terça-feira, 8 de julho de 2014
8 DE JULHO - O QUE A GENTE FAZ QUANDO O SONHO DE CRIANÇA CAI POR TERRA?
Cursava aquilo que a gente chamava de oitava série, a última do ginásio. Catorze anos. A voz começava a engrossar. Primeiros fios de barba. Orgulho. Paixões adolescentes, efêmeras - aquela que um dia era, no seguinte já não era mais. Amor mesmo, de verdade, fidelidade acima de qualquer suspeita, tinha pela bola. Jogava como titular no time de salão da escola, categoria mirim. No clube também, futebol de campo, torneios internos. Sem contar as peladas e brincadeiras nos quintais dos amigos. Cada dia na casa de um. Brincávamos em praças também. Às vezes até nas ruas, quando ainda era possível. Valia qualquer metro quadrado. Se deixassem, jogava bola 24 horas por dia, sete dias por semana. No meu universo adolescente, sonhos e esperanças a granel, ainda recheado de inocências, sem a casca grossa que só a vida adulta é capaz de nos oferecer, referências e modelos ainda sendo construídos, tinha outro time da escola, moleques um ano mais velho que eu, categoria infantil, que era um verdadeiro esquadrão. Máquina de craques, um para cada posição da linha. Um baita goleiro. Exemplo a ser seguido. Para mim, imbatível. Quando eles treinavam, eu ficava sentado na arquibancada, apreciando. Comportamento de admirador mesmo. Torcedor. Aprendiz. Queria ver como eles faziam, quem sabe me apropriar, por osmose ou por repetição, das habilidades de cada um deles. Pelo menos um pouquinho. No mundo pequenino e mais próximo, sem contar o futebol profissional, que eu também acompanhava (adorava ver Zico e Careca em campo, por exemplo), mas era distante, aqueles meninos da escola eram tudo o que eu queria ser quando crescesse. Naquele ano, 1986, o time deles foi inscrito para participar do Torneio Jovem Pan de futebol de salão. Era o máximo, o sonho de todo garoto boleiro. Talvez fosse a copa mais importante da modalidade. A partida final tinha até transmissão pela televisão. Comemorei junto com eles. Estive por perto durante toda a preparação. Na minha lembrança, foram umas três semanas. Que demoraram uns três anos para passar. Até que o grande dia chegou. A estreia foi contra o Colégio São Judas, no ginásio Pelezão, no bairro da Lapa. Estava lotado. Nosso técnico tinha avisado que o time dos caras era excelente. Pedia cuidado, dedicação. Muito empenho. Eles tinham vários federados - moleques que jogavam também campeonatos organizados pela federação da modalidade. Espécie de profissionais juvenis da bola. Máxima alegria, consegui uma vaguinha na perua da escola. Fui para o jogo com eles. Estava louco para ver o duelo. No vestiário, até a entrada em quadra, tudo era animação. Empolgação. Orientações finais do treinador, reforçando o que havia sido combinado, qual seria o sistema de jogo, quais as tarefas de cada um, defesa, ataque. Sorte derradeira do destino, pude ficar no banco de reservas. Um moleque do time tinha faltado. Lá fui eu, com uniforme e tudo. Não lembro qual era o número da camisa. Mas não poderia entrar, claro, nem tinha sido inscrito. Não tinha idade. Era só figuração. Ainda assim, me senti importante. Estava ali, junto com os caras que de alguma forma eram meus ídolos. Confesso - quando o juiz apitou, achei que estivesse vendo outro esporte. Nosso time não via a cor da bola. Os caras do São Judas rodavam, giravam, trocavam de posição, toques de primeira, não está mais comigo, vai buscar lá com o outro. Carrossel. Estratégia precisa, bem definida. Treinamento. Quase perfeição. Contra, e só então fui entender, de maneira dolorida, um agrupamento de voluntários da bola. De repente, um deles aparecia sozinho na cara do nosso goleiro. Caixa. Não erravam passes. Não erravam lançamentos. Tinham repertório inesgotável de jogadas ensaiadas. Dribles. Lances de efeito. O moleque que era minha maior referência tomou um chapéu espetacular. Escorregou. Ficou estatelado