rodrigues, sem paixão não se chupa nem um chicabon. Há erros e acertos. Para todos os lados. Contradições? Muitas. Lá e cá, aqui e acolá. Sempre. Que bom. Somos todos humanos. O mais bacana foi ter a companhia de vocês. A gente se vê na Rússia, em 2018.      

sábado, 12 de julho de 2014

12 DE JULHO - FELIPÃOZINHO VERMELHO, UM CONTO DE FADAS

Os jogadores tinham acabado de almoçar na Granja Comary. Estavam trancados em seus quartos, isolados, descansando. Extenuados. Rotina estafante. Muitos treinos. Felipão saiu da mesa no restaurante disposto a dar uma volta pela concentração. Preciso espairecer, arejar a cabeça, anunciou. Tempo nublado, frio, garoa. O técnico da Seleção se agasalhou e vestiu uma capa vermelha, com chapéu. Bem vistosa, cor viva. A marca do patrocinador estampada no peito. Vou dar um passeio no bosque. Pela estrada afora, quero ir bem sozinho. O conselheiro Parreira, fazendo as vezes de uma mãe cuidadosa, sempre a postos para ajudar, preparou imediatamente uma pequena cesta com comes e bebes. Doces, salgados e sucos. Na tampa, a marca de outro patrocinador. Leve, meu amigo. Você mal tocou na comida. Deixou o prato quase cheio. Pode ser que sinta fome no meio do caminho.Vai te fazer bem. O fiel escudeiro deixou ainda um alerta: Felipão, cuidado, prefira a trilha que fica à esquerda dos campos de treinamento. Não vá pelo caminho do rio. Passe longe dali. É perigoso. Recebi um relatório ultra secreto e muito detalhado, feito pelo Gallo e pelo Roque Junior, que revela que há muitos jornalistas que fazem perguntas indiscretas acampados ali. São abutres esperando as presas. São lobos maus em pele de carneirinho. São comunistas que comem criancinhas, mulheres grávidas batidas no liquidificador e técnicos de futebol como sobremesa. Fique bem atento, meu amigo. Se proteja. À tardinha, ao sol poente, mais leve e bem contente, esteja de volta. O gaúcho de bigode não fez questão de esconder a contrariedade. Saiu bufando, batendo os pés. Esses caras acham que não sei o que é melhor? O que é adequado? Eu decido. Vou caminhar por onde eu quiser. Quem manda aqui sou eu. Aos diabos com esses relatórios. Estou farto deles. Escolho o Bernard. A escalação é minha. A responsabilidade é minha. Foi só uma pane. Foi repetindo várias vezes as mesmas falas. Parecia tentar se convencer do que dizia. Guerra de narrativas. Puxou um pouco mais o capuz vermelho, para proteger o rosto dos pingos gelados. Não fez questão de desviar das poças. O chão de terra estava escorregadio, muitos galhos de árvore caídos. Levou sete tombos. Nada sério. Só acidentes de percurso. Apagão. Ligeiro. Equilibrou-se. O horizonte estava cinzento. Triste. Amuado. Felipão desobedeceu Parreira. Foi margeando o rio, atirando pedrinhas na água, observando os círculos que elas provocavam. Passou uma hora naquela brincadeira. Já cansado, pernas doendo, não se incomodou de sentar no barro, próximo da margem. Sentiu pontada no estômago. Fome. Mandou ver num sanduíche de queijo e presunto. Suco de acerola com abacaxi. Fez cara feia. Não tinha de laranja? Olhar parado, sem expressão, mirava o infinito. Não mexia um músculo do rosto. O silêncio foi bruscamente interrompido por burburinho que vinha do outro lado da cerca, na cabeceira do rio. Felipão, Felipão, vem cá, chega mais aqui, por favor. Eram os jornalistas. O técnico da Seleção olhou para eles. Tinham orelhas, olhos e narizes enormes. Mãos peludas. Garras. Rabos compridos. Caninos afiadíssimos. Babavam. Levou uns sete segundos pensando. Concluiu: o Parreira não manda em mim. Lá vou eu. Levantou-se e aproximou-se da cerca. Eram sete repórteres, mais precisamente. Por um instante, Felipão teve a impressão de que vestiam camisas rubro-negras. Chacoalhou a cabeça. Estava tendo alucinações. A primeira pergunta foi um direto no estômago dele. Sentiu-se engolido. Felipão, por que você escalou o Bernard? A responsabilidade é minha. Eu escalei o time. Não podia abrir antes para vocês. Felipão, vocês já conversaram sobre a derrota? Eu assumo, foi uma tragédia. Não vou esquecer. Foi um apagão. Uma pane. Nada deu certo. Foi uma pane. Acontece. A responsabilidade é minha. Felipão, a rotina de treinos foi adequada? O trabalho foi bem feito. Planejamento nota dez. Não posso achar que é o fim do mundo só por uma derrota. Foi uma pane. Acontece. Mas quatro gols em seis minutos, Felipão? Veja, nos dez primeiros minutos do segundo tempo, tivemos quatro chances. Não marcamos. Já pensaram se a gente tivesse feito os quatro? Virava outro jogo. É coisa de maluco. Nem em dez mil anos... Mas e o Bernard, Felipão? Por quê? Ele já sabia o que fazer. Tinha sido orientado. A escolha foi minha. Eu assumo a responsabilidade. Não deu certo. Só isso. Foi uma pane, um apagão. Acontece. Acontece. Felipão! Felipão! Não eram os jornalistas-lobos maus. O técnico da Seleção virou-se para o lado oposto. Lá vinha a mamãe Parreira, descendo a ladeira. Estava acompanhado pelo caçador Murtosa, que chegou mudo e saiu calado. Meu amigo, que teimosia. Eu avisei. Não deveria ter vindo aqui. Ainda bem que o Gallo e o Roque Junior me avisaram. Esses caras são insuportáveis. Estão satisfeitos? Pois vão ficar contentes em saber que tenho aqui mais um e-mail da Dona Lúcia. Acabei de receber. Ela reforça a confiança no nosso trabalho, diz que viveu alguns dos dias mais felizes da vida dela e deseja muita sorte na disputa do terceiro lugar contra a Holanda. Agradece ainda a leitura da primeira carta, na coletiva. Diz que se sentiu honrada. Lisonjeada. E vocês, abutres da imprensa, podem ficar sossegados. O trabalho para 2018 já começou. Está sendo perfeito. Nenhum deslize. Nada. Somos favoritos. Já estamos com a mão na taça. O hexa é nosso. Agora venha, meu amigo. Vamos voltar. Já está quase na hora do treino, que hoje vai ser duro, longo. Terá sete minutos. De volta à concentração, sempre protegido por Parreira, Felipão foi avaliado pela equipe médica. Sete doutores. Sentia náuseas, dor de cabeça, leve tremedeira. Recomendaram afastamento de todas as atividades. Repouso absoluto. O gaúcho de bigode está emocionalmente abalado, aparvalhado. Babeta. Não fala coisa com coisa. Construiu realidade paralela. Vive um conto de fadas. Você sabia, doutor? Foi só um apagão, só uma pane, repetia, à exaustão, olhando assustado para os médicos. Sem tirar a capa vermelha com chapéu. É sério. Ele precisa se cuidar. Descansar. Desejo pronta recuperação. Torço para que esse afastamento de qualquer trabalho relacionado à Seleção dure pelo menos mais uns doze anos. Teimoso, o gaúcho de bigode decidiu ainda comandar o time na disputa do terceiro lugar contra a Holanda. Ninguém manda em mim. Estou bem. Eu decido. Eu escalo. Cá entre nós, é certamente a partida mais sem graça da Copa. Vale nada. É como aquele relatório anual de prestação de contas da firma que você faz, com urgência, por ordem do chefe, powerpoint bonito, já sabendo que é apenas medida burocrática, só para executivo ver. O texto vai mesmo é parar no arquivo morto - ou numa lata de lixo. Em campo, a Seleção que protagonizou o maior vexame do futebol mundial nos últimos tempos contra a eterna promessa de "agora vai, chegou a nossa vez" das Copas. Em 2014, a Holanda jogou como nunca - e ficou de fora, como sempre. Impressionante. Enviei ofício consultivo aos deuses do Himalaia, para confirmar se há algum decreto ou medida provisória divina que impeça terminantemente a equipe laranja de ser campeã do mundo. Aproveitei e perguntei por que o Vasco é sempre vice. Ainda não me responderam. Estão reclusos, recolhidos. Em silêncio. Desde o e-mail que mandaram ao Felipão, depois do Minerazo, não deram mais sinal de vida. Ali, já avisavam: "beijo e não liga". Hoje, aqui em casa, nem os tradicionais rituais futebolísticos marcaram presença. Teve cerveja. Sem tensão. Luiza foi ao cinema com a amiga. Daniel mandou um 'nem estou nervoso'. Resmungou. Chorou, inconformado, logo no começo. Depois foi brincar no celular. Felipão resolveu ocupar o meio de campo. Agora, cara pálida? É o chamado 'futebol Rubinho'. Sempre atrasado. Gol da Holanda aos dois. Gol da Holanda aos dezesseis. Não são só seis minutos. O desespero continua. Pesadelo sem fim. Amontoado de jogadores aparvalhados em campo. Na beira do gramado, Felipão não perde a pose. Vamos, vamos. É só uma pane. O trabalho é bom. Não podemos esquecer que o trabalho é bom. A defesa brasileira mais vazada da história das Copas. A torcida de balada no Mané nem se importa. Está feliz. Fazem ola. Dão gritinhos. Tiram self. Com muito orgulho. Com muito amor.  Pois eu já estava comemorando a invencibilidade da zaga brasileira no segundo tempo! No finalzinho, veio o terceiro. Apagão mais demorado esse. Já comecei a ver na televisão chamadas para o retorno do Brasileirão. O Santos enfrenta o Palmeiras na próxima quinta-feira. Aranha, Victor Ferraz, David Braz, Bruno Uvini e Mena; Arouca, Souza e Lucas Lima; Geuvânio, Gabriel e Rildo. Sei não. Estou achando até bom. Opa, ideia melhor ainda: vou ler Chapeuzinho Vermelho com o Daniel. Pela estrada afora, eu vou bem sozinho. Foi só uma pane. O trabalho é bom. Somos os melhores. Já peguei o livro da menininha que vai visitar a vovozinha. O mundo dos contos de fadas é bem mais gostoso. Delicioso. Fantasias. Ilusões. Dá tudo certo no final, sempre feliz. Né não, Felipão?      


