domingo, 30 de janeiro de 2011

O QUE ACONTECE NO EGITO? MELHOR NÃO PERGUNTAR PARA A VEJA.


Pode ser que eu seja o problema, muito chato, crica ou exigente. Mas as revistas semanais de informação brasileiras parecem definitivamente ter perdido pé da realidade e revelam-se cada vez mais distantes e desinteressadas de acontecimentos importantíssimos e que estão ajudando a recontar a história contemporânea. Neste final de semana, quem aguardava análises e relatos de fôlego sobre Tunísia, Egito e afins deu com os burros n'água.


Enquanto as ditaduras árabes no norte da África e no Oriente Médio são tensionadas, chacoalhadas e algumas até derrubadas por gigantescas manifestações de rua e revoltas populares, sabem qual a capa da Veja que está nas bancas? Uma instigante e imperdível "matéria" sobre a "renovação do bom-mocismo", estrelando os globais Angélica e Luciano Huck (segundo a revista, formam "um casal celebridade perfeito para um mundo politicamente correto"). Durma-se com um barulho desses. 

Outras duas não ficam muito atrás. Na Época, destaque para "O guia essencial dos imóveis"... Isto É abriu espaço principal para "O novo astro da fé", contando a trajetória de um ex-lavrador que agora comanda a igreja evangélica que mais cresce no país. Apenas Carta Capital, honrando os bons critérios jornalísticos e sintonizada com o interesse público, trouxe na capa "A convulsão árabe". 

Esse descaso ajuda a explicar ao menos em parte o nosso profundo desconhecimento a respeito do que se passa em uma região estratégica e mais do que relevante do planeta. Estamos considerando não apenas sua dimensão histórica (berço das grandes civilizações antigas), mas também interesses e disputas políticas atuais (apoio dos Estados Unidos às ditaduras como forma de combater o que norte-americanos chamam de "eixo do mal", Irã e Hamas incluídos na lista, além do intuito de estabelecer um cinturão de proteção a Israel), variáveis econômicas (comércio, petróleo e área de passagem entre ocidente e oriente) e religiosas (presenças representativas das três grandes crenças monoteístas, com óbvio destaque para o islamismo). Mais recentemente, é preciso registrar ainda a cobiça pela água, bem raro e portanto valiosíssimo na região, que deve inclusive ser protagonista, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), de boa parte dos conflitos e guerras que darão o tom da segunda metade do século XXI. 

Apenas essas razões - e, reconheço, o alcance da análise é limitado - já seriam suficientes para exigir uma cobertura midiática mais próxima, atenta e periódica da região. Mas como não é assim que acontece (o espelho do próspero colonizado lança olhares respeitosíssimos e de reverência ao norte desenvolvido, mas se recusa a focar o sul pobre, não raro abandonado e ignorado), somos invariavelmente pegos de surpresa. Estamos agora nos perguntando: o que está acontecendo no Egito? 

É honesto admitir também que não sou especialista no assunto - muito longe disso, minha postura é muito mais de um curioso jornalista, professor e cidadão do mundo - e que não tenho assim a pretensão de pautar o debate ou de formular ou construir análises originais. Nada disso. O que procuro fazer neste post é muito mais sistematizar uma espécie de guia de leituras, a partir das pesquisas que fiz, trazendo à tona a contribuição  de alguns textos e autores que, estes sim, me foram muito úteis e podem oferecer respostas bem mais precisas e profundas à questão acima colocada. 


Jovens, desemprego, corrupção e liberdades
Tomo a liberdade de recomendar que esse percurso comece com a reportagem de capa de Carta Capital (versão impressa, nas bancas, não disponível na internet). O jornalista Antonio Luiz Costa desenvolve uma espécie de viagem panorâmica mais aberta sobre o tema, analisando as diferentes manifestações de inquietações sociais nos países árabes (Tunísia, Argélia, negociatas da Autoridade Palestina com o governo de Israel) até pousar a lente de análise no Egito. Escreve ele que "afirma-se que o exército egípcio é mais poderoso que o da Tunísia e está ao lado do regime, mas mais poderosos e leais eram, supostamente, os do xá do Irã e da União Soviética. Diz-se também que há menos participação da classe média nos protestos, mas se isso for verdade, pode significar apenas que a reviravolta, se vier, será mais drástica e violenta". 

Em texto publicado no blog Viomundo, Luiz Carlos Azenha ressalta que os principais agentes mobilizadores das manifestações no Egito são os jovens desempregados, que não conseguem sequer se aproximar dos padrões de consumo que lhes são apresentados diariamente, pelas emissoras de televisão a cabo e via satélite. Para ele, "democracia nos países árabes resultaria em governos menos submissos aos Estados Unidos, mais 'antenados com as ruas' e, portanto, muito mais agressivos em defesa dos direitos e dos interesses dos palestinos".

Para além do desemprego, jovens lutam também por liberdades e contra uma ditadura corrupta e sanguinária, encastelada no poder há 30 anos (Hosni Mubarak foi "eleito" presidente pela primeira vez em 1981). O jornalista britânico Robert Fisk, profundo conhecedor da realidade do mundo árabe, destaca em artigo originalmente publicado pelo The Independent e reproduzido pelo Viomundo que "a sujeira das ruas e das favelas, os esgotos a céu aberto e a corrupção de todos os funcionários do Estado, as prisões sobrecarregadas, as eleições risíveis, o vasto, esclerosado edifício do poder, tudo isso, afinal, arrastou os egípcios para as ruas das cidades". Fisk afirma que o levante no Egito ainda não representa uma revolta islâmica, embora não descarte essa possibilidade. O jornalista, aliás, manifesta preocupação justamente com o vácuo de poder que pode surgir com uma eventual queda de Mubarak, já que a oposição organizada no Egito foi destroçada. "Onde estão as vozes de liderança?", pergunta.


A hipocrisia dos EUA e o silêncio da mídia
Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), nos brinda com dois textos riquíssimos. No primeiro, mais precisamente uma entrevista publicada pelo portal Terra, o especialista lembra que por enquanto as manifestações concentram-se nas grandes cidades e que o medo de Estados Unidos e Israel é justamente que se espalhem como rastilho de pólvora por todo o país, a exemplo da Revolução  Iraniana de 1979. Para Nasser, ainda falta apoio internacional aos jovens egípcios que tomam conta das ruas. Ele critica duramente o papel hipócrita desempenhados pelos Estados Unidos, duros nas críticas dirigidas ao Irã, mas condescendentes com as violações de direitos cometidas pelo regime tirano de Mubarak. "O Egito é a grande peça do tabuleiro de xadrez do Oriente Médio, uma garantia contra os movimentos chamados radicais". 

No segundo texto, artigo publicado pela Agência Carta Maior, o professor da PUC/SP resgata indicadores demográficos e socioeconômicos do país. Atualmente, 80 milhões de pessoas vivem no Egito. Dois terços são jovens com menos de 30 anos - e 90% deles estão desempregados. 40% da população vive com menos de dois dólares por dia. E o país ocupa a trágica 101ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU. "As mobilizações populares na Tunísia, no Egito, no Iêmen e em outros lugares são um alerta para o chamado mundo desenvolvido e seria um grande avanço para a democracia se esta região que permanece imersa na violência, em fraudes eleitorais e miséria crescente da população recebesse o devido apoio internacional nesse momento", reforça. 

