Em tempo - o texto foi postado antes da coletiva pós-quarto lugar. O conto de fadas assumiu ares de cinismo. Mau-caratismo.
sábado, 12 de julho de 2014
12 DE JULHO - FELIPÃOZINHO VERMELHO, UM CONTO DE FADAS
Os jogadores tinham acabado de almoçar na Granja Comary. Estavam trancados em seus quartos, isolados, descansando. Extenuados. Rotina estafante. Muitos treinos. Felipão saiu da mesa no restaurante disposto a dar uma volta pela concentração. Preciso espairecer, arejar a cabeça, anunciou. Tempo nublado, frio, garoa. O técnico da Seleção se agasalhou e vestiu uma capa vermelha, com chapéu. Bem vistosa, cor viva. A marca do patrocinador estampada no peito. Vou dar um passeio no bosque. Pela estrada afora, quero ir bem sozinho. O conselheiro Parreira, fazendo as vezes de uma mãe cuidadosa, sempre a postos para ajudar, preparou imediatamente uma pequena cesta com comes e bebes. Doces, salgados e sucos. Na tampa, a marca de outro patrocinador. Leve, meu amigo. Você mal tocou na comida. Deixou o prato quase cheio. Pode ser que sinta fome no meio do caminho.Vai te fazer bem. O fiel escudeiro deixou ainda um alerta: Felipão, cuidado, prefira a trilha que fica à esquerda dos campos de treinamento. Não vá pelo caminho do rio. Passe longe dali. É perigoso. Recebi um relatório ultra secreto e muito detalhado, feito pelo Gallo e pelo Roque Junior, que revela que há muitos jornalistas que fazem perguntas indiscretas acampados ali. São abutres esperando as presas. São lobos maus em pele de carneirinho. São comunistas que comem criancinhas, mulheres grávidas batidas no liquidificador e técnicos de futebol como sobremesa. Fique bem atento, meu amigo. Se proteja. À tardinha, ao sol poente, mais leve e bem contente, esteja de volta. O gaúcho de bigode não fez questão de esconder a contrariedade. Saiu bufando, batendo os pés. Esses caras acham que não sei o que é melhor? O que é adequado? Eu decido. Vou caminhar por onde eu quiser. Quem manda aqui sou eu. Aos diabos com esses relatórios. Estou farto deles. Escolho o Bernard. A escalação é minha. A responsabilidade é minha. Foi só uma pane. Foi repetindo várias vezes as mesmas falas. Parecia tentar se convencer do que dizia. Guerra de narrativas. Puxou um pouco mais o capuz vermelho, para proteger o rosto dos pingos gelados. Não fez questão de desviar das poças. O chão de terra estava escorregadio, muitos galhos de árvore caídos. Levou sete tombos. Nada sério. Só acidentes de percurso. Apagão. Ligeiro. Equilibrou-se. O horizonte estava cinzento. Triste. Amuado. Felipão desobedeceu Parreira. Foi margeando o rio, atirando pedrinhas na água, observando os círculos que elas provocavam. Passou uma hora naquela brincadeira. Já cansado, pernas doendo, não se incomodou de sentar no barro, próximo da margem. Sentiu pontada no estômago. Fome. Mandou ver num sanduíche de queijo e presunto. Suco de acerola com abacaxi. Fez cara feia. Não tinha de laranja? Olhar parado, sem expressão, mirava o infinito. Não mexia um músculo do rosto. O silêncio foi bruscamente interrompido por burburinho que vinha do outro lado da cerca, na cabeceira do rio. Felipão, Felipão, vem cá, chega mais aqui, por favor. Eram os jornalistas. O técnico da Seleção olhou para eles. Tinham orelhas, olhos e narizes enormes. Mãos peludas. Garras. Rabos compridos. Caninos afiadíssimos. Babavam. Levou uns sete segundos pensando. Concluiu: o Parreira não manda em mim. Lá vou eu. Levantou-se e aproximou-se da cerca. Eram sete repórteres, mais precisamente. Por um instante, Felipão teve a impressão de que vestiam camisas rubro-negras. Chacoalhou a cabeça. Estava tendo alucinações. A primeira pergunta foi um direto no estômago dele. Sentiu-se engolido. Felipão, por que você escalou o Bernard? A responsabilidade é minha. Eu escalei o time. Não podia abrir antes para vocês. Felipão, vocês já conversaram sobre a derrota? Eu assumo, foi uma tragédia. Não vou esquecer. Foi um apagão. Uma pane. Nada deu certo. Foi uma pane. Acontece. A responsabilidade é minha. Felipão, a rotina de treinos foi adequada? O trabalho foi bem feito. Planejamento nota dez. Não posso achar que é o fim do mundo só por uma derrota. Foi uma pane. Acontece. Mas quatro gols em seis minutos, Felipão? Veja, nos dez primeiros minutos do segundo tempo, tivemos quatro chances. Não marcamos. Já pensaram se a gente tivesse feito os quatro? Virava outro jogo. É coisa de maluco. Nem em dez mil anos... Mas e o Bernard, Felipão? Por quê? Ele já sabia o que fazer. Tinha sido orientado. A escolha foi minha. Eu assumo a responsabilidade. Não deu certo. Só isso. Foi uma pane, um apagão. Acontece. Acontece. Felipão! Felipão! Não eram os jornalistas-lobos maus. O técnico da Seleção virou-se para o lado oposto. Lá vinha a