Em tempo - o texto foi postado antes da coletiva pós-quarto lugar. O conto de fadas assumiu ares de cinismo. Mau-caratismo. 

sexta-feira, 11 de julho de 2014

11 DE JULHO - MARIN, DEL NERO E CIA - PEÇAM PARA SAIR!

São Paulo, 11 de julho de 2014

À Confederação Brasileira de Futebol,
A/C Sr. José Maria Marin

Prezados,

não tenho procuração de quem quer que seja para escrever. Tampouco pretendo colocar à mesa planos infalíveis do Cebolinha, capazes de convidar o Cascão para dar nó nas orelhas do coelhinho da Mônica ou de enfrentar o pesadelo futebolístico em que vossa senhoria e sua turma nos mergulharam. Acho, no entanto, que expresso de alguma maneira os sentimentos de boa parte dos torcedores brasileiros. Mistura de perplexidade com raiva. Talvez os senhores ainda não tenham tomado pé do tamanho e da gravidade do que aconteceu no Mineirão, na tarde da última terça-feira. Até entendo. Não é para mim, não é do meu perfil (nem para a minha modesta conta bancária), não é do meu gosto, mas deve ser bacana mesmo viver em salões suntuosos, comendo e bebendo do bom e do melhor, em reuniões com executivos e patrocinadores graúdos, sobrenomes que abrem várias portas, em viagens ao exterior, andando de lá para cá em iates luxuosos, jatinhos particulares ou em helicópteros de aliados, participando de negociações que envolvem contratos polpudos. Minha modesta percepção, no entanto, sugere que esse estilo de vida e de administração deve em algum momento ter feito com que perdessem qualquer conexão com a realidade mundana, cotidiana. Fincaram raízes num mundo paralelo, onde tudo é lindo e maravilhoso, mar de bolas rosas, sem conflitos ou dificuldades. Nesse planeta virtual de vocês, o Brasil continua a ser o país do futebol, temos os melhores jogadores e técnicos do planeta, toda a preparação foi muito bem feita, obrigado, e podem todos ficar sossegados, porque já estamos com as duas mãos na taça da Copa de 2018. Somos favoritaços para trazer o próximo caneco! Preparem-se, o hexa vem aí. Já encomendaram até algumas novas versões de "mostra sua força, Brasil e amarra o amor na chuteira", para embalar a cantoria da torcida na Rússia. Sem abandonar, claro, o delicioso "com muito orgulho, com muito amor". Não esqueçam de dizer para esse pessoal já encomendar os ingressos com um tal de Raymond Whelan. Faz preço camarada, entrega em casa. Sigilo absoluto. Se apertar, ele foge. Oportunidade única. Por falar em único, talvez os deuses do futebol, com quem conversei tanto durante essa Copa no Brasil, estejam nos oferecendo a derradeira chance de mudar esse estado das coisas. Último bonde apitando na estação. Desçam imediatamente desse pedestal que os faz intocáveis, meus senhores. Está carcomido, desgastado, caindo de tão podre. Não se sustenta mais. Himalaia é só para as divindades mesmo. Engulam por gentileza essa conversinha mole do "foram só seis minutos de apagão". Não nos tratem como imbecis. A crise de energia do futebol brasileiro é antiquíssima. Não começou com o esgotamento das águas do sistema Cantareira. Não entenderam? O Geraldo pode explicar com mais detalhes. Já está no volume morto. Mas tem desconto para quem gastar menos água. Bonito. Nos gramados, essa crise tem outro nome. Chama-se futebol de improvisos. Muito prazer. Podem chamar também de Futebol Ostentação - não porque desfila dribles e golaços em campo, mas porque se preocupa muito mais com marketing e receitas publicitárias. A força da grana que ergue e destrói coisas belas. Aparências e imagens. Simulacros. Discursos vazios. Slogans e logotipos. Marcas. Como perguntar não ofende, vamos lá: quantos patrocinadores tem mesmo a CBF? Quanto arrecada por ano? Quantos são os compromissos contratuais espetaculares que precisam ser rigorosamente cumpridos? Até quando fornecedores de material esportivo vão continuar definindo nossa agenda de amistosos? Até quando emissoras televisivas vão interromper treinos para garantir mais cinco minutos de fama e holofotes para seus apresentadores paspalhos e seus caldeirões de imbecilidades? Até quando jornalistas que fazem perguntas que 'incomodam' serão tratados a pão e água? Até quando entrevistas coletivas serão espetáculos circenses? Acho que já deu para entender qual é a raiz mais profunda da encrenca. Não? Estrutura. E me desculpe, Dona Lúcia, com todo o respeito que lhe devo, sua carta foi mesmo muito elegante, mas não está tudo bem. Perder de sete da Alemanha numa semifinal de Copa do Mundo não é algo natural, normal. É inaceitável. Vocês, senhores gestores (adoro essa palavra!), estão jogando na lata do lixo a linda história do futebol brasileiro. Viramos motivo de chacotas, no mundo todo. Até o Taiti resolveu desafiar a Seleção para uma pelada. Vá lá, para quem só consegue mesmo enxergar cifrões, talvez seja difícil, bem complicado compreender a importância que a Seleção tem para o povo brasileiro (e uso essa expressão de propósito mesmo, com consciência), o papel que a canarinho cumpre como um dos elementos constituintes de nossa identidade cultural. Nunca antes na história desse país. Precisamos de uma reviravolta de métodos, revolução de mentalidades. E essas mudanças, profundas, doloridas, demoradas, difíceis, que serão marcadas por idas e vindas, não passam por vocês, burocratas da Confederação. Ao contrário - queremos que estejam bem longe. Não atrapalhem. Não temos fórmulas prontas. Mas carregamos conosco todos os sonhos do mundo. O Bom Senso Futebol Clube precisa ser ouvido. Seriamente. Que as ideias de Paulo Andre, Alex, Dida e outros boleiros sejam transformadas em iniciativas concretas. Os feitos da Alemanha devem nos servir como inspiração. Não para copiá-los, mas para traduzi-los para a nossa realidade específica. Só um detalhe, não pode passar batido: dos 23 jogadores convocados pelo técnico Joachim Löw, 16 atuam em clubes germânicos. Dos 23 convocados por Felipão, apenas quatro jogam em times brasileiros. Essa é uma das chaves para desatar o nó. Boas propostas não faltam. Precisamos de gente séria para reuni-las e implementá-las. Humildade e serenidade para reconhecer que paramos no tempo. Não são poucas as seleções que assumiram papel de protagonistas, estão na nossa frente, praticam futebol muito mais moderno. A torcida -  aquela das arquibancadas de cimento, não a de balada - vai precisar ter paciência. Apoiar. Estamos falando em algo para daqui uns dez anos. Mas é preciso dar a largada imediatamente. Por tudo isso, senhores Marin, Del Nero e demais dirigentes e membros da cúpula da CBF, nos façam uma enorme gentileza... Sem querer ofender, como diz o Daniel... Respeitosamente... Vazem! Caiam fora! Sumam! Peguem seus bonés (ou cartolas)! Peçam para sair! Levem com vocês o Felipão, o Murtosa, o Parreira, o Mano, o Tite, o Muricy, o Gallo, o Luxemburgo. Não aceitamos mais do mesmo. Vão aproveitar seus mundos nababescos de sonhos. E nos permitam, apaixonados de verdade pelo futebol, reconstruir aquilo que verdadeiramente nos pertence. Obrigado.

Em tempo - se não servir para mais nada, o texto terá ao menos me permitido desabafar. Estava precisando... 

quinta-feira, 10 de julho de 2014

10 DE JULHO - OS ARGENTINOS QUE ME DESCULPEM, MAS TORCER PELA ALEMANHA É FUNDAMENTAL

Adoro Buenos Aires, cidade aconchegante, antiga e moderna, intensa em suas belezas naturais e construções humanas, que sempre me recebeu muito bem quando estive por lá. As livrarias em cada esquina, a imensidão da Nove de Julho, o estádio de La Bombonera, os artistas na rua, o tango, o museu de Carlos Gardel, os parques de Palermo, a pulsante Praça de Maio com seus protestos, manifestações políticas e andanças das avós e mães de desaparecidos políticos, os cafés onde se pode sentar e passar a tarde inteira, apenas para ler um jornal ou um livro, sem ser incomodado. Moraria fácil na capital argentina. A literatura deles contempla esplendor único de letras e de narrativas. Ernesto Sabato, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia. Precisa dizer mais? Mercedes Sosa. Gracias a la vida. Volver a los 17. Ernesto Guevara. É admirável, exemplo a ser seguido por outras nações, o esforço da sociedade argentina em não permitir que sejam esquecidas as atrocidades cometidas pela ditadura militar que lá se instalou nos anos 1970. Arquivos foram abertos, torturadores - incluindo o ex-presidente da República Jorge Videla - foram julgados. Condenados à prisão. Sou fã confesso das iniciativas argentinas que pretendem democratizar o acesso à informação e colocar ponto final aos monopólios midiáticos. Adoro a altivez com que negociam com os abutres do mercado financeiro internacional, sem dobrar a espinha. Brasil e Argentina sofreram com a exploração colonial de Portugal e Espanha, respectivamente. São parceiros de Mercosul. Messi é gênio da bola. Foi um privilégio poder vê-lo ao vivo, no Mineirão, contra o Irã. E ser brindado com um golaço dele. Pois então. Dito tudo isso, anuncio em alto e bom som a quem possa interessar que vou torcer na final da Copa do Mundo pela... Alemanha. Sim, isso mesmo, pela Alemanha. Porque, para além de todas as teias apaixonantes que nos conectam aos hermanos (com respeito, sem tom pejorativo), existe algo específico que nos afasta de forma inexorável. Chama-se rivalidade futebolística. É sério. Muito mais forte que eu. Não há quem me convença do contrário. Não se trata de construção nossa. Os argentinos também reconhecem e fazem uso dessa rivalidade. É via de mão dupla. E antes que pedras comecem a ser atiradas, puxa, você entra nessa esparrela, mais serenidade e menos violência, falo aqui de saudável e civilizado sentimento que move adversários (não inimigos) de ludopédio que torcem e defendem cores e bandeiras diferentes. Apenas isso. Nada da cadeiradas, garrafadas, socos, tiros. Essa selvageria fica colocada em outro plano. Longe, bem longe de ufanismos nacionalistas. Não quero saber de preconceitos ou exclusões xenofóbicas. Falo de uma disputa que se resume às quatro linhas. Só. Combinado? Os argentinos ocuparam as ruas de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Porto Alegre, de Brasília... Por onde passaram, cantaram o 'Decime qué se siente. Maradona és mas grande que Pelé'. Pois quero solidariamente continuar respondendo com o 'diz aí como é que é ter somente duas Copas, uma a menos que Pelé'. Eles vão lembrar do Caniggia e do Maradona em 1990. Eu vou mostrar recortes dos jornais de 1982, quando levaram um passeio do esquadrão de Telê na Espanha. Vão responder que, naquele ano, não levantamos o caneco. Verdade. Mas temos cinco. Eles, só dois. O mesmo que o Uruguai. Unzinho mais que a França, a Espanha, a Inglaterra. Amigos, os caras estão na fila faz 21 anos - conquistaram a Copa América em 1993. De lá para cá, nenhum torneio de peso. O último Mundial deles é o de 1986. Eu era um menino, tinha 14 anos. A Argentina está vinte e oito anos na seca de Copas! E agora vou torcer para que o volume morto do Cantareira acabe com essa estiagem? Desejar que eles recebam o caneco em pleno Maracanã, templo do futebol mundial? Para ouvi-los cantando no Mario Filho que 'Maradona és mas grande que Pelé'? Sinto muito. Não contem comigo. Sou movido por forças ocultas implacáveis, que me dominaram, tomaram conta dos meus atos e pensamentos. Vesti a camisa alemã e saí por aí. Mas você vai torcer por um europeu? Como fica a solidariedade sul-americana? Sou latino de carteirinha. Sem imperialismos. Louco por ti, América. A aceitar esse argumento, no entanto, teria de concordar também com o Galvão Bueno e seus arroubos de "time tal é o Brasil na Libertadores". Sinceramente, a não ser que minha memória esteja fraquejando, não me recordo de ter encontrado nas arquibancadas do Pacaembu, na final de 2011, corinthianos, são-paulinos e palmeirenses torcendo pelo Santos, contra o Peñarol. Colorados não foram às carreatas das vitórias do Grêmio na competição continental, em 1983 e 1995. Gremistas não cantaram o hino do Inter em 2010. Corinthianos não usaram a camisa do Palmeiras, em 1999. Não vi palestrinos dizendo "fazemos parte do bando de loucos" em 2012. Santistas, torcemos todos para o São Paulo em 1992, 1993 e 2005, não é verdade? Aposto e ganho que vascaínos tiveram alterações de humor quando o Flamengo venceu a Liberta de 1981. Rabugices rubro-negras se fizeram sentir quando o clube cruz-maltino venceu o torneio, em 1998. Não me consta que atleticanos e cruzeirenses tenham festejado juntos nas ruas de Belo Horizonte as duas conquistas do Cruzeiro e o feito sul-americano mais recente do Atlético. Perguntem aos tricolores cariocas e aos botafoguenses o que acham de serem os únicos grandes a não ter estrela da Libertadores no peito. Mas não somos todos brasileiros? Por que então não torcemos para os brasileiros? Tem sigla e nome, amigos. SRMB - Saudável Rivalidade que Move os Boleiros. Volto ao início - Argentina, encantos mil. Mas futebol é outra história. Combinado? Nessa final em especial, minha torcida não se dá apenas contra os argentinos. É também a favor da Alemanha. A simpatia contagiante de Schweinsteiger e companhia me cativou. O futebol jogado pela esquadra alemã me encantou. O meio de campo germânico me arrebatou - Khedira, Schweinsteiger, Kross, Özil e Müller. De encher os olhos de qualquer ser humano que preze a arte da bola. Sem contar o Klose, que teve a hombridade de ultrapassar Ronaldo, o Oportunista, na artilharia das Copas. Na final, o 11 da Alemanha pode ampliar essa vantagem. Quem sabe o Müller chegue mais perto também. Sensacional. A dignidade alemã na vitória contra o Brasil no Mineirão me fascinou. Os alemães merecem - muito - ser premiados pelos serviços inestimáveis prestados ao futebol nos últimos quinze anos, para arredondar. O quarto título mundial serviria para coroar esse trabalho. Para resumir: depois da desclassificação na primeira fase da Eurocopa de 2000 e da derrota na final da Copa de 2002, os alemães entenderam que o futebol que estavam jogando tinha se tornado obsoleto e ultrapassado. Cortaram na carne. Julgaram e prenderam dirigentes corruptos. Criaram centros de treinamento para revelar jovens talentos. Bancaram escolinhas de futebol para crianças, espalhadas pelo país inteiro. Recusaram-se a vender seus principais clubes para magnatas russos ou árabes. Preços dos ingressos para os jogos do campeonato nacional foram mantidos em padrões razoáveis para o torcedor médio alemão, sem elitizar o esporte. A média de público da Bundesliga é a mais alta do mundo - 45 mil por partida. A Seleção é um mosaico de nacionalidades, ajudando a combater o racismo e a xenofobia que ainda contaminam setores significativos da sociedade germânica. Soco no estômago dos neonazistas. Özil é de família turca. Khedira é da Tunísia. Podolski e Klose nasceram na Polônia. A família de Boateng vive em Gana. A Alemanha, se vitoriosa no domingo, poderá cumprir um papel que não pôde infelizmente ser desempenhado pela Seleção do Telê, em 1982, porque derrotada naquela oportunidade: escancarar que o futebol bonito, bem jogado, com pinceladas de arte, pode ao mesmo tempo ser eficiente. Vencedor. Razão e sensibilidade. Dribles e treinamento. Um goleiro que é um monstro. Defesa sólida, técnica e forte. O melhor meio de campo do futebol atual. E artilheiros com fome de gols. Amigos que vão torcer pela Argentina, respeito todos vocês. Muito. Mas essa seleção da Alemanha me representa. É para ela que vou torcer na grande final. Sim, sei que essa opção pode suscitar os instintos mais primitivos de alguns. É só futebol. Certo? Abraços a todos. E bom jogo.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