Diferenças importantes entre os levantes na Tunísia e no Egito são apontadas pelo articulista Gilles Lapouge, no jornal O Estado de São Paulo. Segundo ele, a primeira nação pretendia-se moderna, laica e tolerante; por lá, a educação é notável, com jovens muito cultos. "Na Tunísia, são os jovens universitários que estão na origem dos tumultos. No Egito, quase não se veem estudantes. Estão lá, mas na espera". Mesmo reconhecendo afastamentos, no entanto, Lapouge admite as semelhanças entre os dois processos históricos. "Tanto no Cairo quanto na Tunísia, as ações são conduzidas por jovens e o fundamentalismo islâmico se mantém discreto". 

O jornalista Raphael Tsavkko Garcia pondera, em texto postado no blog dele, que um governo, ainda que uma ditadura, só consegue mesmo se sustentar enquanto o povo o considera legítimo. "Somente a legitimidade popular garante a sobrevivência de um regime. Chega um momento em que a pressão da população, a desobediência civil e o descontrole causado pelo não funcionamento das estruturas mais básicas do Estado acabam por destruir as bases desse mesmo Estado". 

Com duras críticas ao silêncio da nossa mídia, que acaba por transformar o Egito quase em um ilustre desconhecido para todos nós, o também jornalista e blogueiro Eduardo Guimarães avalia, em seu Blog da Cidadania, que "os choques entre população egípcia e as forças de repressão da ditadura estão sendo de um grande didatismo para a humanidade, ao deixarem claras as hipocrisias americana e midiática, que mantêm regimes contrários aos EUA sob fogo cerrado, enquanto silenciam sobre os regimes simpáticos à potência decadente do Norte, por mais criminosos que sejam". Pelas razões acima apontadas por Nasser, a mão que bate no Irã é a mesma que acaricia o Egito...


Redes sociais
Termino o post sugerindo algumas reflexões e saudáveis provocações sobre o papel que as redes sociais estão desempenhando nas revoltas que se alastram pelo mundo árabe. Não são poucos os que afirmam que "as revoluções estão sendo tuitadas". (aliás, sobre o tema, sugiro a leitura de artigo escrito por Malcolm Gladweel e recentemente publicado pelo caderno Ilustríssima da Folha de São Paulo). 

Reconheço a enorme importância e o caráter libertário dos blogues, do twitter, do facebook e de outras tantas ferramentas e a contribuição de todas para o desenrolar dos acontecimentos. Mas penso que é preciso relativizar o protagonismo a elas atribuído. Há uma certa sensação de "salvadores da pátria" no ar, quando, penso, a rede aparece fundamentalmente em dois momentos que, sim, são cruciais e estão diretamente conectados: comunicação (saber o que está acontecendo) e mobilização (capacidade de juntar as pessoas). 

Mas, se o povo não estivesse nas ruas, o que afinal poderia ser tuitado? Será que se os manifestantes apenas permanecessem acomodados diante das telas de seus computadores e celulares, disparando fotos e mensagens, o governo da Tunísia teria de fato caído? Mubarak, todo-poderoso, estaria seriamente ameaçado? 

Revolução ainda se faz na rua. Foi assim na França de 1789, na Rússia de 1917. Está sendo assim na Tunísia e no Egito de 2011. Ditadores têm mesmo é medo do povo gritando, enfrentando os tanques e as forças de repressão e chacoalhando os portões e as grades dos palácios. Tiranos tremem quando o povo assume sua condição de protagonista da História, ocupando espaços públicos. É nesse momento - quando o "extraordinário se torna cotidiano", como bem definiu Ernesto Che Guevara - que as revoluções acontecem. E, insisto, o extraordinário se concretiza nas ruas. 

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

DEMOCRATIZAR OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO. SEM TERGIVERSAR.


Peço licença aos leitores para retornar a um tema que considero de fundamental importância para o momento histórico que estamos vivendo - a necessidade urgente de democratização dos meios de comunicação no Brasil. 

Em post aqui publicado, no dia 12 de janeiro, reconheci ter ficado entusiasmado com a nomeação de Paulo Bernardo para o Ministério das Comunicações; no mesmo texto, no entanto, também escrevi que "o sinal amarelo acendeu quando li a entrevista concedida pelo ministro à Folha de São Paulo, no dia 7 de janeiro. Exageradamente conciliador e até mesmo recuando em relação a declarações anteriores, ele sugeriu "colocar para o debate público" o projeto de regulação dos meios formatado pelo ex-ministro Franklin Martins (uma resposta genérica, evasiva, sem se comprometer com o efetivo apoio à proposta)". 

Pois é. Lamentavelmente, devo admitir que o tom de amarelo tornou-se um pouco mais acentuado nos últimos dias, em função de novas declarações do ministro publicadas pela mídia grande. Tomei um susto ontem, quinta-feira, quando peguei O Estado de São Paulo e li a manchete principal: "Governo vai propor concessão única para todas as mídias". 

Pensei com meus botões: ora, quer dizer então que abandonaremos o fundamental debate sobre a proibição da propriedade cruzada dos meios? Trata-se de medida importantíssima para combater monopólios e ajudar a evitar a imposição de verdades absolutas, desmontando o consenso e buscando pluralidade de narrativas. De forma bem simplista: não é possível aceitar que, em um determinado espaço geográfico, quem tem tem jornal possa ter também revistas, emissoras de TV e de rádio, canais a cabo... 

Um exemplo usado pelo professor Venício de Lima ajuda a detalhar o que estamos dizendo: "atuando apenas em dois mercados regionais, o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, o Grupo RBS reúne seis jornais, 24 emissoras de rádio AM e FM, 21 canais de TV, um portal de internet, uma empresa de marketing e um projeto na área rural, além de ser sócio da operadora de TV a cabo NET". O que esperar de um cenário como esse a não ser o autoritário samba de uma nota só midiático? Onde estão as alternativas de comunicação e de informação, os contrapontos, a diversidade, o oxigênio renovador e não viciado? 

Em outro artigo, o mesmo Venício mostra os recuos do governo de Barack Obama em relação à proibição de propriedade cruzada nos EUA - e os efeitos nefastos dessa leniência para a democracia. Ao comentar a fusão da Comcast - principal operadora de TV a cabo e também de internet dos EUA - com a gigante NBC, o professor reforça que "o negócio de 30 bilhões de dólares, isto é, a compra de 51% da NBCU pela Comcast, faz surgir o maior grupo de comunicação dos Estados Unidos. A Comcast passa a controlar também um enorme leque de programas de televisão e um arquivo com mais de quatro mil filmes. A nova empresa terá 16,7 milhões de assinantes de banda larga, 23 milhões de usuários de TV por assinatura, estações de transmissão e dezenas de canais que incluem a rede de televisão NBC, USA Network, Bravo e MSNBC, além da participação de 32% no serviço de vídeos online Hulu". 

Continua Venício: "o que isso representa para o mercado de comunicações nos EUA? Para Josh Silver, a fusão autorizada pela FCC possibilita à Comcast "fundir" a internet com a TV a cabo, vale dizer, desfrutar de enorme vantagem sobre competidores e liberdade plena para determinar os preços a serem cobrados por seus programas e serviços. Pior de tudo, a fusão diminui ainda mais o que sobra de vozes independentes e da diversidade na televisão americana". 


