terça-feira, 1 de julho de 2014
1 DE JULHO - OS DEUSES DO FUTEBOL ABENÇOARAM BRASIL E ARGENTINA
Quando os confrontos das oitavas de final foram definidos, os deuses do futebol convocaram reunião secreta de emergência. Os convites foram feitos pelas redes sociais dos céus e aléns, com perfis fakes e códigos indecifráveis, conhecidos apenas pelos participantes do convescote, obviamente. O encontro deu-se no Everest, Himalaia, a quase nove mil metros de altitude. Campo neutro, já que não há mais seleções asiáticas na disputa. E deuses não sofrem com falta de ar. Para chegar até lá, percorreram rotas alternativas, para despistar. Evitaram viajar de avião. Até porque, em tempos de Copa do Mundo, os preços das passagens estão nas alturas. Proibitivos. Padrão FIFA ao quadrado. Pediram auxílio a dragões voadores. Chegaram disfarçados, discretamente. Eram entidades sagradas tupis, astecas, nagôs, iorubás, incas, além de javés, jesuses, alás, shivas, thores, apolos, afrodites, sekhmets e tantos outros. Eram muitos. Diálogo ecumênico. Em comum, a paixão pela santa bola. A primeira determinação saiu por consenso: avançarão todas as seleções que terminaram em primeiro lugar em seus grupos. Justiça divina. Não se discute. Cumpra-se. Até Joaquim Barbosa, que hoje se despediu do Supremo Tribunal Federal, disse amém. O debate que se seguiu foi acalorado. Forrobodó. Mas serão jogos fáceis ou com sofrimento? Goleadas? Discute de lá, palpita de cá, puxa o texto-base, verifica quórum, pede questão de ordem, cinco minutos de recesso, princípio de balbúrdia, conchavos, apresenta emenda aglutinativa. Até que estabeleceram o veredito. A Holanda vai suar quase sangue sob o sol de Fortaleza. Segue. No finalzinho. O careca da perna esquerda é bom jogador. Bom ator também. Aprovado. A Costa Rica merece também. Bonita campanha. Destroçou o grupo da morte. Nos pênaltis. Para mexer com os brios dos ticos. Carimbado. A Colômbia vai desfilar, exuberante. No ritmo da habilidade do camisa 10. Feito histórico. Os argelinos e nigerianos vão sufocar, pressionar, apertar, ameaçar. Os de Argel até levarão a decisão para a prorrogação. Para dar friozinho na espinha dos germânicos. Troco pela armação da Copa de 1982. França e Alemanha, no entanto, seguirão. Camisas de mais tradição e títulos mundiais. Será bom vê-las frente a frente, cem anos depois da I Guerra Mundial. Num campo de futebol, que fique bem claro. Tudo bem. A Bélgica chegou como promessa. Ainda não engrenou. Vamos dar chance derradeira. Numa prorrogação kamikaze contra o Império. Assinado. Bem, faltam Brasil e Argentina, fez lembrar um desavisado. Burburinho, disse-que-disse, cochichos. Vão sofrer muito, decretou finalmente o presidente da reunião ecumênica. Choro. Taquicardia. Prorrogações. Pênaltis para os brasileiros. Para osdois, vamos cuidar especialmente das traves. Entenderam? Estejam atentos às traves. Não percam a concentração, jamais. Olhos vivos. Bolas decisivas devem explodir no travessão, no pé da trave direita, no meio da esquerda. Estamos combinados? No final, avançam. Os dois. Brasil e Argentina. Essa Copa está lindíssima. Messi e Neymar não merecem sair da festa. Não ainda. Não tão cedo. Todos balançaram a cabeça positivamente, concordando. A ata foi escrita pelo secretário-geral e assinada por todos os deuses presentes. Despediram-se. Antes de partir (apenas alguns moram por lá), deixaram marcado: entre quarta e quinta-feira, voltaremos a nos reunir. Para debater as quartas. Aqui na terra, bem longe do Tibete, estávamos sozinhos - eu, Luiza e Daniel - na sala de cinema do Eldorado até o começo do jogo da Argentina. A arena escura era só nossa. Prometi logo que chegamos - se der Suíça, saio