9 DE JULHO - JUNTANDO OS CACOS

Quando a volta de Vocês Sabem Quem era iminente e os sinais de proximidade da batalha final se acumulavam no embalo dos 'avada kedavra', o professor Alvo Dumbledore lustrava as varinhas mágicas, preparava os feitiços e sabiamente já alertava: "Harry, serão tempos difíceis". A hecatombe vivida ontem no Mineirão mandou recado cristalino como as águas que um dia existiram no sistema Cantareira: se já não estava fácil, o futebol brasileiro vai viver tempos ainda mais difíceis. Conturbados. A ferida está purulenta. Arde. Dói. Sangra. Estamos chafurdando no volume morto. Dumbledore, no entanto, tentou antes de sua morte mostrar a Harry e seus amigos que Lord Voldemort, embora expressão máxima de um mundo triste e obscuro, não andava sozinho. Vivia acompanhado de professores das trevas, dementadores, comensais da morte, bruxos que não sabiam muito bem se estavam lá ou cá, seguidores permeados por dúvidas, agentes dissimulados. Como sou fã confesso do diretor da Escola de Magia e Feitiçaria de Hogwarts, nos acertos, desvios e contradições que ele sempre carregou, não esperem de mim porradas nos jogadores. Não vou apontar dedo para culpados. Não vou demonizá-los. Não vou queimar uma geração que, se não é espetacular, é bem boa. Se a ideia é reconstruir, refundar, resgatar o verdadeiro futebol brasileiro, e não só detonar, esse processo passa necessariamente por Thiago Silva, David Luiz, Marcelo, Luis Gustavo, Oscar, Neymar, Willian....Não vou ajudar a forjar novos Barbosas. Ainda no campo, ontem, disposto a terceirizar responsabilidades, Felipão chegou a passar a mão no celular secretíssimo. Fez menção de ligar para o presidente do conselho dos deuses do futebol. Queria espinafrar a divindade, que havia prometido proteção extra para a Seleção Brasileira na semifinal. O gaúcho de bigode recuou quando acessou, via celular, um e-mail que havia chegado do Himalaia. Urgente, cravava a mensagem. Resumidamente, tom lacônico, distante, sem a intimidade verificada em papos anteriores, dizia "nem tente nos culpar. Por sua conta e risco, você resolveu mandar a campo um time que jamais havia treinado junto. Que temeridade. Depois do segundo gol da Alemanha, crônica de uma massacre anunciado, meio de campo completamente entregue aos panzers germânicos, você sentou no banco de reservas. Imóvel. Impávido colosso. De lá só saiu quando o jogo terminou. Converse com o seu amigo Muricy. Pergunte a ele quais as lembranças que tem daquele passeio que levou do Barcelona, quando dirigia o Santos, na final do Mundial Interclubes de 2011. Será que você viu aquela decisão? Será que você acompanhou os jogos da Alemanha nos últimos quatro anos? Vá se catar. É a nossa vez de te mandar para o inferno. Há coisas na vida que são bem mundanas mesmo, resultado de escolhas feitas por seres humanos. Não há como os deuses possamos interferir. Ação e reação. Benevolentes que somos, perdoamos. Mas a bobagem não volta atrás. Só para dar retorno: concluímos a nossa investigação sobre quem daqui de cima poderia ter facilitado a contusão do Neymar. Faço mea culpa. Deuses também falham. Imaginei que pudesse ter sido algum deus milongueiro admirador do futebol argentino, apreciador de um trágico tango, a aprontar estrepolias e facilitar o caminho dos hermanos na final. Nada disso. O que aconteceu naquele final de tarde de sexta-feira foi uma raríssima tempestade de radiação solar,  fenômeno que libera cargas eletromagnéticas muito intensas. A conexão do Himalaia com o mundo profano foi interrompida por alguns breves minutos. Por mais que tentássemos, nossas mandingas não chegavam até vocês. O bloqueio foi muito forte. Foi o tempo suficiente para deixar Neymar com o corpo aberto. Paciência. A mãe natureza é soberana. Contra ela, nem os deuses podemos. Respeitamos. Obedecemos. Bom jogo para você na disputa do terceiro lugar. Abraço e não me liga". Nó na garganta. Ressaca pior que a de mistura de dez caipirinhas com uma dúzia de latinhas de cerveja. Insônia que resistia até mesmo à contagem de carneirinhos. Arrisquei então durante a longuíssima madrugada, ponteiros do relógio que se arrastavam, tentar contato com o presidente do conselho divino. Foi solícito, apesar do adiantado da hora. Deuses não dormem. Consegui entrevistá-lo. Fiquem sossegados - era ele mesmo, não um sósia. Chequei. Não aceitei só cartão de visitas. Pedi até as digitais. Exame de DNA. Pois vossa senhoria, a entidade máxima espiritual da bola, me garantiu que os deuses do ludopédio estão dispostos a generosamente nos oferecer, sem custos adicionais de qualquer espécie, um conjunto de ideias para a refundação do futebol brasileiro. Ele diz que, se os cartolas da CBF tivessem um pingo de vergonha na cara - e ele sabe que não têm -, assinariam ainda hoje contrato com o Guardiola. Renunciariam em seguida. A gente topa? Banca? Vamos encarar de frente e defenestrar a famiglia? Engolir esse orgulhinho besta e infundado, enterrar de vez a tosca aversão a técnicos estrangeiros? Vai ver a gente merece mesmo o Del Nero sucedendo o Marin. O opositor era o Andres Sanchez. Corram para as montanhas. Tite vem aí. Novo salvador da pátria. Cordeirinho. 1 x 0 é goleada. O Gallo, quem sabe. É queridinho do esquemão. O pofexô Vanderley está livre, leve e solto, sem compromissos, é sempre uma opção para comandar poxetos mirabolantes. Que tal o Muricybol? Tudo mais do mesmo. Meu interlocutor lembrou que, após a Copa, o Brasil faz amistoso no dia 5 de setembro, provavelmente contra a Colômbia, enfrentando o Equador quatro dias depois. Sabem onde? Nova Jersei, Estados Unidos. São esses os vínculos que desejam estabelecer com a torcida? Pois, sugere, que se jogue numa dessas tantas arenas que foram construídas para a Copa. Uma peleja em Manaus, outra em Curitiba. Para começar. A partir daí, uma partida por mês, viajando pelos quatro cantos desse país. Para que entre em campo não só a Seleção Brasileira. Mas a Seleção do Brasil. Ingressos a preços populares. Sem precisar pedir ajuda para os Lamines Fofanas ou Raymonds Whelans da vida. Para lotar os estádios. Voltar a ter o futebol como símbolo da nossa cultura, expressão da vontade do povo, pelo povo, para o povo. Retomarei esse assunto, nas crônicas derradeiras desta Copa. Treinamento vai ser prioridade. Não só nos jogos. Um time competente e vencedor é bem mais que um agrupamento de jogadores com boas intenções. Motivar é preciso - treinar é imprescindível. Em sua estadia no Brasil, para a disputa da Copa, a Alemanha teve só um dia de folga. Precisa desenhar? Intercâmbios. Viagens. Estudos. Táticas. Esquemas alternativos. O calendário será reformulado. Clubes com dívidas serão proibidos de participar de competições oficiais. Todos os times deverão ter sempre em campo ao menos três jogadores com entre 18 e 20 anos, formados nas categorias de base. Novos talentos. Sem apelação. Bônus e recompensas polpudas para quem revelar armadores, não só volantes. Em busca daquele clássico camisa 10 que tanto nos fez falta nesse Mundial. Uma Liga, para além dos desmandos da CBF, será responsável por organizar as competições. O vespeiro de contratos de exibição de jogos será revirado do avesso. Caixa preta. Sem monopólios. A viabilizar horários sensatos de início das partidas - e não "bem amigos da Rede Globo" só depois do final do capítulo da novela. Um jogo não pode acabar quando a torcida já não tem mais metrô ou ônibus para retornar para casa. Bom Senso Futebol Clube. Reviravolta nas estruturas e métodos. Revolução de mentalidades. Entranhas. Humildade. Gostei do que o presidente do conselho dos deuses me disse. Vamos pensar juntos? Convite feito. O futebol brasileiro - aquele que ficou perdido em algum lugar do passado - agradece. Mirem-se no exemplo daqueles boleiros de Berlim. De minha parte, vaias em alto e bom som para os que queimaram a bandeira do Brasil na Vila Madalena. Vocês são lamentáveis. Vaias ainda mais fortes para os que usam o tsunami do Mineirão para comemorar suposta vitória do país da honestidade e do trabalho sério contra o país do jeitinho, da vagabundagem e das bolsas para meliantes. Vocês são crápulas. Sanguessugas. Vaias múltiplas para os que escrevem desbragadamente nas redes sociais que o governo da Dilma é tão incompetente que gastou bilhões de dólares para ter a Copa, e a Seleção não foi nem capaz de ganhar a taça. Culpa da Dilma, óbvio. Como queriam demonstrar. Aliás, esperem aí um segundinho, deixem ver se entendi. Queriam então que o Brasil, por ser sede, comprasse mesmo a Copa? Oras, mas não eram vocês, arautos da ética, exemplos de conduta ilibada, com muito orgulho e com muito amor, que batiam no peito para condenar o torneio que já tinha sido comprado pelo Brasil? E agora vêm a público para lamentar que tudo não estivesse mesmo previamente arranjado? Compra ou não compra? Que contradição é essa? Decidam-se, por gentileza. Querem saber? Vocês são hipócritas. Heróis sem nenhum caráter. Por fim, vaias ensurdecedoras para quem comemora a derrota da Seleção, acreditando que por conta dela poderá colher dividendos eleitorais. Vocês são desprezíveis. Imagine na Olimpíada. Imagine na próxima Copa no Brasil. Ronaldo, o Oportunista, o Klose te manda 16 abraços. Quem foi o mané que disse que a Copa acabou ontem? Acabei de ver Argentina e Holanda comendo pipoca. No sábado, vou torcer para o Brasil beliscar o terceiro lugar. E no domingo tem os hermanos, que jogam a vida por uma bola de Messi, o gênio, contra o timaço da Alemanha. Imperdível.             