Debate superado. Será mesmo?
Como se vê, lá, como cá, os perigos são imensos. E qual a "justificativa" oferecida pelo ministro Paulo Bernardo para abandonar a tese da proibição à indesejada propriedade cruzada? O Estadão diz que "o governo está convencido de que o desenvolvimento tecnológico tornou a discussão obsoleta. O conceito de convergência das mídias, que consolidou o tráfego simultâneo de dados e noticiários em todas as plataformas - da impressa à digital -, pôs na mesa do ministro um projeto de concessão única". 

Longe de mim, ministro, negar o potencial rebelde, transformador, libertário e questionador da internet e das redes sociais. Mas a web é também universo marcado por contradições, abrindo brechas para a atuação dos conglomerados. Além disso, será que, em termos de alcance, difusão e poder, podemos colocar a rede no mesmo patamar das emissoras abertas de TV, por exemplo, que invadem diariamente 100% dos lares nacionais, ministro? Outra reflexão: quando as tradicionais famílias proprietárias dos meios no Brasil consagram seus portais (UOL, Globo.com...), não estão reforçando a concentração e ampliando as perspectivas de domínio oferecidas justamente pela possibilidade de cruzar as propriedades? 

Como analisa o professor Laurindo Leal Filho, no Blog do Miro, "os limites à propriedade cruzada, portanto, devem ter como referência o tamanho do público atingido pelas empresas de comunicações, sejam ouvintes, leitores, telespectadores e até mesmo internautas. Junto com restrições mais rigorosas à propriedade de diferentes meios nas mesmas áreas geográficas".

Pois bem, e tentando deixar de lado ingenuidades: sim, o Estadão está movendo peças no tabuleiro, montando o jogo a partir de seus interesses, jogando a isca, tentando definir a agenda e diminuir a margem de manobra e de interlocução/ação do governo. Até aí, nenhuma novidade. O que assusta e preocupa são as respostas (ou a falta delas, mais uma vez) que vêm do governo. 


Evasivas ministeriais
Ontem, no twitter, Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, perguntou ao ministro Paulo Bernardo se procediam as informações publicadas pelo Estadão. Escreveu o ministro, também no twitter: "basta ler a matéria para concluir que não decidimos nada. Quando houver decisão, enviaremos ao Congresso". 

Entendi... melhor dizendo, não entendi coisa alguma... Vamos lá: espremendo bem, qual o significado efetivo dessa resposta? O "não decidimos ainda" quer dizer "fiquem sossegados, nem estamos pensando nisso, o jornal não apurou direito, publicou uma grande bobagem, a proibição da propriedade cruzada é prioridade para o governo?". Ou, ao contrário, significa que "embora uma decisão ainda não tenha sido tomada, manter a propriedade cruzada é uma tese que está sendo mesmo considerada pelo governo?". O fato triste e a lamentar é que, se não há resposta precisa e cabal, se o que fica explicitado é a "saída estratégica pela direita" do leão da montanha, podemos elocubrar à vontade - e no limite entender que  o governo não está de fato convencido da relevância e da necessidade da proibição.

Bem lembra Eduardo Guimarães que "a simples hipótese de que o fim do projeto de proibição da propriedade cruzada esteja sendo cogitado é assustador". 

Foi então que nuvens cinzentas avançaram firmes e assustadoras sobre o sinal amarelo,  quando abri o Estadão de hoje, sexta-feira, e li que "o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, confirmou que há estudos do governo para a criação de licença única para as diversas mídias", embora tenha reforçado que "a regulamentação ainda será objeto de consulta pública e vai ser debatida em ritmo seguro". Arrepiei. 

E o que mais me chamou a atenção no texto foi a insistência de figuras importantes do atual governo (Walter Pinheiro, do PT/BA, por exemplo), o tempo todo a bater na tecla e a reforçar a tese de que a regulamentação deverá acontecer a partir da "realidade da convergência digital". Negaram categoricamente a possibilidade de manter tudo como está, em relação à propriedade cruzada? Em momento algum.


É preciso enfrentar os empresários
Ao ler a Folha de São Paulo de hoje, arrepios se transformaram em pontadas no estômago. Texto publicado no caderno Poder, página A6, diz que "não está nos planos de Dilma enviar o projeto de regulação da mídia ao Congresso sem consenso com os empresários do setor. Defende um debate técnico sobre o tema, sem contaminações ideológicas como no governo passado".

Mas que pretensa discussão fria e objetiva é essa, Presidenta? Como tratar o tema apenas de forma "técnica", se estamos falando de políticas públicas e cidadãs fundamentais para a garantia de consolidação da democracia? Ah, sim, novamente: pode ser jogo de cena do jornal, balão de ensaio da Folha, movida por seus interesses? Certamente. Mas, infelizmente, até agora nenhum representante do governo veio a público para desmentir ou contestar essa informação. Diz o dito popular que "quem cala, consente". Se não há o contraditório...

A essa altura, o leitor irá dizer que apenas a proibição da propriedade cruzada não é suficiente para garantir democracia. Concordo. Mas trata-se de medida fundamental para fazer o país avançar nesse sentido. O governo Dilma precisa deixar de tergiversar sobre a democratização da comunicação, precisa chamar a responsabilidade, tomar as rédeas do processo e pautar o debate, com clareza, sem evasivas, escapismos, entrelinhas ou mensagens subliminares. Esse é o momento. 

Nas democracias, governar significa também debater, negociar, ouvir, respeitar divergências. Mas sem abandonar princípios que servem justamente para reforçar a vida democrática. E sem capitular diante das pressões e das ameaças de grupos privados poderosos, pouquíssimo preocupados com o bem-estar comum, e interessadíssimos na maximização de seus lucros. 

Se o Brasil deseja de fato consolidar sua democracia, em sentido amplo, não pode adiar a regulamentação da mídia e a aprovação de uma Lei de Meios. Em entrevista reproduzida pelo blog Conversa Afiada, do jornalista Paulo Henrique Amorim, o jurista Fabio Konder Comparato diz esperar que "o governo da presidenta Dilma Rousseff não se acovarde, nem diante do oligopólio empresarial de comunicação de massa, nem perante os chefes militares, que continuam a defender abertamente os assassinos, torturadores e estupradores de oponentes políticos, durante o regime castrense de 1964 a 1985".

Esta também continua sendo a sincera expectativa deste blogueiro. Apesar do sinal amarelo. A conferir. 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

UM CASO EXTRAORDINÁRIO DE CURA DA AIDS

Nas leituras preparatórias para as aulas de "Jornalismo Científico", que recomeçam em breve, acabei retomando reportagem de capa publicada pela revista Época sobre o caso de Timothy Brown, norte-americano que se curou da aids. Para incentivar a discussão por aqui, recuperei, juntei e ampliei mensagens que postei no twitter, em dezembro passado.

Imagino que, em função dos enigmas e dos desafios que a aids coloca para as comunidades científicas brasileira e internacional (não foi possível ainda por exemplo chegar a uma vacina) e do alcance da epidemia mundial (atualmente, são cerca de 33 milhões de pessoas infectadas pelo vírus em todo mundo, segundo dados da Unaids), o "caso Timothy" deverá provocar bons debates e ajudar a levantar muitas dúvidas em sala de aula.

Antes de mais nada, é preciso dizer que a cura do norte-americano representa uma conquista especialíssima, um episódio isolado, que está longe, muito longe de poder significar a cura para os milhões de infectados pelo HIV. Durante o tratamento, e por conta do acompanhamento médico, Tim, além da aids, descobriu que tinha leucemia. Precisava passar por transplante de medula. Aí é que entra a exceção da exceção: cientistas conseguiram encontrar um doador de medula "dois em um", que era não só geneticamente compatível (o que já não é tarefa simples), mas que também apresentava uma mutação genética raríssima nas células de defesa - a ausência de moléculas chamadas de CCR5.

