terça-feira, 18 de janeiro de 2011

É HORA DE GARANTIR O DIREITO À VERDADE E DE RECONTAR A HISTÓRIA DA DITADURA - II

Na segunda parte da entrevista, Cecília Coimbra analisa a recente decisão da Corte de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, diz que o Brasil é o país mais atrasado da América Latina no que diz respeito às reparações envolvendo a ditadura, reforça o perigo representado pela perspectiva de esquecimento e apagamento da História e afirma: "não queremos vingança. Essa é a lógica dos fascistas. Nós somos diferentes. O que espero é que as marcas que a Presidenta Dilma Rousseff traz no corpo e na alma possam fazer ecoar esse tema com mais força do que ele tem ecoado até hoje".
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Recentemente, no prazo de um ano, tivermos duas decisões importantes e contraditórias e que estão diretamente relacionadas à memória dos mortos e desaparecidos durante a ditadura. Em abril de 2010, o STF manteve a interpretação jurídica do texto da Lei da Anistia, quase que dizendo que o período de arbítrio deve ser esquecido. Em dezembro, a OEA condenou o Estado brasileiro pelas mortes na Guerrilha do Araguaia. Como equacionar agora as decisões internacional e interna?
O julgamento da OEA foi nossa grande vitória. O processo que foi para a Corte tramita no Brasil desde 1982. Ainda em pleno período da ditadura, um grupo de familiares entrou com um processo para a localização dos restos mortais dos desaparecidos. O processo andava lentamente, era arquivado, sem muitos avanços. Até que, com apoio do Centro de Justiça Internacional e da Comissão de Familiares de São Paulo, entramos como peticionários e levamos essa discussão ao tribunal da OEA. E demorou muitos anos, porque não é qualquer questão que eles avaliam. Em maio do ano passado, a Corte assumiu o caso e foram chamadas testemunhas, não só os familiares, mas também representantes do governo brasileiro. E foi uma vergonha o que aconteceu na Costa Rica. Pessoas que têm tradição de lutas por direitos humanos, como José Gregori, estavam lá depondo contra os familiares dos desaparecidos no Araguaia. O documento apresentado pela Advocacia-Geral da União é uma peça lamentável, que dizia que já se tinha feito de tudo, até expedições aos locais da guerrilha, quando a gente sabe que essas ações são muito mais fantasias midiáticas. A posição do governo brasileiro nesse julgamento da OEA foi uma das coisas mais conservadoras da nossa história recente. Mostra muito bem a força que o grupo liderado pelo Jobim tem no interior do governo. Mas, apesar disso, conseguimos uma grande vitória, muito além das nossas expectativas, porque a Corte diz que os arquivos devem ser abertos, que os testemunhos devem ser ouvidos, que é preciso inclusive colocar atendimentos médico, jurídico e psicológico a serviço das famílias. A gente sabe que a OEA não tem poder de punição sobre governos, mas seria uma vergonha para o Brasil, com a participação em massa de militantes de direitos humanos nos três últimos governos, incluindo o de FHC, não cumprir essa decisão internacional. Porque é preciso lembrar que o presidente Fernando Henrique também fez muito pouco nessa área, não podemos esquecer isso. Agora, a partir da decisão da OEA, o que a gente vai ter de fazer é o movimento do "CUMPRA-SE", como estamos chamando essa próxima etapa.

Mas já há ministros do STF dizendo que a decisão do Tribunal brasileiro é soberana e absoluta, que vai prevalecer a determinação da Justiça brasileira, que a OEA não pode interferir em resoluções aqui tomadas.
Essa decisão internacional põe por terra a interpretação do STF sobre a Lei da Anistia e deve prevalecer. Agora o desafio é justamente esse movimento do "cumpra-se", para garantir que seja seguida a determinação da OEA. Sabemos que vamos ter de fazer muita pressão, sem ela as coisas não vão andar. Pela correlação de forças que estamos vendo no Planalto, teremos muitas dificuldades.