terça-feira, 8 de julho de 2014

8 DE JULHO - O QUE A GENTE FAZ QUANDO O SONHO DE CRIANÇA CAI POR TERRA?

Cursava aquilo que a gente chamava de oitava série, a última do ginásio. Catorze anos. A voz começava a engrossar. Primeiros fios de barba. Orgulho. Paixões adolescentes, efêmeras - aquela que um dia era, no seguinte já não era mais. Amor mesmo, de verdade, fidelidade acima de qualquer suspeita, tinha pela bola. Jogava como titular no time de salão da escola, categoria mirim. No clube também, futebol de campo, torneios internos. Sem contar as peladas e brincadeiras nos quintais dos amigos. Cada dia na casa de um. Brincávamos em praças também. Às vezes até nas ruas, quando ainda era possível. Valia qualquer metro quadrado. Se deixassem, jogava bola 24 horas por dia, sete dias por semana. No meu universo adolescente, sonhos e esperanças a granel, ainda recheado de inocências, sem a casca grossa que só a vida adulta é capaz de nos oferecer, referências e modelos ainda sendo construídos, tinha outro time da escola, moleques um ano mais velho que eu, categoria infantil, que era um verdadeiro esquadrão. Máquina de craques, um para cada posição da linha. Um baita goleiro. Exemplo a ser seguido. Para mim, imbatível. Quando eles treinavam, eu ficava sentado na arquibancada, apreciando. Comportamento de admirador mesmo. Torcedor. Aprendiz. Queria ver como eles faziam, quem sabe me apropriar, por osmose ou por repetição, das habilidades de cada um deles. Pelo menos um pouquinho. No mundo pequenino e mais próximo, sem contar o futebol profissional, que eu também acompanhava (adorava ver Zico e Careca em campo, por exemplo), mas era distante, aqueles meninos da escola eram tudo o que eu queria ser quando crescesse. Naquele ano, 1986, o time deles foi inscrito para participar do Torneio Jovem Pan de futebol de salão. Era o máximo, o sonho de todo garoto boleiro. Talvez fosse a copa mais importante da modalidade. A partida final tinha até transmissão pela televisão. Comemorei junto com eles. Estive por perto durante toda a preparação. Na minha lembrança, foram umas três semanas. Que demoraram uns três anos para passar. Até que o grande dia chegou. A estreia foi contra o Colégio São Judas, no ginásio Pelezão, no bairro da Lapa. Estava lotado. Nosso técnico tinha avisado que o time dos caras era excelente. Pedia cuidado, dedicação. Muito empenho. Eles tinham vários federados - moleques que jogavam também campeonatos organizados pela federação da modalidade. Espécie de profissionais juvenis da bola. Máxima alegria, consegui uma vaguinha na perua da escola. Fui para o jogo com eles. Estava louco para ver o duelo. No vestiário, até a entrada em quadra, tudo era animação. Empolgação. Orientações finais do treinador, reforçando o que havia sido combinado, qual seria o sistema de jogo, quais as tarefas de cada um, defesa, ataque. Sorte derradeira do destino, pude ficar no banco de reservas. Um moleque do time tinha faltado. Lá fui eu, com uniforme e tudo. Não lembro qual era o número da camisa. Mas não poderia entrar, claro, nem tinha sido inscrito. Não tinha idade. Era só figuração. Ainda assim, me senti importante. Estava ali, junto com os caras que de alguma forma eram meus ídolos. Confesso - quando o juiz apitou, achei que estivesse vendo outro esporte. Nosso time não via a cor da bola. Os caras do São Judas rodavam, giravam, trocavam de posição, toques de primeira, não está mais comigo, vai buscar lá com o outro. Carrossel. Estratégia precisa, bem definida. Treinamento. Quase perfeição. Contra, e só então fui entender, de maneira dolorida, um agrupamento de voluntários da bola. De repente, um deles aparecia sozinho na cara do nosso goleiro. Caixa. Não erravam passes. Não erravam lançamentos. Tinham repertório inesgotável de jogadas ensaiadas. Dribles. Lances de efeito. O moleque que era minha maior referência tomou um chapéu espetacular. Escorregou. Ficou estatelado em quadra. Cena de cinema. Deu dó. Sofrimento. Meus amigos pareciam baratas tontas. Corriam, conversavam, corriam, gritavam, corriam, tentavam, corriam, voltavam, corriam, suavam para acertar posicionamentos. Não viam a cor da bola. Impotência. Sempre aparecia um adversário para botar para dentro do gol e sair comemorando. Teve gol de tudo quanto foi jeito - de falta, de tabelinha, de perto, de longe, com bola e tudo. O primeiro tempo terminou sete a zero. Sem dó. Eu não acreditava. Lembro de ter olhado para o técnico, atônito, perdido, sentado calado na ponta do banco, sem saber o que fazer. Imagino que, como eu, ele só torcia para o árbitro apitar e acabar o mais rápido possível com aquele martírio. Massacre. No intervalo, no vestiário, silêncio ensurdecedor. Nem se olhavam. Tudo o que o professor conseguiu dizer foi "vamos, vamos. Dignidade. Joguem com dignidade. Façam o que for possível". No segundo tempo, o show de horrores só não foi ainda mais cruel porque o adversário tirou o pé. Administrou o resultado. Tiveram pena da gente. Entraram os reservas. Conseguimos ao menos dar dois chutes a gol, lembro direitinho. Um passou raspando a trave. O outro o goleiro defendeu, com facilidade. Foi tudo o que conseguimos fazer. Eles marcaram mais quatro. O jogo terminou onze a zero. Você não leu errado. Onze a zero. Dá para esquecer e começar de novo, fazer diferente? A volta de perua foi uma das experiências mais tenebrosas daquela minha até então curta-longa experiência futebolística. Velório. Vi alguns chorando. Ninguém falava. Até ameacei abrir a boca, sei lá, soltar um 'tudo bem, os caras eram melhores mesmo, tem mais jogo na semana que vem'. Recuei. Fica quieto, Chico. Quer apanhar? Continuamos a ouvir o ronco do motor. Só. Nos dias seguintes, via os moleques andando de cabeça baixa pela escola. Muito envergonhados. Evitavam comentar, falar sobre o jogo. A história do vexame correu os quatro cantos do colégio. Os caras se formaram, eu mudei de escola. A vida seguiu. Passou. Cicatrizes. 42 anos. Mas o trauma me marcou profundamente. Tanto é que me recordo até hoje com razoáveis detalhes daquela fatídica noite. Tudo bem. Ao menos é assim que lembro dela. Vai ver nem foi tão assim. Memórias são traiçoeiras. Devaneios.. O fato é que foi esse o tenebroso filme que passou em cores horrendamente muito nítidas na minha cabeça na tarde de hoje. Com a não pequena nem sutil diferença que, no Mineirão, jogava a Seleção Brasileira, pentacampeã do mundo. Profissionais. E era semifinal de Copa do Mundo. O hexa em disputa. Tragédia elevada à enésima potência. Vergonha. Vexame. Humilhação. Derrota acachapante. O que mais? Listem aí. Difícil mesmo foi consolar (e dava?) Luiza e Daniel, depois do terceiro gol. Choravam copiosamente. "Pai, é a primeira Copa que estou vendo de verdade. Queria tanto ver o Brasil campeão. Não acredito. O que está acontecendo? O que é isso? Você acha que ainda dá para empatar? O que o Felipão vai fazer? Quem pode entrar? E agora, pai?". Eu não tinha condições de falar. Dizer o quê? Mentir? Não. Acabou. Estava anestesiado. Pasmo. Entendi que a dor deles era infinitamente mais dolorida que a minha. Frustração de crianças. Inocências e sonhos sendo arrancados, em minutos. O mundo deles desabando. Terra arrasada. Em seis minutos. Travei minhas emoções. Botei os dois no colo. Carinhos, apertos e abraços. Depois de muito tempo, metade do segundo tempo, consegui finalmente que estivessem mais calmos. Já sem chorar. Elisa ligou, preocupada. Sim, tudo sob controle. Sei lá. Eu continuava mudo. Quando o juiz apitou o final da partida, quem desabou no choro fui eu. Não deu para segurar. Apertei os olhos. Com força. E soltei a tensão. Raiva. Os dois pequenos levantaram do sofá na hora. Passaram as mãos no meu rosto. E me abraçaram. Muito forte. Carinhosamente. Alguns minutos. Choramos juntos.

segunda-feira, 7 de julho de 2014

7 DE JULHO - FELIPÃO RECEBE UMA LIGAÇÃO

O técnico da Seleção Brasileira tinha acabado de chegar ao vestiário. Um por um, foi abraçando os jogadores, testa com testa, olho no olho, palavras de agradecimento pela entrega e dedicação durante a partida. Investiu tempo especial com Thiago Silva e David Luiz, autores dos gols. Estava eufórico com a vitória sobre a Colômbia, que garantiu a classificação para as semifinais da Copa. Mas transtornado e preocupadíssimo com a contusão de Neymar. As primeiras informações que chegavam do hospital onde exames de tomografia e de ressonância magnética tinham sido realizados eram ainda desencontradas. O cheirinho não era bom. Talvez o camisa 10 estivesse fora do Mundial. Entre cumprimentos e tapinhas nas costas, Felipão procurava os médicos. Queria notícias. Precisas. Sem especulações. Foi quando tocou o celular conhecido por poucos, pouquíssimos, quase o telefone vermelho do Batman, usado apenas em situações especialíssimas. Tirou o aparelho do bolso esquerdo da calça do agasalho. O visor não indicava o número. Mostrava apenas 'chamada privada'. Felipão sabia bem quem era. Atendeu já empinando a carrocinha. Pés no peito. 