Essa mutação impede que o HIV ataque, "grude", invada e destrua as células de defesa. Ou seja, com a mutação, e sem as moléculas CCR5, desliga-se a chave que garante ao vírus devastar o sistema imunológico. Assim, a pessoa pode conviver com o HIV, sem jamais desenvolver a doença. Foi isso mesmo que escrevi: a pessoa pode ter o vírus, mas não ter aids. É uma situação de estranha harmonia, que a ciência sabe que é possível, mas que ainda não consegue explicar. E por que pouquíssimas pessoas têm células com resistência? Também não há respostas. O fato é que, graças ao transplante, Tim conseguiu "importar" essa vantagem comparativa.

Por isso é que as repórteres Cristiane Segatto e Marcela Buscato, com muita responsabilidade e cuidado, escrevem na matéria que "o caso de Tim é extraordinário em dois sentidos da palavra: é notável e raro. Raríssimo. Sua recuperação se deve a uma conjunção improvável de condições favoráveis. É algo que não pode ser reproduzido em larga escala". Portanto, alertam as autoras do texto, "o caso de Tim não representa a esperada cura da aids". 

As ressalvas e ponderações, muito bem colocadas, não tiram no entanto a importância do feito científico. Os estudos e investigações que virão sobre a recuperação de Tim devem sugerir novas estratégias de combate à doença. Tais investigações poderão "revitalizar a pesquisa com objetivo ambicioso de curar a doença", como também e tão bem destacam as repórteres.

Como se vê, cada avanço consagrado pelas pesquisas levanta inúmeras outras dúvidas e questões, numa aventura de curiosidades que ajuda a compor uma sucessão de verdades provisórias. Eis a beleza da narrativa científica.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

COMISSÃO DA VERDADE - PARA QUE SERVE?

(*)  João Batista de Abreu, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Artigo originalmente publicado pelo "Observatório da Imprensa", edição de 18 de janeiro de 2011. Reproduzido pelo blog com autorização. 



Professor, poeta, cronista e um dos maiores conhecedores da obra de Carlos Drummond de Andrade, o mineiro Affonso Romano de Sant’Anna tropeçou em pedras no meio do caminho ao condenar a criação da Comissão da Verdade, para investigar os crimes praticados em nome do Estado brasileiro durante o regime militar.

Independentemente da posição ideológica de cada cidadão brasileiro, as famílias têm o direito de localizar seus entes desaparecidos, assim como o Estado democrático tem o dever de colaborar para que seja recuperada a veracidade dos episódios da trama política, mesmo os mais escabrosos. Do contrário deixaremos insepulto um cadáver que mancha a tradição do país e, particularmente, das Forças Armadas brasileiras e de membros do Ministério Público, que fingiam ignorar as denúncias apresentadas pelos réus e advogados de defesa durante audiências na Justiça militar.

O livro Diário de Fernando – nos cárceres da ditadura militar brasileira, em que Frei Betto narra os suplícios do frei dominicano Fernando de Brito, ex-preso político, traz um depoimento importante sobre a relação entre os torturadores e o Estado:

"A tortura no regime militar brasileiro é sistêmica; suas diretrizes foram definidas pelo Conselho de Segurança Nacional. Portanto não deriva de abusos. Os agentes do DOI-CODI usam codinomes, trajes civis e são impedidos de corte militar dos cabelos. Atuam em grupos de três a cinco, e seus endereços são preservados".


História preservada

Quase todos os países da América e da Europa Oriental que viveram sob ditaduras durante a Guerra Fria instauraram comissões para investigar os crimes de Estado. A vizinha Argentina – onde a repressão foi muito mais violenta do que no Brasil – tornou públicos documentos secretos e prendeu oficiais e ex-presidentes envolvidos em assassinatos e desaparecimentos. Uruguai, Chile e Peru seguiram o mesmo caminho e recuperaram a história dos tempos do arbítrio. Somente o Brasil insiste em varrer a sujeira para debaixo do tapete.

Se é verdade que um grupo de sete pessoas não tem poder bastante para levantar os nomes dos torturadores, que cometeram as maiores atrocidades em dependências militares como o DOI-CODI, em São Paulo, e o quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, então poderíamos questionar qualquer decisão da Justiça criminal, porque sete é o número de jurados que decidem a sorte dos acusados de crime de morte, nos julgamentos em primeira instância.

Por que não tornar público os nomes de empresários que financiaram a Operação – paramilitar – Bandeirantes (Oban), criada na ante-sala dos gabinetes oficiais? Por que não divulgar os nomes de donos de jornais que emprestavam veículos para operações antiguerrilha? A quem interessa manter os jovens brasileiros à margem dessa página obscura de nossa História?

O historiador francês Marc Bloch, herói da Resistência, cunhou um pensamento peculiar sobre a importância do conhecimento. Preso pela Gestapo em Lyon, à espera do fuzilamento, escreve uma carta ao filho de seis anos sobre o valor de se estudar História. Primeiro, ele questiona a idéia de que um conhecimento profundo evitaria a repetição dos erros do passado. Se assim fosse, não haveria nazismo. Para quem pensa que a História serve para combater as injustiças sociais, Bloch argumenta que, se assim fosse, não estaria ele prestes a ser fuzilado. Para que serve a História? Poderíamos dizer que serve para mostrar que em tempos de arbítrio, seja qual for o matiz da ditadura, os crimes de Estado não atingem apenas aqueles que se opõem ao regime, mas a toda uma geração que viveu sob o signo do medo.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

POR QUE DETONAR O ENEM?

Há cheiro de fritura ministerial no ar. A grande mídia limpinha, sem esconder sorrisos marotos de felicidade, anda sorrateiramente anunciando que, por conta dos problemas recentes ocorridos com o Enem (o Exame Nacional de Ensino Médio), mais especificamente com o Sistema de Seleção Unificado, o  Sisu (situações como pontuação zerada de candidatos, dificuldades para acessar o sistema, exposição indevida de informações sobre notas de estudantes), o ministro da Educação, Fernando Haddad, estaria sendo observado de muito perto pela presidenta Dilma Rousseff. Tradução (se é que é necessária): Haddad estaria na marca do pênalti, com os dias contados, podendo ser muito em breve demitido do governo.

A saída de Haddad representaria uma vitória política estratégica importante para os jornalões e companhia que, como já procurei discutir em outro post do blog, fazem o papel de oposição no Brasil. O atual titular da pasta da Educação, afinal, foi bancado pelo ex-presidente Lula. Investir na queda do ministro significaria matar dois coelhos com uma cajadada só: atingir duramente uma das áreas prioritárias do governo Dilma, que vem, desde antes da posse, recebendo atenção especial da presidenta, além de “reforçar” (sempre segundo a versão midiática que se pretende construir) a incompetência de Lula na escolha de seus auxiliares próximos e a “herança maldita” que teria deixado para a sucessora. Eis o efeito dominó midiático: atingir o Enem para derrubar Haddad, chamuscando Dilma e queimando Lula.