mamãe Parreira, descendo a ladeira. Estava acompanhado pelo caçador Murtosa, que chegou mudo e saiu calado. Meu amigo, que teimosia. Eu avisei. Não deveria ter vindo aqui. Ainda bem que o Gallo e o Roque Junior me avisaram. Esses caras são insuportáveis. Estão satisfeitos? Pois vão ficar contentes em saber que tenho aqui mais um e-mail da Dona Lúcia. Acabei de receber. Ela reforça a confiança no nosso trabalho, diz que viveu alguns dos dias mais felizes da vida dela e deseja muita sorte na disputa do terceiro lugar contra a Holanda. Agradece ainda a leitura da primeira carta, na coletiva. Diz que se sentiu honrada. Lisonjeada. E vocês, abutres da imprensa, podem ficar sossegados. O trabalho para 2018 já começou. Está sendo perfeito. Nenhum deslize. Nada. Somos favoritos. Já estamos com a mão na taça. O hexa é nosso. Agora venha, meu amigo. Vamos voltar. Já está quase na hora do treino, que hoje vai ser duro, longo. Terá sete minutos. De volta à concentração, sempre protegido por Parreira, Felipão foi avaliado pela equipe médica. Sete doutores. Sentia náuseas, dor de cabeça, leve tremedeira. Recomendaram afastamento de todas as atividades. Repouso absoluto. O gaúcho de bigode está emocionalmente abalado, aparvalhado. Babeta. Não fala coisa com coisa. Construiu realidade paralela. Vive um conto de fadas. Você sabia, doutor? Foi só um apagão, só uma pane, repetia, à exaustão, olhando assustado para os médicos. Sem tirar a capa vermelha com chapéu. É sério. Ele precisa se cuidar. Descansar. Desejo pronta recuperação. Torço para que esse afastamento de qualquer trabalho relacionado à Seleção dure pelo menos mais uns doze anos. Teimoso, o gaúcho de bigode decidiu ainda comandar o time na disputa do terceiro lugar contra a Holanda. Ninguém manda em mim. Estou bem. Eu decido. Eu escalo. Cá entre nós, é certamente a partida mais sem graça da Copa. Vale nada. É como aquele relatório anual de prestação de contas da firma que você faz, com urgência, por ordem do chefe, powerpoint bonito, já sabendo que é apenas medida burocrática, só para executivo ver. O texto vai mesmo é parar no arquivo morto - ou numa lata de lixo. Em campo, a Seleção que protagonizou o maior vexame do futebol mundial nos últimos tempos contra a eterna promessa de "agora vai, chegou a nossa vez" das Copas. Em 2014, a Holanda jogou como nunca - e ficou de fora, como sempre. Impressionante. Enviei ofício consultivo aos deuses do Himalaia, para confirmar se há algum decreto ou medida provisória divina que impeça terminantemente a equipe laranja de ser campeã do mundo. Aproveitei e perguntei por que o Vasco é sempre vice. Ainda não me responderam. Estão reclusos, recolhidos. Em silêncio. Desde o e-mail que mandaram ao Felipão, depois do Minerazo, não deram mais sinal de vida. Ali, já avisavam: "beijo e não liga". Hoje, aqui em casa, nem os tradicionais rituais futebolísticos marcaram presença. Teve cerveja. Sem tensão. Luiza foi ao cinema com a amiga. Daniel mandou um 'nem estou nervoso'. Resmungou. Chorou, inconformado, logo no começo. Depois foi brincar no celular. Felipão resolveu ocupar o meio de campo. Agora, cara pálida? É o chamado 'futebol Rubinho'. Sempre atrasado. Gol da Holanda aos dois. Gol da Holanda aos dezesseis. Não são só seis minutos. O desespero continua. Pesadelo sem fim. Amontoado de jogadores aparvalhados em campo. Na beira do gramado, Felipão não perde a pose. Vamos, vamos. É só uma pane. O trabalho é bom. Não podemos esquecer que o trabalho é bom. A defesa brasileira mais vazada da história das Copas. A torcida de balada no Mané nem se importa. Está feliz. Fazem ola. Dão gritinhos. Tiram self. Com muito orgulho. Com muito amor. Pois eu já estava comemorando a invencibilidade da zaga brasileira no segundo tempo! No finalzinho, veio o terceiro. Apagão mais demorado esse. Já comecei a ver na televisão chamadas para o retorno do Brasileirão. O Santos enfrenta o Palmeiras na próxima quinta-feira. Aranha, Victor Ferraz, David Braz, Bruno Uvini e Mena; Arouca, Souza e Lucas Lima; Geuvânio, Gabriel e Rildo. Sei não. Estou achando até bom. Opa, ideia melhor ainda: vou ler Chapeuzinho Vermelho com o Daniel. Pela estrada afora, eu vou bem sozinho. Foi só uma pane. O trabalho é bom. Somos os melhores. Já peguei o livro da menininha que vai visitar a vovozinha. O mundo dos contos de fadas é bem mais gostoso. Delicioso. Fantasias. Ilusões. Dá tudo certo no final, sempre feliz. Né não, Felipão?
Em tempo - o texto foi postado antes da coletiva pós-quarto lugar. O conto de fadas assumiu ares de cinismo. Mau-caratismo.
Em tempo - o texto foi postado antes da coletiva pós-quarto lugar. O conto de fadas assumiu ares de cinismo. Mau-caratismo.
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