- Bah, mas o que foi que tu fizeste!? Que palhaçada é essa?
- Felipão...
- Deixar machucar o Neymar? 
- Felipão, é o presidente do conselho dos deuses do futebol...
- Porra, sei bem quem é, guri. E sei bem o que aconteceu hoje aqui no Castelão também. Você tinha prometido, craques de todas as seleções nas finais. Conversamos reservadamente quando estive na igreja de Nossa Senhora do Caravaggio, antes da convocação. Tu me garantiu. O que eu faço agora?
- Felipão, me deixa explicar...
- Não tem explicação. Passou do limite. Mudei, passei a ser mais educado. Mas não tem jeito, são só facadas pelas costas. Vou precisar ser de novo o velho Felipão. Você conhece bem meu estilo. Se não gostar, paciência. Azar. O Neymar, che? Não podia ser o Jô? O Fred? Eu até entenderia...
- Ei! Pode parar por aí! Agora falo eu. Quem convocou Fred e Jô foi você. Os deuses não têm nada a ver com essa família 2014 que você montou. Tínhamos inclusive divergências. Nossa lista era outra. Mas respeitamos. Nossa responsabilidade era proteger os atletas. As opções foram suas. Só suas.
- Pois é, já me arrependi. Tu nunca ficaste arrependido? Nunca erraste? Se pudesse, trocava hoje mesmo um dos que chamei.
- Quem?
- Você sabe melhor do que eu. Não me obrigue a dar nomes. Lá sou gaúcho de bigode de oferecer cabeças dos meus comandados?
- Tem gente ouvindo a conversa? Você está sozinho? Por favor, ninguém deve saber que somos confidentes. Não pode vazar. O Murtosa desconfia de alguma coisa? Nem ele, Felipão. Nem ele.
- Ninguém sabe nem vai saber. Estou só, numa salinha escondida. Não enrole, guri. Tu me deve explicações. Convincentes. 
- Fomos traídos. A reunião do conselho que discutiu as quartas deliberou, por unanimidade, que os craques estariam sob proteção divina especial. Do jeitinho que acertamos. Foram explicitamente citados Messi, Robben, Schweinsteiger e Neymar. Saímos daqui com esse combinado. Alguém roeu a corda. Atuou em sentido contrário. Mobilizou energias divinas ocultas para machucar o dez brasileiro. Já determinei investigação. Punição severa. Estou desconfiado de que alguém por aqui torce com entusiasmo por uma imagem da Dilma entregando a taça para os argentinos, no Maracanã. Por razões não exatamente desportivas. 
- Porra, guri, tu fala das minhas convocações... mas que raios de comandante é você, que não consegue controlar seus subordinados? Não há hierarquia nessa família do Himalaia? 
- Talvez alguma entidade esteja com ciúmes do seu sucesso. Sabe como é, segundo título mundial. Provoca melindres mesmo. Tem gente que não lida bem com o sucesso dos outros, tem ressentimento. Pote até aqui de mágoas.
- Deuses lá têm ciúmes, raivas, invejas, ressentimentos?
- Deuses são sempre um pouco humanos. Falíveis. Pecadores. Não tem jeito.
- Ciúmes de homem? Pô, mas está errado. Muito errado. Ciúmes de mulher, vá lá, até entendo. Mas ciúmes de homem?
- Felipão, o fato é que o Neymar não vai mais poder jogar. Não adianta agora ficar divagando sobre que tipo de ciúme é aceitável ou chorando o leite derramado. 
- Ah, vá... agora conta outra. E o que você me sugere, sabichão?
- Bem, estou tentando raciocinar. Situação parecida com essa só tínhamos vivido em 1962. Só que lá foi por descuido mesmo. Não achamos que seria necessário fechar o corpo dos boleiros. Erramos. Equívoco de avaliação. Pelé se machucou. Essa é outra diferença - ninguém quebrou o Rei. Ele se contundiu sozinho. Medida de emergência, forjamos Amarildo, o Possesso.
- Tu quer me dizer que basta encontrar novo Amarildo?
- É isso.
- Guri, tu sabe bem que o responsável por aquele título foi o Garrincha, que jogou por dois. Por três. Pelo time inteiro. Fez gol, cruzou, driblou, marcou no campo de defesa. Fez chover. Não preciso de um Amarildo. Me diga, com sua sobrenatural e onipresente inteligência divina, onde raios eu acho agora outro Garrincha...
- Bernard?
- Ele tem alegria nas pernas. Mas não tem as pernas tortas. Nem é a alegria do povo. Jogou em alvinegro. Mas não era o Botafogo. Não sabe fazer fila de joões. Próximo.
- Difícil.
- Se fosse fácil, tu imagina que eu estaria nessa aflição? Acho que vou convidar uns jornalistas amigos para uma conversa. Preciso me aconselhar, ouvir outras opiniões. 
- Não recomendo. Já deu encrenca.
- Ciúmes de homem de novo? Tem jornalistas de quem gosto mais, com quem me dou melhor, ué. Qual o problema? Vou continuar falando com eles. Não gostou? Vá para o inferno.
- Felipão, tome tento. Olha o palavreado.
- Me desculpe. Estou nervoso. Você não sabe o que é comandar essa Seleção favoritaça numa Copa no Brasil. Muita, muita pressão, guri. Até ingressos os caras querem que eu arrume. Por acaso sou o Lamine Fofana? E aposto que a FIFA não quer ver o Brasil hexa. Está jogando contra.
- Entendo. Mas você também não faz a menor ideia do que seja administrar espiritualmente um torneio de futebol dessa envergadura. Exige muito. É extenuante. Estamos no limite das nossas forças divinas. As entidades todas se mostram muito cansadas. Não é simples conciliar interesses e egos. E agora, para piorar, ainda tem essa história da traição. Quer trocar de lugar comigo?
- Não, guri.
- Tudo bem. Pode ao menos emprestar por algumas horas a Regina Brandão? O pessoal aqui em cima anda meio abalado. Alguns choram muito. 
- Empresto. Mas devolve rápido. Ela já marcou um papo com o pessoal na Granja. Seja discreto. Porque essa imprensa daqui me enche o saco. Não entende que essa é a programação normal, que já estava acertado, que tem um cronograma de atividades. Vivem espalhando boatos, interpretam da maneira que bem entendem. Não tem jeito. Aí entro distribuindo bordoadas mesmo. 
- Sejamos práticos. Não temos muito tempo. Cuida do corpo. Eu me encarrego dos espíritos. 
- Na prática....
- Deixa os jogadores curtirem um pouco o luto. É fundamental. Rito de passagem. Faz o Neymar dormir essa noite na Granja. É importante. Ele precisa falar, chorar, os companheiros precisam chorar, concretizar essa perda. Desde já, levanta o moral dos caras. Motiva. Lembra que agora o Brasil é aventureiro, franco atirador. Tira o peso das costas deles. Apresenta outras situações onde o favorito perdeu. Você sabe fazer isso como poucos. Agora, treina também. Muito. Como se não houvesse amanhã. Trabalha situações diferentes. Willian, Ramires, Paulinho, Hernanes, Bernard... 4-4-2, 4-3-2-1, 4-3-3, 5-3-2. Sei lá. Despista o técnico da Alemanha. 
- Bonito, guri. Bem bacana. Mas até aqui, só eu estou trabalhando. Qual a parte que te cabe?
- Vamos redobrar os cuidados. Prometo. Dessa vez, sem deslizes. Energias positivas, bençãos e mandingas de todas as naturezas com generosidade especial para a Seleção Brasileira. É situação de exceção. Para ao menos amenizar a besteira que permitimos acontecer.  Igualar de novo a disputa. É justo. Dever ético divino. Sai o craque. Entra o Sobrenatural de Almeida.
- Bah. Vão dizer que a Copa foi comprada pelo Brasil.
- Te dei recibo?
- Não.
- E, sem querer ofender, mas tem babaca que vai dizer essa sandice de qualquer jeito, em qualquer situação. Os profetas da fracassomania ainda não se conformaram. Paciência. 
- Vou confiar. 
- Corre lá para o vestiário. Estão te procurando. E não esqueça - não conte para ninguém que conversamos. Nem para a dona Olga Scolari.
- Dona Olga nem de longe imagina que tenho livre acesso ao Himalaia.
- Até.
- Abraços.
- Felipão....
- Diga, guri. Rápido.
- EU ACREDITO!