Não será de se estranhar também se tal queda estiver sendo sutilmente estimulada, nas catacumbas do poder, pelo “fogo amigo”, pelas disputas intestinas do próprio PT. Haddad, afinal, é invariavelmente lembrado e citado como possível candidato do partido à eleição municipal de 2012, na capital paulista. Seria uma forma de o PT, com sangue novo e renovado, tentar recuperar a administração da maior cidade do país, que já governou por duas vezes (com Luiza Erundina, entre 1989 e 1992, e com Marta Suplicy, entre 2001 e 2004).

Não menos importante, é preciso dizer com todas as letras que poderosos grupos privados têm agido sistematicamente, muitas vezes na surdina, com intuito de não deixar muitas marcas ou pistas, para minar o Enem, que mexeu com gente graúda. Por isso mesmo, assumiu a condição de uma importante vitrine (e vidraça) do governo federal. Penso ter sido positivo que o exame tenha se transformado em processo seletivo para as universidades públicas federais. Até então, a rede atuava com vestibulares dispersos e fragmentados, desconectados.

Foi avanço também a prova passar a valorizar conteúdos críticos, reflexivos e interdisciplinares, o raciocínio, e não mais decorebas. Pois é justamente aí que o bicho pega novamente e que entra o desconforto dos cursinhos pré-vestibulares: musiquinhas fáceis e apostilas têm agora pouca serventia. O mesmo vale para o ensino médio privado, que não raro, e salvo honrosas exceções (generalizações são sempre injustas), preocupa-se apenas em “preparar” (melhor seria dizer adestrar) os alunos para responder questões dos vestibulares, em uma proposta pedagógica muito distante da formação crítica e cidadã que deveria ser garantida aos jovens. No ensino médio, a imensa maioria das escolas formata projetos, grades e conteúdos, trabalha com conteúdos apostilados e pasteurizados, para garantir sucesso nos exames - e depois as instituições fazem marketing dos feitos, quando alcançados.

Como reforça o sociólogo Rudá Ricci, em texto publicado pela Agência Carta Maior em novembro do ano passado, o novo cenário incomodou. “Existe uma movimentação para politizar o tema. Vamos ter o avanço de uma oposição organizada, que junta as forças políticas que perderam a eleição nacional com escolas particulares e com cursinhos que têm muito interesse na manutenção do sistema de vestibular”.

O neurocientista Miguel Nicolelis, que conhece a fundo o Standart Admissions Test (SAT), exame norte-americano com o qual o Enem guarda muitas semelhanças, disse em entrevista publicada pelo blog Viomundo, também em novembro passado, que “o vestibular transformava o colegial numa câmara de tortura. Uma pressão insuportável. Um  inferno tanto para os meninos e meninas quanto para as famílias. Além disso,  um sistema humilhante, porque as pessoas que não podiam frequentar um colégio privado de alto nível sofriam com o complexo de não poder competir em pé de igualdade. Por isso os cursinhos floresceram e fizeram a riqueza de tanta gente, que agora está metendo o pau no Enem. Evidentemente  vários interesses estão sendo contrariados devido ao êxito do Enem.”

Tudo isso, no entanto, não isenta o governo federal de erros (e alguns foram graves mesmo) no gerenciamento do processo. Em 2009, as provas foram "vazadas", ainda na gráfica; no ano passado, foi uma grande bobagem impor aos estudantes condições estapafúrdias (não usar lápis!), no momento da realização do exame. Ajudou a criar animosidades. Questionários repetidos e cabeçalhos trocados não são erros aceitáveis em uma proposta pedagógica dessa magnitude e com essa importância. Da mesma forma, não cabem vazamentos de informações sigilosas dos estudantes, dificuldades de acesso, sistema lento, notas erradas, transtornos recentemente enfrentados pelos alunos que participaram do exame.

É preciso aceitar que o Enem cresceu – é muito difícil uma prova para quase cinco milhões de pessoas não comportar algum tipo de desvio. Por isso, torna-se urgente quem sabe pensar em avaliações periódicas de menor alcance, distribuídas ao longo do ano, em datas diferentes. Também seria razoável aplicar o exame de forma regionalizada e descentralizada. O procedimento ainda abriria espaço para avaliações mais sintonizadas com as especificidades regionais, sem perder noção de conjunto. O Enem, tal como está formatado, representa uma conquista, um grande avanço para a educação brasileira.

Ciente dessa conjuntura, Nicolelis destaca, na mesma entrevista já citada, que “o Brasil está tentando iniciar esse processo. Quando você inicia um processo dessa magnitude, com milhões fazendo exame,  é normal ter problemas operacionais de percurso. Isso faz parte do processo”. E o neurocientista candidatíssimo ao Nobel completa: “estamos caminhando para o Enem ser a moeda de troca da inclusão educacional. As crianças vão aprender que não é porque elas fazem cursinho famoso da Avenida Paulista que elas vão ter mais chance de entrar na universidade. Elas vão entrar na universidade pelo que elas acumularam de conhecimento ao longo da vida acadêmica delas. Elas vão poder demonstrar esse conhecimento sem estresse, sem medo, sem complexo de inferioridade. De uma maneira democrática. E, num futuro próximo, tanto as crianças de escolas privadas quanto as  de escolas públicas vão começar a entrar nesse jogo  em pé de igualdade”.

Sim, o Enem precisa ser debatido publicamente, criticado, melhorado, aperfeiçoado. Mas jamais abandonado, detonado, desqualificado  ou desconstruído. “A sucessão de problemas relacionados à aplicação do Enem tem gerado reações acaloradas. É compreensível que seja assim, especialmente entre alunos que se veem prejudicados com falhas tanto na organização quanto no conteúdo de provas. São erros que obviamente exigem correção. No entanto, o calor dos protestos não deveria ofuscar a lógica por trás do novo Enem, uma iniciativa de mérito, que pode trazer numerosos benefícios, uma vez superados problemas iniciais, muito deles relacionados a questões de logística”, escreveu na Folha de São Paulo Jorge Werthein, doutor em Educação pela Universidade de Stanford (EUA). Para ele, "a lógica do Enem faz sentido, pois se fundamenta em uma nova visão educacional, mais compatível com o século XXI". 

Feitas as contas, é preciso muita atenção e cautela nesse debate, para não aceitar a sedução de cantos de sereias, e disposição firme para defender o Enem. Afinal, como se viu, o exame incomoda gente graúda – e essas forças não são tão ocultas assim.  

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

E SOBRA ARROGÂNCIA NO CASO DO CACHORRINHO DO RIO DE JANEIRO

O texto abaixo foi publicado no site de "O Globo" nesta quarta-feira, 19 de janeiro, às 17h35 (clique aqui para acessar o original). Foi a maneira que o jornal encontrou para "explicar" as bobagens escritas sobre o cachorrinho Caramelo - que, como já se sabe, não era Caramelo, era John. O texto é um escárnio, desrespeitoso com os leitores e com todos os que sofreram e ainda sofrem com a tragédia no Rio de Janeiro. Chega a ser ofensivo. Será que é  tão difícil assim dizer "erramos, exageramos, abusamos, espetacularizamos" e pedir desculpas, com todas as letras, com sobriedade e honestidade? Pois é... Humildade? Parece não fazer parte do vocabulário do jornal. Sobrou arrogância. Ou será que eu é que estou exagerando?
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A verdadeira história do cachorro Caramelo, resgatado em cima de escombros na Região Serrana


RIO - "Antes de mais nada, eu queria esclarecer: aquele cachorro da foto, ao lado de uma cova, no cemitério, não sou eu. Na verdade, fiquei três dias rondando em cima dos escombros da minha casa depois que a chuva levou tudo o que tinha pela frente. Só me tiraram à força, na sexta-feira passada, para me levar para um galpão. Lá, fiquei por pouco tempo. Logo, fui parar na casa de uma nova dona, na Barra da Tijuca. Estranhei e fugi. Ontem, umas pessoas me pegaram no estacionamento de um shopping e me levaram de novo para a nova dona. Agora, estou mais calmo. Se vou me adaptar? O futuro dirá".