correndo até a tela para comemorar. A imagem é linda; o som, perfeito. O único porém: transmissão da Globo. Não dá para ser na ESPN Brasil não? Chegaram três hermanos - pai, mãe e filho, este com a camisa da Argentina. Sentaram na nossa fileira, umas dez cadeiras para a direita. Arquibancadas divididas. Meio a meio. Com dez minutos, já éramos maioria. Desembarcaram atrasados por lá mais uns seis gatos pingados, todos brasileiros fanáticos torcedores da seleção do país do chocolate, das contas secretas e da neutralidade em guerras. A partida corria em banho-maria. O conhecido ferrolho suíço na defesa. E uma Argentina inoperante, sem brilho. Provavelmente contando com mais um lance genial dele. Passei o jogo inteirinho dizendo não deixa o Messi dominar sozinho, trava a perna esquerda dele, dobra a marcação. A vantagem ali é que a gente podia gritar, comentar, soltar o tradicional "Uh!". Ninguém reclamava. Ao contrário - engrossavam o coro. Experiência insólita, divertidíssima - fazer de uma sala de cinema originalmente silenciosa uma vibrante arquibancada de estádio em Copa do Mundo. Mais uma para guardar. Quando o atacante suíço chutou sozinho para defesa do goleiro argentino, deixei escapar um "bate no canto, cara!". Alguns minutos depois, outro vermelhinho saiu sozinho, na cara do gol. Quis tocar de cavadinha. "Animal!", gritei. Luiza e Daniel caíram na gargalhada. O segundo tempo foi modorrento também. Mesmíssimo roteiro. Como determina a boa mandinga, continuei secando a canhota do Messi. Quando os hermanos em campo fizeram menção de tentar definir a parada, Cleber Machado mandou um "Argentina volta à carga". Daniel entendeu "Argentina volta a cagar". Não. Ainda não, filho. Tomara. Rimos muito, de novo. Os três. Prorrogação. Intervalo para um xixizinho, num banheiro quase padrão FIFA. O companheiro que estava na fileira abaixo da nossa alertou. "O argentino vai bater na gente. Está ficando bravo". Pois tomara que ele termine o jogo mais bravo ainda, respondi. Mais risadas. O tempo extra foi tenso. Luiza fecha os olhos nos lances perigosos contra os vermelhos. Sento na pontinha da cadeira, mãos em concha, apoiando o rosto. Não abandonei minha obsessão: marquem o Messi. Marquem o Messi. A Argentina é ele. Pois lembram-se do relato sobre os pés frios? Pois então. No finalzinho do segundo tempo da prorrogação, Cleber Machado decreta que Messi estava apagado, sem participar do jogo. Não me contenho. "Não fala, fica quieto". Suíço perde uma bola besta, na linha lateral. Contra-ataque. A pelota vai caprichosamente parar no pé esquerdo dele, do jeito que o craque gosta. Ele arranca. "Vai, marca, não deixa avançar. Marca!". Dois ficam para trás. Olhares desesperados dos defensores que restam. Toque mortal, na ponta direita, para Di María. Tapa de esquerda. Caixa. Lembrei imediatamente da jogada do Ronaldinho Gaúcho em 2002, contra a Inglaterra, no primeiro gol brasileiro, o do Rivaldo. O hermano quase derrubou o cinema. "Gole! Messi! Ole! Gole!". Calma, hermano. Não acabou ainda. Falta para a Suíça. O goleirão vai para a área e tenta de bicicleta! Cacete! Outra bola cruzada na área da Argentina. Veio do fundo das entranhas. O cinema jamais vai ouvir novamente berro como aquele. "GOL! GOL! NÃO! PUTA MERDA!". A cabeçada do suíço explodiu no pé da trave. Voltou no pé dele. E saiu pela linha de fundo. Fim de jogo. Argentina classificada. Os deuses do futebol fizeram valer suas vontades. Há quem diga que, no sábado, comecinho de noite, era possível ouvir animada roda de samba no topo do Himalaia. Hoje, o tango de Carlos Gardel deve embalar a festa. Volume baixo. Discretamente. Divinamente.
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