domingo, 6 de julho de 2014

6 DE JULHO - IRA DIVINA

Deu forrobodó dos mais brabos nas alturas divinas do Himalaia. Briga feia. A ata veredito das quartas-de-final foi divulgada, tornada pública. Tive acesso ao documento. Tomo a liberdade de transcrever os trechos mais relevantes, aqueles que representam as vontades ecumênicas dos deuses do futebol. Vamos lá. "Declaro aberto o encontro. Tomem todos seus lugares, por gentileza. Sejamos breves e objetivos, sem papinhos furados. Passemos à ordem do dia. Comecemos pela partida que resgata ancestrais e explosivas rivalidades. Os meios de campo são equilibradíssimos. Os dois melhores da Copa. A Alemanha é mais encorpada, mais cascuda. Vem de um vice-campeonato e de duas eliminações seguidas em semifinais, uma delas atuando diante da própria torcida. A França é ainda jovem, caminhando começando, tem gordura para queimar. Está usando o Mundial como laboratório para a Euro de 2016, que vai sediar. O técnico francês já reconheceu que o lugar dos Bleus é entre os oito melhores. Se ele está falando... que se cumpra a vontade de Didier Deschamps. Ponto dois da pauta. O clássico sul-americano. Bem, a Colômbia já cumpriu campanha lindíssima. Histórica. Está nos anais. Anunciou para o mundo o craque James Rodríguez. Mas futebol é também história. Embora os dois times joguem de amarelo, a camisa do Brasil é mais pesada. O escrete de Felipão também flertou muito de perto com o inferno. Sobreviveu. Renasceu. Muito mais forte. David Luiz, o gigante da cabeleira dos cachos esvoaçantes, é até aqui o melhor boleiro da Copa. Registrem aí: marcará um golaço de falta. Dos mais estupendos do torneio. Por merecimento, James deixará sua marca de artilheiro. Thiago Silva dará contornos finais ao placar. Para enterrar de uma vez por todas essa tolice do desequilíbrio emocional e para confirmar que o choro é humano - e que o futebol que o capitão brasileiro joga é manjar dos deuses. Fechamos a sexta-feira, certo? Tópico terceiro. Perfeitamente. Argentina e Bélgica. Os hermanos vão atuar como vêm fazendo desde o início da Copa - de forma fria a calculista, pragmática, robótica, sem arroubos de encantamento. Estão obcecados pela ideia de ultrapassar as quartas, depois de longuíssimos e doloridos vinte e quatro anos. A pressão é enorme. Ficam satisfeitos com a contagem mínima. E não reclamem, meus nobres conselheiros - a Espanha, com a nossa proteção, foi campeã em 2010 exatamente fazendo valer esse raciocínio. Um a zero era goleada. E tome tic-taca. Dessa vez, Messi aparecerá pouco. Vai até perder gol feito, no final da peleja. Para que fique bem claro qual é o lugar que cabe a ele nesse latifúndio terreno dos gramados. É gênio. Craque. Dos gigantes da história. Mas não é deus. E como humano, erra. Já Higuaín vai desencantar. Os brasileiros ficarão felizes, achando que Fred talvez também consiga dizer a que veio na Copa. O centroavante argentino será responsável ainda por uma quase queda do técnico da seleção celeste e branca, depois de uma bola que morrerá no travessão. A Bélgica não fará por merecer. Chegou anunciada por clarins e tubas dos especialistas, confetes e serpentinas, como a zebra capaz de assustar os bichos papões. Tudo o que conseguiu fazer, no entanto, foi ficar alçando bolas na área, para grandalhões cabecearem. Muito pouco. Além do mais, sejamos sensatos, chega um momento numa Copa em que só os gigantes sobrevivem. Os pequenos, os mais fracos? Lembrem-se: a justiça futebolística é diferente de outras justiças divinas. Às vezes, os não favoritos até vencem. Mas só às vezes. Não agora. Argentina segue, um a zero. Peço só mais um instante de paciência. Estamos terminando. Notem, acho que a mesma lógica subjetiva que acabamos de estabelecer deve ser aplicada à Holanda e Costa Rica. Os laranjas estão batendo na trave faz tempo. Refugam na última pernada. Três vice-campeonatos. Derradeira chance. Sim, concordamos todos, o técnico deles é um arrogante dos infernos. Perdão pela palavra demoníaca. Só que o sujeito é mega competente, tipo assim, está muito longe de ser um looser. Onde aprendi essas palavras moderninhas? Ando navegando com mais frequência pelas redes sociais dos céus. Tudo bem, prometo controlar meu vocabulário. Formalidades da linguagem. Voltemos ao ponto principal. Foco. A Holanda vai se lançar ao ataque. Mas os empolgados e bravos Ticos da Costa Rica merecem mais que os apáticos e resignados belgas. Levarão a disputa para a decisão por pênaltis. O goleiro Keylor Navas vai ser mais uma vez a estrela da festa, defesas monumentais, que serão incluídas depois nos melhores lances da Copa. Nas penalidades, a artimanha do professor holandês dará contornos finais à disputa. Ele usará a terceira substituição para colocar em campo, aos 14 minutos do segundo tempo extra, o goleiro reserva do Carrossel. O segundo arqueiro será protagonista da festa laranja. Os costarriquenhos vão fazer festa também. Muita alegria. Serão aplaudidos pelos empolgados torcedores, com muita justiça. Voltarão para casa como heróis de uma nação que, vale lembrar, não tem exército. Não gostam de guerras. Tudo certo. Ah, sim, por favor, há uma recomendação final que preciso passar a todos. É muito importante. Nas oitavas, abençoamos as traves. Nas quartas, dedicaremos atenções especiais aos craques. Protejam os tornozelos, as canelas, os joelhos e as lombares deles. Nada de contusões. Essa Copa, tão sensacional, não merece ficar sem suas estrelas de primeira grandeza, em sua fase derradeira. Messi, Robben, Neymar e Schweinsteiger estarão em campo nas semifinais. Redobrem, tripliquem as atenções. Dediquem-se a acompanhar especialmente os quatro citados. Estamos acertados? (fez-se silêncio.  Conselheiros imóveis. O chefinho entendeu como concordância). Pois bem. Ficamos por aqui. Bom retorno para todos. E que as deliberações aqui adotadas sejam rigorosamente cumpridas. Conto com o empenho de todos". A ata foi novamente assinada por todos os presentes e devidamente registrada no cartório dos céus. Detalhe não menos relevante: as decisões foram todas tomadas por consenso. Unanimidade. No sábado, seis horas e quarenta minutos da tarde, horário de Brasília, perto dos quarenta minutos do segundo tempo de Brasil e Colômbia, ouviu-se em alguns cantos do planeta um urro gutural vindo do topo do Himalaia. Foi assustador. O presidente do conselho dos deuses do futebol, um senhorzinho barbudo atarracado, mas muito forte, misto de entidade maia com deus iorubá, alguns traços humanoides, estava parado na frente do telão, atônito. Estarrecido. Transtornado. Não tirava os olhos das imagens que repetiam à exaustão a violentíssima joelhada do lateral colombiano Zuñiga nas costas do camisa 10 brasileiro. Gritava "levanta, Neymar! Levanta, Neymar! É uma ordem. Eu te protejo". Mas sentia que forças estranhas obscuras e nefastas estavam a agir naquele momento também. Não conseguia ter controle da situação, por mais que tentasse. Quando a fratura na terceira vértebra do moleque foi confirmada, bateu com o cajado no chão, com toda a ira que conseguiu reunir. Teve um ataque histérico. Sem perder mais um minuto, classificação brasileira carimbada, começou a disparar pelas redes sociais divinas mensagens para todos os membros do conselho que tinham participado da reunião no dia anterior. O que vocês fizeram? Que sacanagem é essa? Combinamos que todos os craques estariam protegidos. Todos. E Neymar está fora da Copa. Justo ele. Estúpidos! Cretinos! Traíras! Já viram assembleia do PT sem discurso do Lula? Já viram reunião do ministério brasileiro sem bronca da Dilma? Já viram cédula eleitoral ou urna eletrônica em São Paulo sem os sobrenomes Serra ou Alckmin? Já viram fala da Marina Silva onde não apareça com destaque a expressão desenvolvimento sustentável? Já viram uma edição da revista Veja (e aqui ele fez questão de em seguida limpar a boca) sem acusações contra o movimento comunista internacional que quer tomar o poder no Brasil? Já viram novela do Manoel Carlos sem uma Helena chorona? Como é que vocês podem conceber ou querer uma Copa do Mundo no Brasil sem o Neymar? Não existe. Que tragédia. Lamentável. Quando ele estava lá caído, no gramado, tentei reverter a situação. Não consegui. Forças muito poderosas agiam em sentido contrário. Alguém queria vê-lo seriamente machucado. É grave. Temos um traidor entre nós. Já abri sindicância. Uma comissão de notáveis, todas entidades da minha mais estreita confiança, já está investigando o caso. Exijo conclusões rápidas. Rito sumário. Quero todos aqui para uma reunião extraordinária na próxima segunda-feira. Todos. O debate sobre as semifinais acontecerá somente depois que essa porcaria tiver sido esclarecida. E me liguem com o Felipão, por favor. Agora. Preciso conversar com o gaúcho de bigode. Imediatamente. Papo confidencial". O próximo conclave no Himalaia promete ser bastante tenso.      