Se cachorro falasse e desse entrevista coletiva, possivelmente essas seriam algumas das frases proferidas por Caramelo em seu primeiro pronunciamento após a tragédia que atingiu a Região Serrana do Rio. Como só late e não tem assessor de imprensa, o cão virou, sem querer, uma celebridade.

- Já me ligaram da Noruega, da Suiça, da Argentina e da Inglaterra para saber notícias do cão - conta a voluntária Bebete, da ONG Estimação, uma das responsáveis pelo resgate do animal em cima dos escombros da casa onde ele vivia, no bairro Caleme, em Teresópolis.

O coordenador da Comissão Especial de Proteção Animal, Fabiano Jacob, que também participou do resgate do cão, na sexta-feira, disse que ficou sensibilizado com a história de Caramelo. Moradores fizeram um apelo para retirá-lo de cima dos escombros onde estava há três dias. E acabaram exagerando.

- Ele estava muito agressivo, não queria sair mesmo. Tivemos que usar uma focinheira para evitar que ele mordesse alguém. Lá no local, falaram que, antes de passar dias em cima dos escombros, o Caramelo tinha ido ao cemitério onde a dona foi enterrada. Como foi expulso de lá, teria voltado para cima dos escombros - afirmou Jacob.

A informação vaga de moradores sobre a suposta ida ao cemitério casada com uma foto de um sósia de Caramelo ao lado de uma cova fez com que o cão ganhasse a fama que nem pediu. A imagem foi captada no último sábado, quando, segundo Bebete, da ONG Estimação, Caramelo já estava abrigado num galpão. Nesta segunda-feira, o jornal "O Diário de Teresópolis" entrevistou não o sósia de Caramelo - ele também só late -, mas o coveiro Rodolfo Júnior, que disse que o cão da foto era o seu bicho de estimação, chamado de Leão.

Se falasse e desse entrevista coletiva, possivelmente Caramelo pediria para que a imprensa não o procurasse mais. Afinal, ele já tem uma nova dona. Bebete, que o resgatou, lembra que há centenas de animais abandonados na Região Serrana neste momento. A principal dificuldade é encontrar mais um local para abrigo já que o galpão utilizado atualmente está lotado. O ideal é que os animais consigam adoção.

O CACHORRINHO E O JORNALISMO DE ESPETÁCULO

A cobertura jornalística sobre a tragédia acontecida na região serrana do Rio de Janeiro por conta das chuvas (e também pela inércia e descaso das autoridades locais, é sempre bom reforçar) transformou-se rapidamente no desejo estranho de publicar diariamente (ou a cada telejornal, no caso das emissoras de TV) o ranking das mortes.

Começamos com dezenas, ultrapassamos a centena, e já são mais de 600 as vítimas fatais. É informação relevante? Certamente que sim. Mas quando é alçada à condição que foi, descontextualizada, e sem que outros elementos importantes do episódio sejam discutidos com profundidade, o que se tem é a tentativa de alcançar e tocar a população por meio de um sentimentalismo afoito e irresponsável, escapando de nossa racionalidade para fazer emergir nossos instintos mais primitivos.

É a lógica do espetáculo, levada às últimas consequências e que assume contornos gravíssimos quando se toma conhecimento de que era falsa, uma invenção completa a tal história do cãozinho que não saía do lado do túmulo da dona que morreu nas enchentes (a imagem e a história mórbida, sempre presentes). Explicando: o cachorro Caramelo tornou-se celebridade nacional ao aparecer em várias matérias (sites, jornais e TVs) sempre ao lado de uma cruz e de um monte de terra, local onde teria sido enterrada sua ex-dona.

Eis que o jornal Diário de Teresópolis vem a público para desmontar a farsa. De acordo com matéria do Comunique-se, repercutindo o Diário, "Caramelo realmente existe e perdeu seus donos na tragédia, mas não era ele que aparecia ao lado de um túmulo, e sim John, o cachorro de Rodolfo Júnior, o voluntário que trabalha no cemitério Carlinda Berlim". O texto do Comunique-se traz ainda uma fala do administrador do cemitério, Márcio de Souza: "“É lamentável que tal fato seja utilizado para causar comoção aos leitores! Fui contatado horas antes da notícia ser levada ao ar por um repórter e fui claro ao dizer que o cão da foto ao lado do túmulo é de propriedade de um de nossos voluntários que no momento faziam sepultamentos naquele local, logo não tem nada a ver com o cão adotado".

Atenção - e  muito mais grave: não se trata "apenas" de um erro, de falha de apuração. Quem divulgou a falsa notícia sabia que aquele não era o cãozinho em questão. Mas resolveu apostar na história apelativa e espetacular. Rodolfo, o dono do John, que de fato é o "personagem" da foto, é de uma lucidez imensa (que faltou ao repórter...) ao afirmar, sempre no Comunique-se, que "isso é coisa de repórter que precisava chegar com uma história diferente para apresentar ao chefe...". Trocando em miúdos: entre a narrativa "corriqueira", mas rigorosa, correta e precisa, e o relato insólito, mórbido e sensacionalista, optou-se, conscientemente, pela segunda proposta. Que tal?

Escreve Claudio Novaes Pinto Coelho, no livro "Comunicação e Sociedade do Espetáculo" (editora Paulus), que "a sociedade contemporânea teria dito adeus à chatice, à caretice, ao comedimento. Nossos sentidos são estimulados ininterruptamente, em especial a visão". Na mesma obra, Fábio Cardoso Marques afirma que "prevalece a tendência, na grande imprensa, de simplificar os discursos, através da escolha da mesma gama de fontes e de um processo de espetacularização da notícia que, no seu limite, tende a criar ou a recriar a realidade dos fatos. Tais fenômenos desvalorizam a função mediadora e reflexiva da imprensa". Em "A Saga dos Cães Perdidos" (editora Hacker), Ciro Marcondes Filho diz que "dentro da nova orientação do jornalismo, assuntos associados ao curioso, ao insólito, ao imageticamente impressionante ganham mais espaço no noticiário, que deixa de ser 'informar-se sobre o mundo' para ser 'surpreender-se com pessoas e coisas'".

Sim, choramos, gritamos, lamentamos a tragédia no Rio de Janeiro (e não estou criticando a rede de solidariedade que se forma, ao contrário). Mas será que de fato conseguimos compreender, com profundidade, como e por que as cidades serranas foram devastadas pelas chuvas? As causas e consequências? O contexto?

A espetacularização jornalística é eficientíssima em estimular sensações e reações impulsivas, mas paupérrima em incentivar reflexões. Por isso, quando as tempestades e as enxurradas desaparecem e tudo volta ao "normal" (será?), todos voltamos a viver nossas vidas. Até as enchentes do ano seguinte.  