em quadra. Cena de cinema. Deu dó. Sofrimento. Meus amigos pareciam baratas tontas. Corriam, conversavam, corriam, gritavam, corriam, tentavam, corriam, voltavam, corriam, suavam para acertar posicionamentos. Não viam a cor da bola. Impotência. Sempre aparecia um adversário para botar para dentro do gol e sair comemorando. Teve gol de tudo quanto foi jeito - de falta, de tabelinha, de perto, de longe, com bola e tudo. O primeiro tempo terminou sete a zero. Sem dó. Eu não acreditava. Lembro de ter olhado para o técnico, atônito, perdido, sentado calado na ponta do banco, sem saber o que fazer. Imagino que, como eu, ele só torcia para o árbitro apitar e acabar o mais rápido possível com aquele martírio. Massacre. No intervalo, no vestiário, silêncio ensurdecedor. Nem se olhavam. Tudo o que o professor conseguiu dizer foi "vamos, vamos. Dignidade. Joguem com dignidade. Façam o que for possível". No segundo tempo, o show de horrores só não foi ainda mais cruel porque o adversário tirou o pé. Administrou o resultado. Tiveram pena da gente. Entraram os reservas. Conseguimos ao menos dar dois chutes a gol, lembro direitinho. Um passou raspando a trave. O outro o goleiro defendeu, com facilidade. Foi tudo o que conseguimos fazer. Eles marcaram mais quatro. O jogo terminou onze a zero. Você não leu errado. Onze a zero. Dá para esquecer e começar de novo, fazer diferente? A volta de perua foi uma das experiências mais tenebrosas daquela minha até então curta-longa experiência futebolística. Velório. Vi alguns chorando. Ninguém falava. Até ameacei abrir a boca, sei lá, soltar um 'tudo bem, os caras eram melhores mesmo, tem mais jogo na semana que vem'. Recuei. Fica quieto, Chico. Quer apanhar? Continuamos a ouvir o ronco do motor. Só. Nos dias seguintes, via os moleques andando de cabeça baixa pela escola. Muito envergonhados. Evitavam comentar, falar sobre o jogo. A história do vexame correu os quatro cantos do colégio. Os caras se formaram, eu mudei de escola. A vida seguiu. Passou. Cicatrizes. 42 anos. Mas o trauma me marcou profundamente. Tanto é que me recordo até hoje com razoáveis detalhes daquela fatídica noite. Tudo bem. Ao menos é assim que lembro dela. Vai ver nem foi tão assim. Memórias são traiçoeiras. Devaneios.. O fato é que foi esse o tenebroso filme que passou em cores horrendamente muito nítidas na minha cabeça na tarde de hoje. Com a não pequena nem sutil diferença que, no Mineirão, jogava a Seleção Brasileira, pentacampeã do mundo. Profissionais. E era semifinal de Copa do Mundo. O hexa em disputa. Tragédia elevada à enésima potência. Vergonha. Vexame. Humilhação. Derrota acachapante. O que mais? Listem aí. Difícil mesmo foi consolar (e dava?) Luiza e Daniel, depois do terceiro gol. Choravam copiosamente. "Pai, é a primeira Copa que estou vendo de verdade. Queria tanto ver o Brasil campeão. Não acredito. O que está acontecendo? O que é isso? Você acha que ainda dá para empatar? O que o Felipão vai fazer? Quem pode entrar? E agora, pai?". Eu não tinha condições de falar. Dizer o quê? Mentir? Não. Acabou. Estava anestesiado. Pasmo. Entendi que a dor deles era infinitamente mais dolorida que a minha. Frustração de crianças. Inocências e sonhos sendo arrancados, em minutos. O mundo deles desabando. Terra arrasada. Em seis minutos. Travei minhas emoções. Botei os dois no colo. Carinhos, apertos e abraços. Depois de muito tempo, metade do segundo tempo, consegui finalmente que estivessem mais calmos. Já sem chorar. Elisa ligou, preocupada. Sim, tudo sob controle. Sei lá. Eu continuava mudo. Quando o juiz apitou o final da partida, quem desabou no choro fui eu. Não deu para segurar. Apertei os olhos. Com força. E soltei a tensão. Raiva. Os dois pequenos levantaram do sofá na hora. Passaram as mãos no meu rosto. E me abraçaram. Muito forte. Carinhosamente. Alguns minutos. Choramos juntos.
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