sábado, 5 de julho de 2014

5 DE JULHO - NEYMAR JR. SELEÇÃO, JOGAI POR ELE

Neymar Jr estreou pelo profissional do Santos num sábado à noite, 7 de março de 2009, no Pacaembu, pelo Campeonato Paulista, contra o Oeste de Itápolis. Dezessete anos. Entrou no segundo tempo, jogou poucos minutos. Incendiou a partida. Meteu bola na trave. No domingo seguinte, 15 de março, no mesmo Pacaembu, entrou jogando como titular pela primeira vez. Primeiro gol. Comemorou socando o ar, como Pelé. Eu, meu irmão Eryx e o Daniel (que ainda não tinha três anos) estávamos lá. Encantados. Boquiabertos. A gente tinha acompanhado o menino, sabíamos que havia uma joia rara na base do clube, tínhamos visto atuações dele em campeonatos de juniores. Mas ali, ao vivo, disputa de gente grande, fomos privilegiados ao poder constatar que o moleque era mesmo diferenciado. Era ainda magrinho, franzino, canelas finas, quase careca. Cara de menino mesmo. Diferente. Especial, As matadas de bola, as arrancadas, os toques de efeito, as assistências, os dribles, os passes milimétricos, os mortais chutes cruzados (quase tacadas de sinuca), a capacidade de inverter a passada e a direção, em movimento - tudo era soberbo. Coisa que eu, macaco velho de estádio, nunca tinha visto. Não daquele jeito. Muitas virtudes num só cara, repertório futebolístico único, infinito. Tínhamos um craque de novo no time. Craque mesmo, não só bom jogador. De encher os olhos. Orgulho. Em quatro anos no Santos, fez de tudo. Projetou de novo o time, tão maltratado nos anos 1990, no cenário internacional. Os adversários voltaram a temer o Santos. Libertadores, Copa do Brasil, tri Paulista, Recopa. Partidas épicas, memoráveis, como aquela no Brasileirão de 2012, quando foi aplaudido no Independência pela torcida do Cruzeiro. Gols inesquecíveis - o ápice foi o anotado contra o Flamengo, na Vila, Brasileiro de 2011, que garantiu ao menino o Prêmio Puskas da FIFA de tento mais bonito do mundo no ano. Pintura. Magia. Impossível não lembrar do gol da final da Libertadores. Sou capaz de contar nos dedos de uma mão os jogos que não consegui ver com o Neymar vestindo a camisa do Santos. Não me perdoava. Um bom tanto deles vi nos estádios. Cresci ouvindo meu avô narrar as diabruras de Pelé. Vou contar aos meus netos as peripécias de Neymar. Meninos, eu vi. O moleque prodígio disputou 229 partidas pelo Santos. Marcou 138 gols. É o maior artilheiro do time depois da era Pelé, o décimo terceiro da história da nossa fantástica fábrica de gols. Arrematou prêmios atrás de prêmios - revelação, destaque, artilheiro, melhor do certame. Ganhou duas Bolas de Prata, outra de Ouro, um título de hors concours ("fora da disputa"), honraria até então exclusivamente oferecida ao Rei do Futebol, em eleições organizadas pela ESPN/Revista Placar. Acho sempre questionáveis, difíceis essas comparações entre jogadores. Servem mais para alimentar papos futebolísticos intermináveis de botequim. Mas, vamos lá, entrando na dança - Messi está um degrau acima do brasileiro. Ainda. Sinceramente, penso que não por muito tempo. Messi é mais razão, cerebral, dá impressão de carregar um computador de última geração com ele, calcula com antecedência as jogadas, avalia possibilidades do jogo. Faz as contas e combinações. E resolve. É mortal. Genial. Neymar é mais coração, alegria, criatividade, improviso. Imprevisível. Quando ninguém espera, lá vem mais um novo drible. Quem não lembra do chapéu usando a sola da chuteira, aplicado  no centroavante Nunes, do Botafogo de Ribeirão Preto, na Vila? Artista da bola. Mágico. Obviamente há no argentino marcas de Leonardo da Vinci e de Pablo Picasso, assim como há pitadas de Charles Darwin e Albert Einstein em Neymar. Falo do que mais se destaca e salta aos olhos em cada um deles. Identidades. DNAs. Messi é metodologia científica. Neymar é arte em estado puro. Na Copa, o brasileiro foi o destaque da Seleção nas três partidas da fase de grupos. Chamou a responsabilidade na estreia e foi responsável direto pela virada contra a Croácia. Dois gols. No empate sem gols com o México, foi novamente eleito o melhor em campo. Autor de uma cabeçada linda, que o ótimo goleiro Ochoa defendeu em cima da linha. Contra Camarões, fez a sua melhor partida no Mundial. Exibição de gala. O zagueiro camaronês resolveu empurrá-lo contra as placas de publicidade. Ele respondeu com dois gols. Durante curto período de tempo, foi o artilheiro do Mundial. E o que foi aquela jogada que começa na lateral do campo com um chapéu, passa por outro meio-chapéu, tabela com Oscar, passe com efeito, de costas, na área, que terminou com Hulk perdendo o gol? Se o tento tivesse saído, seria antológico. Contra o Chile, nas oitavas, não foi bem. Tomou pancada duríssima na coxa logo no começo do jogo. Sumiu. Ainda assim, pediu para bater o quinto pênalti. Amigos, era o decisivo, aquele que acabou botando pressão no derradeiro cobrador chileno. Nessa hora, vários saem de fininho, assobiando, não é comigo. O moleque foi lá e fez. Não eram poucos os urubus sobrevoando sorridentemente o Mineirão, loucos para que ele desperdiçasse a cobrança. Viram só? Avisamos. Amarelão. Invenção da mídia. Cai-cai. Pois essa expressão maldita tem o dom de me tirar do sério. A vítima vira culpado. Neymar sofre com as botinadas e coices de adversários desde que se tornou um astro do futebol. Por cretinice, inveja, cotovelos ardentes ou qualquer outro motivo, a estupidez humano-futebolística conseguiu colar nele o rótulo. Sim, houve ocasiões em que ele cavou faltas. Várias. Muito mais quando começou a jogar. Nos últimos tempos, mais maduro, fazia todo o esforço do mundo para ficar em pé, mesmo quando a cacetada era violenta. Em várias ocasiões, pulou para não ser literalmente quebrado. Curioso lembrar como muitos que aplaudem as simulações e mergulhos de Robben, para ficar num só exemplo, são os mesmos que vociferam contra Neymar. O holandês é genial, sabe usar a esperteza, decidiu para a Holanda. Neymar é mau caráter, quer apitaR o jogo e quer sempre enganar o juiz. Eterna viralatice. Compreendo saudáveis rivalidades clubísticas, brincadeiras que fazem parte do futebol, sarros e piadas que dão o tempero do esporte. Não entra na minha cabeça que torcedor de quem quer que seja defenda abertamente o "entra nele e quebra, para encerrar a carreira mesmo". Quantas vezes ouvi essa bobagem. Meninos, eu ouvi. A estupidez é incomensurável. Reclamamos dia sim, outro também do baixo nível dos campeonatos nacionais, da ausência de craques. Quando um gênio da bola aparece por aqui, muitos tratam imediatamente de trucidá-lo, com requintes de crueldade, até conseguir expulsá-lo para a Espanha. Repita uma mentira cem vezes e ela se transformará em verdade. Máxima da comunicação nazista. Os imbecis faziam questão de ignorar que as chances de título do Brasil na Copa passavam necessariamente pelos pés habilidosos de Neymar. Tolos. Mas, no Barcelona, lá longe, incrível, ele passa a ser craque. Viralatice sem fim. Tom Jobim já alertava: "no Brasil, fazer sucesso é ofensa pessoal". Ontem, no jogo contra a Colômbia, Neymar não teve tempo de pular. Caiu. Desabou. Dor. A porrada veio nas costas. Sorrateira. Não esperava um movimento como aquele. Resgatemos a cena. Corram lá nos vídeos, nas imagens do google. Observem onde está a bola. Em seguida, atenção ao jogador da Colômbia. Zuñiga só está de olho em Neymar. Desde o início do lance, quando o escanteio foi cobrado. Nada de bola, bem longe dele. O joelho vai deslealmente, violentamente na lombar do craque brasileiro. Fratura da terceira vértebra. Não sou profissional, nunca fui. Mas sou peladeiro. Bato bola desde antes de nascer. Aprendi, na prática, a diferenciar uma dividida de jogo, muitas vezes até forte, de uma entrada que nada tem a ver com o jogo. Não tentem me convencer do contrário. O lateral colombiano, aliás, já tinha quase quebrado o joelho do Hulk no primeiro tempo. Ficou por isso mesmo. Não estou dizendo que Zuñiga tenha pensado racionalmente "vou tirar Neymar da Copa. É agora". Mas entrou para dar aquele recado, para machucar. Aos relativistas de plantão, sinto muito, não vou contemporizar. Não foi disputa de jogo. Aquilo pode ser vale tudo. Mas não é futebol. Reprovo com a toda a força da minha alma também as ofensas racistas dirigidas ao colombiano em seguida, nas redes sociais. Quem agiu dessa maneira é criminoso. Neymar fora da Copa. Por responsabilidade de um juiz que deixou, desde o início, o pau comer solto em campo, dos dois lados. Um banana. Palhaço. Omisso. Ruim demais. Que parece ter seguido as nefastas orientações da dona FIFA - não dar cartões, para não estragar as semifinais. Tivessem zerado os cartões antes. Manés. O que causa ainda mais indignação é que esse padrão FIFA de arbitragem privilegia cada vez mais os brucutus. Machuca os craques. Neymar foi ainda, indiretamente, vítima de um discursinho safado e mentiroso reproduzido por ressentidos nas esquinas que dizia que a "Copa está comprada para o Brasil". Os árbitros passaram a entrar em campo já dispostos a mostrar que o Mundial não, não estava comprado. Ontem, o fraquíssimo espanhol sequer parou o jogo quando Neymar foi atingido. Deu vantagem! Mandou o jogo seguir. Marcelo precisou gritar, desesperado, já entendendo que o estado do camisa 10 era grave. Zuñiga não levou amarelo. Sequer foi advertido verbalmente. Porque, afinal, o árbitro tinha de mostrar que era 'neutro'. Não escondo - Neymar exagera nas relações com patrocinadores, na exposição de vida privada, é produto da sociedade do espetáculo, recebe milhões de dólares enquanto professores recebem salários de fome, fala muita besteira, ainda não entendi as contas da transferência para o Barça. Tudo isso e mais um pouco. Problemas dele. Falo aqui de bola. E a Copa fica mais triste sem um de seus astros. Fato, o Brasil ainda pode ser campeão. Tem chances reais. Tirou toneladas das costas. Virou franco atirador. A Alemanha morre de medo da Seleção. Foge da gente, como fez em 1974. O Felipão certamente vai usar a ausência do Neymar para provocar e estimular os jogadores brasileiros. Provável que se tornem leões em campo. Uma bola cruzada na área, uma falta cobrada pelo David Luiz... (que linda, a de ontem). Vai ter pressão brasileira nos bastidores. A onda pode virar - e os juízes, quem sabe, decidam mostrar que não estão contra o Brasil. Mas o muito triste é que o Neymar não estará em campo na final, se ela vier. E isso me dói. No fundo do coração. Ontem, mesmo com a vitória, o sentimento era de luto. Baque. Fiquei derrubado mesmo. Pelas relações de afeto que tenho com o 10 da Seleção, o 11 do Santos, embora ele não me conheça. Eterna gratidão. Admiração. Mas principalmente porque essa Copa era o sonho dele. O moleque se preparou especialmente para ela. Era o Mundial do esplendor da juventude, a possibilidade de rivalizar com os gigantes do futebol, como Messi, Cristiano Ronaldo, Robben e Pirlo. Como ele vinha fazendo. Ele queria ser campeão do mundo no Brasil. Levantar a taça no templo do Maracanã. Garoto, uns onze, doze anos, quando ainda fazia estragos nas defesas adversárias no futebol de salão em Santos, ele respondia em entrevistas, largo sorriso no rosto. "Meu sonho é ser campeão do mundo no Brasil". Esse sonho foi brutalmente interrompido por uma violenta joelhada nas costas. Não me conformo. Seleção, jogai por Neymar. Que essa estupidez sirva ao menos para que se possa refletir sobre o futebol que queremos - o dos brucutus que distribuem pontapés ou o dos craques que nos alimentam com dribles e belos gols. Eu fico com a pureza e a inocência do futebol arte. Paro por aqui. Ouço a torcida na Fonte Nova cantando "olê, olê, olê, olê, Neymar, Neymar!". Os olhos estão de novo ficando cheios d'água.   

sexta-feira, 4 de julho de 2014

4 DE JULHO - FUTEBOL DE RITUAIS. NEYMAR, MOLEQUE... OBRIGADO!

Sai da cama apoiando no chão primeiro o pé direito. Abre a janela. Caminha lentamente. Abre o armário. Com a mão direita. Tira a camisa amarela da gaveta. Com muito cuidado. Reverência. É a de todos os jogos. A da sorte. Estica o manto na cama, escudo à mostra. Não pode ficar um amassadinho. Impecável. Um beijo em cada estrela. São cinco. Por enquanto. Toma café na caneca do Santos. Liga o computador. Breve passeada nas redes sociais. Senta para ler os jornais. Primeiro os cadernos de Esportes. Antes ainda a crônica do Veríssimo. Na sequência, nessa ordem, colunas do Paulo Vinicius Coelho, do Juca Kfouri, do Antero Greco. Como nos outros jogos. Liga a televisão. ESPN Brasil. Não mudem de canal. Senta na ponta esquerda do sofá. Lugar cativo. Sportscenter. Bate-Bola. Contas a pagar. Na volta do banco - foi com o uniforme reserva -, passa no mercado. Cervejas geladas. Skol. Sorte. Faz a barba. Estava sem nos outros jogos. Chuveirada. Lembra da vitória contra os Estados Unidos, na campanha de 1994, num 4 de julho. Tetra. Começa a ficar mais quieto. Passa a ouvir quase nada. Veste cuidadosamente a amarelinha que tinha sido preparada com tanto esmero. Não pode amassar. Começa a disparar mensagens via celular. Corrente positiva. Jogo da França. Da Alemanha. Pré-jogo. Batimentos cardíacos começam a acelerar. Concentra. Silêncio. Anda pela casa. Da sala para o quarto. Do quarto para a sala. Para a cozinha. Para a sala. Para o quarto. Começa tudo de novo. O mesmo percurso. Dezenas de vezes. Os meninos só observam. Quando passa pelo corredor, na ida, olha o nome de cada livro, na prateleira das biografias. Na volta, olha o nome de cada livro, na prateleira dos romances. Três coçadinhas na mini-réplica da Taça Libertadores. Segura firme a miniatura do Cavaleiro da Triste Figura. Dom Quixote. Funciona sempre. Agora está mudo. Transe. Já não ouve mais. Demora a entender o que os filhos estão dizendo. As vozes estão distantes. Emboladas. Mira fixamente a televisão. Não vê homens voando. Nem com rabos. Na escalação da Colômbia, não há Buendías. Nada de realismo fantástico. Quatro e meia. Em ponto. No relógio de pulso, que é o que vale. Mensagens para a esposa, para os irmãos, para os pais, para os amigos mais próximos. Bom jogo. Vai, Brasil! É o que escreve desde a estreia contra a Croácia. Já está gravado. Desliga o computador. Fecha a porta da sala-corredor. Abre a primeira cerveja. Fecha a porta da cozinha. Assume de novo o posto que lhe cabe na Arena da Sala dos Marconi Bicudo. Extrema esquerda. Luiza ao lado direito. Daniel no chão, apoiado na almofada. No banco de madeira, bem ao alcance da mão esquerda, coloca a latinha de Skol. O celular vai para o modo silencioso. Aparelho apoiado no braço do sofá, na diagonal. Sobe o som da TV. Times em campo. Respira fundo. De novo. Mais uma vez. Mão direita no escudo da camisa da sorte. Tem uma outra, branca, verde e amarela, que está na casa dos pais. Para marcar presença lá também. Sorte. O árbitro apita o começo do jogo. Três batidas na parte de trás do controle remoto, apertado na mão direita. Será assim durante toda a partida. Beijo na cabeça do Daniel. Bom jogo para a gente, filho. Beijo na cabeça e na mão direita da Luiza. Abraço apertado. Bom jogo para a gente, filha. Explosão de alegria no gol do Thiago Silva. Poropopó na sala. Risos. Capitão, pode chorar. Os abutres acabaram de se esconder. Aqui é Brasil. Aqui é Brasil. Abre a segunda cerveja. A latinha fica no mesmo lugar. Primeiro tempo sob controle. Bem diferente do jogo contra o Chile. Pombo sem asa do David Luiz. Quase uma folha seca. Pode pular de novo, Ospina. Não vai alcançar. Relaxou. Só um pouquinho. Nem deu tempo. Pênalti. Foi mesmo. Gol da Colômbia. Batimentos cardíacos voltam a subir. Tensão máxima. Não consegue mais ficar sentado. Virou arquibancada da Vila Belmiro. Sai, sai, sai. Tira essa bola. Opa, impedimento. É nossa. Olha a entrada criminosa no Neymar! Não deu nem amarelo. Machucou, quebrou mesmo. Juiz, você não deu nem amarelo? O que é isso? Marca, não deixa passar. Junta de novo. Olha o meio. O meio. Tem que ser nosso. Sem estourão. Vamos trocar passes. Não dá bicão! O controle remoto não sai da mão direita. Cinco minutos de acréscimo. Está quase dentro do aparelho de televisão. Acaba. Apita. Chega. Já deu. Isso, segura a bola aí, na bandeirinha de escanteio. Não sai daí. Cava a falta. Tem de acabar aí. Acabou! Acabou! Semi-final! Sai correndo. Os meninos saem correndo. O telefone começa a tocar. O celular começa a vibrar. Gritos na janela. Buzinas. Fogos. Cornetas. Abraços, muitos abraços nos filhos, que choram. Terça-feira vai ser assim. Tudo de novo. Alemanha. Futebol de rituais. Cabeça e corpo voltando ao normal. Vou lá tirar a amarelinha da sorte e descansar. Os deuses do futebol mandaram avisar que não vai ser fácil. E foi até agora? Neymar, moleque. Quando você caiu, pulei. Gritei daqui. Saquei na hora que era sério. Te conheço. Você não foge de jogo. Nunca tinha te visto chorar daquele jeito. Você é craque. Gênio. Fica bem. Se cuida. E muito, muito obrigado.      