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

É HORA DE GARANTIR O DIREITO À VERDADE E DE RECONTAR A HISTÓRIA DA DITADURA - II

Na segunda parte da entrevista, Cecília Coimbra analisa a recente decisão da Corte de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, diz que o Brasil é o país mais atrasado da América Latina no que diz respeito às reparações envolvendo a ditadura, reforça o perigo representado pela perspectiva de esquecimento e apagamento da História e afirma: "não queremos vingança. Essa é a lógica dos fascistas. Nós somos diferentes. O que espero é que as marcas que a Presidenta Dilma Rousseff traz no corpo e na alma possam fazer ecoar esse tema com mais força do que ele tem ecoado até hoje".
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Recentemente, no prazo de um ano, tivermos duas decisões importantes e contraditórias e que estão diretamente relacionadas à memória dos mortos e desaparecidos durante a ditadura. Em abril de 2010, o STF manteve a interpretação jurídica do texto da Lei da Anistia, quase que dizendo que o período de arbítrio deve ser esquecido. Em dezembro, a OEA condenou o Estado brasileiro pelas mortes na Guerrilha do Araguaia. Como equacionar agora as decisões internacional e interna?
O julgamento da OEA foi nossa grande vitória. O processo que foi para a Corte tramita no Brasil desde 1982. Ainda em pleno período da ditadura, um grupo de familiares entrou com um processo para a localização dos restos mortais dos desaparecidos. O processo andava lentamente, era arquivado, sem muitos avanços. Até que, com apoio do Centro de Justiça Internacional e da Comissão de Familiares de São Paulo, entramos como peticionários e levamos essa discussão ao tribunal da OEA. E demorou muitos anos, porque não é qualquer questão que eles avaliam. Em maio do ano passado, a Corte assumiu o caso e foram chamadas testemunhas, não só os familiares, mas também representantes do governo brasileiro. E foi uma vergonha o que aconteceu na Costa Rica. Pessoas que têm tradição de lutas por direitos humanos, como José Gregori, estavam lá depondo contra os familiares dos desaparecidos no Araguaia. O documento apresentado pela Advocacia-Geral da União é uma peça lamentável, que dizia que já se tinha feito de tudo, até expedições aos locais da guerrilha, quando a gente sabe que essas ações são muito mais fantasias midiáticas. A posição do governo brasileiro nesse julgamento da OEA foi uma das coisas mais conservadoras da nossa história recente. Mostra muito bem a força que o grupo liderado pelo Jobim tem no interior do governo. Mas, apesar disso, conseguimos uma grande vitória, muito além das nossas expectativas, porque a Corte diz que os arquivos devem ser abertos, que os testemunhos devem ser ouvidos, que é preciso inclusive colocar atendimentos médico, jurídico e psicológico a serviço das famílias. A gente sabe que a OEA não tem poder de punição sobre governos, mas seria uma vergonha para o Brasil, com a participação em massa de militantes de direitos humanos nos três últimos governos, incluindo o de FHC, não cumprir essa decisão internacional. Porque é preciso lembrar que o presidente Fernando Henrique também fez muito pouco nessa área, não podemos esquecer isso. Agora, a partir da decisão da OEA, o que a gente vai ter de fazer é o movimento do "CUMPRA-SE", como estamos chamando essa próxima etapa.

Mas já há ministros do STF dizendo que a decisão do Tribunal brasileiro é soberana e absoluta, que vai prevalecer a determinação da Justiça brasileira, que a OEA não pode interferir em resoluções aqui tomadas.
Essa decisão internacional põe por terra a interpretação do STF sobre a Lei da Anistia e deve prevalecer. Agora o desafio é justamente esse movimento do "cumpra-se", para garantir que seja seguida a determinação da OEA. Sabemos que vamos ter de fazer muita pressão, sem ela as coisas não vão andar. Pela correlação de forças que estamos vendo no Planalto, teremos muitas dificuldades.

Você certamente já respondeu essa pergunta inúmeras outras vezes, mas acho que precisa ser feita. Por que o Brasil não consegue lidar com a ditadura como outros países têm feito, como Argentina e Chile?
Acho que tem a ver com as histórias específicas de cada país. Na Argentina, tivemos movimentos fortíssimos de resistência. Aqui, a repressão foi seletiva, tivemos cerca de 500 mortos e desaparecidos; lá, foram trinta mil. Agora, não é só a questão quantitativa, tem mesmo a ver com as singularidades da história do Brasil. E acho que isso vem desde a nossa colonização. Fiquei muito espantada quando estive no México pela primeira vez e observei o espírito do povo mexicano, como guardam as tradições e preservam a história do país. Até porque a colonização espanhola foi de uma violência tremenda, destruiu civilizações. No Brasil não, foi sempre a dinâmica do acordo, da conciliação, do amiguinho. Dom João VI falou para o filho 'faça logo a independência'. Em segundo lugar, penso também que a trajetória dos movimentos sindicais, operários, estudantis e intelectuais nos outros países foi muito mais forte. Sim, tivemos aqui passeatas, movimentações, mas, como disse, foram menos intensas, e a repressão foi mais seletiva. Na Argentina, foi uma coisa generalizada, há famílias inteiras desaparecidas.

O Brasil é o mais atrasado nessas investigações.
O Brasil foi o primeiro a exportar a tortura e a figura do desaparecido, mas é o mais atrasado nas reparações, que não são apenas financeiras. Quando falo em reparações estou usando um conceito da ONU, para quem reparação representa o final de um processo. Porque nenhum dinheiro do mundo paga o que a gente passou. Agora, em um Estado capitalista, é também por meio da reparação financeira que se reconhece os erros, os crimes cometidos. Esse é o final de um processo. O início é a Comissão da Verdade. Você tem de dizer o que aconteceu, como aconteceu, quando aconteceu e quem são os responsáveis.

E como fica essa relação da memória com as novas gerações? Como essa história está sendo narrada? Porque já são quase 50 anos, mas ao mesmo tempo são apenas 50 anos...
É interessante. A gente sabe que se investe muito nesse silenciamento, no esquecimento e no apagamento de determinadas memórias. Agora, tem muita gente jovem interessadíssima em conhecer melhor a ditadura, tenho participado de várias bancas sobre o tema, nas áreas de Direito, de Psicologia. Para nós, esse contato com a juventude é fundamental. Porque tem uma coisa muito bonita, que é uma fala do filósofo francês Gilles Deleuze, que diz que não existe poder absluto. A vida sempre vaza. A resistência sempre escapa. Você não consegue controlar, não consegue disciplinar tudo. Assim, apesar dessa história oficial que continua vigindo, dos testemunhos que são pouco conhecidos, a gente que está na militância dos direitos humanos tem encontrado muita demanda por temas de monografias, trabalhos de conclusão, dissertações, teses. A esquerda cometeu muitos erros, é preciso reconhecer, mas não dá para comparar os erros da esquerda com o terrorismo de Estado que foi implantado nesse país.

O filósofo Vladimir Safatle escreveu recentemente um artigo justamente diferenciando a ditadura que impõe terrorismo, que mata, persegue e tortura da resistência estabelecida contra essa ditadura.
É um artigo belíssimo. Não existiam dois exércitos. Isso é uma bobagem. Mesmo o pessoal que se ligou à luta armada, eram poucos os que tinham experiência militar. Muitos não sabiam nem segurar um revólver. Não foi guerra coisíssima nenhuma. O que houve foi repressão pura e simples. As pessoas foram mortas e torturadas no meio da selva, por exemplo, na Guerrilha do Araguaia, tiveram as mãos e as cabeças cortadas e enviadas para Brasília para identificação. E os nossos testemunhos são fundamentais para quebrar as versões oficiais. Porque eu vejo hoje uma classe média muito conservadora. O que a gente está vivendo hoje é o fascismo social, é a intolerância, é o fundamentalismo, a violência que tenta cada vez mais ser justificada, a tortura que se tenta justificar. Vivemos um cenário terrível. O que está acontecendo hoje nos quartéis, por exemplo, é algo muito sério. Temos recebido muitas denúncias sobre os treinamentos militares, sobre o tratamento dado aos recrutas. É preciso estar de olhos abertos. Toda vez que a gente conta o que foi a ditadura, a gente não pode deixar de fazer a ligação com o que está acontecendo hoje.