quinta-feira, 3 de julho de 2014

3 DE JULHO - TRILHA SONORA PARA A VÉSPERA DA DECISÃO

Viver numa cidade bucólica e sossegada como São Paulo é poder acordar preguiçosamente, ritmo de férias, bem devagar, ouvindo sinfonia afinada de sabiás e o vento batendo de leve nas copas das árvores. #SQN. Sete da matina. Pulo da cama com um barulho insuportável feito por bate-estaca, ferro contra ferro, entrando pela janela do quarto. Mais um mega empreendimento imobiliário que está subindo aqui no bairro. Derrubaram cinco casas no quarteirão. Comecei então e logo cedinho a matutar o texto de hoje. O que temos para essa quinta-feira também sem bola rolando na Copa? Escrever esses relatos tem sido uma experiência danada de instigante, aprendizado contínuo. Penso num tema, não vale, não rende, troco, jogo fora, ideias vão surgindo e sumindo, brotando aos borbotões, corta, edita, anota, não esquece, pesquisa, concentra, pode ser sobre aquilo outro também. Até que finalmente bato o martelo. Invariavelmente, o que é publicado não guarda qualquer relação com o arremedo de escrita do início do processo. Nessa viagem narrativa, tempo (ou texto) final é necessariamente diferente do tempo (texto) inicial. É a Física Literária. A FLIC - Física Literária que Inspira o Chico. Interdisciplinaridade. O Ministério da Educação vai ficar feliz. Pois a inspiração de hoje veio de um post da querida Lisandra de Moura no face. Escreveu ela que "penso nesse nosso jeito de criticar tanto, tanto e mais um tanto. De querer perfeição. Porque se é frio, não tem amor à camisa e só pensa em grana. Se ganha, não vale porque não jogou bonito. Se marca muitos gols, é porque o adversário era fraco. Não vi argentino reclamando do 1 a 0 contra o Irã e estou aprendendo muito com os ticos da firma, que estão lá, sempre, com maior otimismo e sem complexo de vira lata". Querem saber? Ela está coberta de razão. Somos uns ranzinzas. Reclamões. Eu sou reclamão nato, de carteirinha e cadeira cativa. 100% corneteiro. Instigado por ela, desatei num rápido exercício de auto-crítica. Minha suspeita é que fomos acometidos por grave enfermidade. Somos filhotes e prisioneiros da Síndrome Adversativa da F(a)olha de São Paulo. Explico o diagnóstico: o jornal dos Frias, sobretudo quando trata do governo federal, tem sempre um "mas" a impor. Emprego cresce, mas... Inflação está sob controle, mas... Dilma cresce na pesquisa Datafolha, mas... Transportamos essa patologia quase crônica para a relação que estabelecemos com a Seleção Brasileira. O time de 82 era mágico, mas parou na eficiência tática da Itália. O do Parreira em 94 foi tetra, mas dependia do Bebeto e do Romário. Seleção de 2002, 100% Jardim Irene, garantiu o penta, mas foi favorecida pela arbitragem contra a Turquia e a Bélgica. Em 2006, formamos o quarteto fantástico, mas eram incorrigíveis baladeiros que não honraram a camisa. Quatro anos depois, o Dunga resgatou o orgulho de atuar com a amarelinha, mas exagerou na dose e formou quase um exército, legião romana. Essa de 2014, de novo do Felipão, tem excelentes jogadores e um craque, mas é muito jovem, não aguenta pressão. E os moleques choram! Sinceramente, já deu essa conversinha de jogadores brasileiros com problemas emocionais. Psicologês quase de botequim. Emissoras de TV e de rádio, jornais e portais só falam nisso. A questão de fato é: precisam treinar. Se tivermos saída de bola, meio de campo e troca de passes, podem chorar os 90 minutos. Não me importo. Vixi, olha eu aqui resmungando de novo. Mas, porém, contudo, entretanto, todavia, não obstante. Há sempre uma ressalva, invariavelmente depreciativa, pejorativa. Detona tudo. Entramos numas de cobrar perfeição idealizada, aquela que não existe no mundo nosso de cada dia. Nada está bom. Não fizemos por merecer. Negativismo permanente, incapaz de reconhecer também virtudes, alegrias, melhoras. Nuances. Como se essa Síndrome da Adversativa Folhesca fosse expressão máxima de consciência crítica. Apartidarismo. Não pachequismo. De rabo preso com o leitor. #SQN. O mundo complexo já não cabe mais (aliás, nunca coube) nessa caixinha do tem isso, mas aquilo... São tantos os poréns. São tantas as emoções. Entre o preto e o branco, há pelo menos cinquenta tons de cinza. A doença é grave. Mas tem cura. A primeira providência clínica, receitada por cem em cada cem médicos especialistas e pós-graduados em enfermidades da informação, é tirar a F(a)olha do pedestal da infalibilidade. Desmonta. Baliza. Desconfia. Sempre. Nos embalos futebolísticos da Lisandra, decidi fazer diferente. Experimentar outro caminho. Não vou reclamar. É véspera de decisão, de quarta-de-final de Copa do Mundo. Palavras motivacionais. Chico Bicudo Scolari, o motivador. Cumpro tal tarefa sugerindo aos boleiros da Seleção trilha sonora para essa quinta-feira tensa. Música alimenta, anima, empolga, diverte, joga para cima. Espanta males. Toca a alma. Julio César, Thiago Silva, David Luiz, Paulinho, Oscar, Neymar, Fred e demais membros da família Felipão... ouçam por favor essas canções indicadas. No saguão do hotel, no refeitório, nos quartos, no ônibus a caminho do estádio, no vestiário, até na bica do túnel para entrar em campo. Comecem com "Pais e Filhos", do Legião Urbana. Quero colo. Vou fugir de casa. Posso dormir aqui com vocês? Estou com medo, tive um pesadelo. Só vou voltar depois das três. Porque todos nós, seres humanos normais, carne e osso, temos medos e pesadelos. Precisamos de colo. Catarse. Podem continuar com a poesia de Renato Russo. "Tempo Perdido". Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo. Temos todo o tempo do mundo. O tempo da Seleção é amanhã. Noventa minutos. Sem sofrimento, por favor. Tem ainda uma canção que foi hino de uma geração e deve tocar hoje também. "Pra não dizer que não falei das flores". Geraldo Vandré. Vem vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Sonhos e utopias. Sim, nós podemos. Ousar lutar, ousar vencer. O Ivan Lins faz parte desse time. "Desesperar jamais". Afinal de contas, não tem cabimento, entregar o jogo no primeiro tempo. Nada de correr da raia. Nada de morrer na praia. Até porque nossas traves, já sabemos, estão abençoadas e protegidas pelos deuses do futebol. Sobe o tom. Sobe o som. Tira o pé do chão. Vai rolar a festa. Deixa a vida nos levar. Alegria e ousadia. Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor. Brasil, esquentai vossos pandeiros, iluminai os terreiros que nós queremos sambar. "Brasil Pandeiro". Novos Baianos. Amanhã é dia de sambar com a bola no pé. Ginga e aplicação. Roda de samba no Castelão. Ajuda aí, camarada Gonzaguinha. Puxa o coro. A gente quer valer o nosso amor. A gente quer valer nosso suor. A gente quer valer o nosso humor. A gente quer do bom e do melhor. A gente quer carinho e atenção. A gente quer calor no coração. A gente quer suar, mas de prazer. A gente quer é ter muita saúde. A gente quer viver a liberdade. A gente quer viver felicidade. "É!". Até porque não estamos com a bunda na janela para colombiano passar a mão nela, certo? Podem fechar a seleta com o mestre. Chico Buarque é obrigatório. Para Mané, para Didi, para Mané, Mané para Didi, para Mané, para Didi, para Pagão, para Pelé e Canhoteiro. "O Futebol". Com sua permissão, querido xará, hoje podemos cantar para Paulinho, para Neymar, para Paulinho, Paulinho para Neymar, para Paulinho, para Neymar, para Oscar, para Neymar e Fred. Terminou? Rodem de novo. E de novo. Mais uma vez. Sem parar. E aí, caros leitores? Alguma outra sugestão musical para compor esse set list? Do Himalaia, os deuses do futebol mandam avisar que a ata das quartas de final já foi discutida, redigida, assinada e devidamente registrada em cartório divino. O documento foi cuidadosamente guardado no fundo de um pote de barro, com areia por cima, e enterrado numa das cavernas da montanha. Só será divulgado no sábado à noite. Tentei jogar um verde, apurar. Só uma dica, pedi aos deuses. Quase implorei. Usei aquela tática que a gente utiliza com pai e mãe quando é criança, para descobrir os presentes de natal, 'só eu vou saber, não vou contar para ninguém, vai, conta...". #SQN. As entidades são honestíssimas. Oniscientes, onipresentes e onipotentes. Não deram pista alguma. Sigilo absoluto. Até para evitar jogatinas e casas de apostas. Bolões. Que nervoso. Vai, Brasil!