Começamos fazendo a avaliação dos governos Lula, quero encerrar com as perspectivas para o governo Dilma.
A presidenta Dilma tem as marcas que nós temos. Eu disse recentemente a um correspondente internacional que essas marcas não saem nunca. Eu acho que quem passou pela tortura, pela prisão arbitrária, quem viu companheiros sendo mortos, não esquece isso jamais. Agora, não podemos cair em um sentimento de vingança. Essa é a lógica deles, a lógica dos fascistas. Nós somos diferentes. As marcas da tortura estão na Dilma. Espero que ela não caia em uma atitude nem de vítima ou coitadinha nem de vingadora, mas também não deixe o assunto cair no esquecimento. Não tenho muita convicção, mas gostaria muito que as marcas que a Presidenta Dilma Rousseff traz no corpo e na alma pudessem fazer ecoar esse tema com mais força do que ele tem ecoado até hoje.



Clique aqui para ler a primeira parte da entrevista.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

SAUDADES DO PAULISTÃO...

Ainda sou de um tempo em que era um grande barato ir ao alçapão da Vila Belmiro ou ao aconchegante Pacaembu em tardes de domingo para ver o Santos contra a Ferroviária de Araraquara de Marcão, a Internacional de Limeira de Kita e Tato, o XV de Jaú de Marola, o XV de Piracicaba de Pianeli, o Guarani de Evair, Boiadeiro e João Paulo...

Eram times do interior paulista que, se não chegavam a decidir títulos e menos ainda a ser campeões (embora as exceções tenham existido, e a Inter de 1986 está aí para comprovar), montavam equipes bastante competitivas, capazes de proporcionar bons jogos e agradáveis diversões futebolísticas ao enfrentar os grandes do estado.

Os estádios ficavam cheios - ao menos na minha lembrança e certamente se a comparação for feita com as arquibancadas tristemente quase vazias dos dias atuais. Havia certo charme no campeonato, era gostoso provocar os amigos nas vitórias (e dose para leão ser provocado por eles nas derrotas). Por nostalgia ou por teimosia, fui sempre um defensor dos torneios estaduais. Com muita tristeza, no entanto, começo a repensar - e a abandonar - essa posição. 

Maluco (assumidamente) que sou por futebol, vi quatro jogos da rodada de estreia do campeonato Paulista de 2011. De certa forma, esse número já é sinal de alerta e de desinteresse: em outras épocas, teria visto ao menos uns seis, mais da metade da rodada, e feito força para ver os melhores momentos de uns outros dois, talvez.

Com todo o respeito, o time da Linense, campeão da série A-2 (que na minha infância se chamava segunda divisão, assim, pura e simplesmente) em 2010 , é de uma fragilidade ímpar. Não foi capaz de resistir ao primeiro tempo de um jogo em que enfrentou o time reserva do Santos.

O Mogi que jogou contra o São Paulo nem de longe foi capaz de honrar a camisa que já foi usada por Tato, Leto e Rivaldo, que faziam parte do "carrossel caipira", nos idos de 1992. O jogo entre Ponte Preta e Mirassol deu sono - um festival de bolas alçadas na área, bicos para o lado, passes errados... O melhor (ou menos pior) aconteceu no Pacaembu, com Corinthians e Portuguesa. Mas aí era clássico - muito embora a Lusa também não seja mais nem sombra de suas tradições e equipes passadas, como o inesquecível time vice-campeão paulista de 1985, com Luis Pereira, Edu Marangon, Toquinho e Esquerdinha.

Sinto muito, mas não é possível encantar-se com campeonato de nível técnico tão baixo, disputado por 20 equipes, mas resolvido em menos quatro meses, por força de um calendário maluco. A consequência é que os grandes do estado encaram o Paulista como preparação para torneios mais importantes - Copa do Brasil e Libertadores. Acaba sendo a pré-temporada deles.

Já os times do interior, salvo honrosas exceções, e é cada vez mais difícil encontrá-las, montam times formados por refugos, por veteranos em fim de carreira ou por atletas jovens e promessas cedidas por empresários dispostos apenas a fazer dos times vitrines para seus atletas. Quando o campeonato acaba, as equipes são literalmente desmanchadas e, descontadas as que participam da série B do Brasileirão, passam os oito meses restantes do ano disputando torneios caça-níqueis sem qualquer importância.

Boa parte das cidades sequer reconhecem mais laços de afetividade com os times que em tese as representariam. Barueri virou Prudente. Guaratinguetá virou Americana. O São Caetano por pouco não deixou o ABC paulista. No mundo negócio-futebol, quem dá mais leva. Não vale nem dizer que durante os quatro meses os grandes ajudam a sustentar os pequenos, que Santos, Palmeiras, Corinthians e São Paulo são atrações nas cidades por onde passam, que os municípios se mobilizam para ver Neymar, Ganso, Ronaldo, Roberto Carlos, Rogerio Ceni, Marcos...

Ora, mas a primeira medida que empresários, prefeitos e presidentes de clubes do interior fazem ao ter acesso à tabela do campeonato e saber quando suas equipes enfrentarão os grandes é aumentar os valores dos ingressos, jogando essas entradas na alturas, a preços proibitivos (150, 200, 300 reais)! Resultado: os craques desfilam rapidamente pelas cidades, e os estádios permanecem vazios, como estava o da Linense, no último sábado. A caravana e os artistas passam, a plebe fica a ver navios.

No ano passado, na reta final dos estaduais, Victor Birner, comentarista da rádio CBN,  escreveu em seu blog que "temos entre 3 e 4 meses muito chatos, de futebol entendiante, por causa de interesses políticos e tradições moribundas, desvalorizadas. Enquanto os defensores dos estaduais neste formato continuam discursando bastante sobre a importância da competição, os estádios estão vazios e os torcedores pouco empolgados. A consequência disso foi descrita com extrema felicidade numa frase de PVC (Paulo Vinicius Coelho, comentarista esportivo), hoje, no Bate-Bola (programa da ESPN Brasil). “Se continuarmos com 4 meses de futebol assim, formaremos cada vez mais torcedores do Barcelona”.

Não gosto então de ser campeão paulista? É óbvio que o título estadual continua a ser comemorado. Seria desfaçatez mentirosa dizer "ah, não vale, é bobagem, nem ligo". Mas, de coração, já não tem mais o impacto, o gosto, a pompa e a circunstância da minha infância e adolescência. Envelheci. Deixei de ser garoto. Acho que o campeonato fez o percurso contrário. Meu Paulistão virou Paulistinha. Agoniza. E, sinceramente, não sei se é possível refundá-lo, reinventar a fórmula. Começo a admitir, com dor no coração, que o melhor mesmo seria esquecê-lo; como diz Juca Kfouri,  os estaduais "já morreram e ainda não foram enterrados". Pena.