Você certamente já respondeu essa pergunta inúmeras outras vezes, mas acho que precisa ser feita. Por que o Brasil não consegue lidar com a ditadura como outros países têm feito, como Argentina e Chile?
Acho que tem a ver com as histórias específicas de cada país. Na Argentina, tivemos movimentos fortíssimos de resistência. Aqui, a repressão foi seletiva, tivemos cerca de 500 mortos e desaparecidos; lá, foram trinta mil. Agora, não é só a questão quantitativa, tem mesmo a ver com as singularidades da história do Brasil. E acho que isso vem desde a nossa colonização. Fiquei muito espantada quando estive no México pela primeira vez e observei o espírito do povo mexicano, como guardam as tradições e preservam a história do país. Até porque a colonização espanhola foi de uma violência tremenda, destruiu civilizações. No Brasil não, foi sempre a dinâmica do acordo, da conciliação, do amiguinho. Dom João VI falou para o filho 'faça logo a independência'. Em segundo lugar, penso também que a trajetória dos movimentos sindicais, operários, estudantis e intelectuais nos outros países foi muito mais forte. Sim, tivemos aqui passeatas, movimentações, mas, como disse, foram menos intensas, e a repressão foi mais seletiva. Na Argentina, foi uma coisa generalizada, há famílias inteiras desaparecidas.

O Brasil é o mais atrasado nessas investigações.
O Brasil foi o primeiro a exportar a tortura e a figura do desaparecido, mas é o mais atrasado nas reparações, que não são apenas financeiras. Quando falo em reparações estou usando um conceito da ONU, para quem reparação representa o final de um processo. Porque nenhum dinheiro do mundo paga o que a gente passou. Agora, em um Estado capitalista, é também por meio da reparação financeira que se reconhece os erros, os crimes cometidos. Esse é o final de um processo. O início é a Comissão da Verdade. Você tem de dizer o que aconteceu, como aconteceu, quando aconteceu e quem são os responsáveis.

E como fica essa relação da memória com as novas gerações? Como essa história está sendo narrada? Porque já são quase 50 anos, mas ao mesmo tempo são apenas 50 anos...
É interessante. A gente sabe que se investe muito nesse silenciamento, no esquecimento e no apagamento de determinadas memórias. Agora, tem muita gente jovem interessadíssima em conhecer melhor a ditadura, tenho participado de várias bancas sobre o tema, nas áreas de Direito, de Psicologia. Para nós, esse contato com a juventude é fundamental. Porque tem uma coisa muito bonita, que é uma fala do filósofo francês Gilles Deleuze, que diz que não existe poder absluto. A vida sempre vaza. A resistência sempre escapa. Você não consegue controlar, não consegue disciplinar tudo. Assim, apesar dessa história oficial que continua vigindo, dos testemunhos que são pouco conhecidos, a gente que está na militância dos direitos humanos tem encontrado muita demanda por temas de monografias, trabalhos de conclusão, dissertações, teses. A esquerda cometeu muitos erros, é preciso reconhecer, mas não dá para comparar os erros da esquerda com o terrorismo de Estado que foi implantado nesse país.

O filósofo Vladimir Safatle escreveu recentemente um artigo justamente diferenciando a ditadura que impõe terrorismo, que mata, persegue e tortura da resistência estabelecida contra essa ditadura.
É um artigo belíssimo. Não existiam dois exércitos. Isso é uma bobagem. Mesmo o pessoal que se ligou à luta armada, eram poucos os que tinham experiência militar. Muitos não sabiam nem segurar um revólver. Não foi guerra coisíssima nenhuma. O que houve foi repressão pura e simples. As pessoas foram mortas e torturadas no meio da selva, por exemplo, na Guerrilha do Araguaia, tiveram as mãos e as cabeças cortadas e enviadas para Brasília para identificação. E os nossos testemunhos são fundamentais para quebrar as versões oficiais. Porque eu vejo hoje uma classe média muito conservadora. O que a gente está vivendo hoje é o fascismo social, é a intolerância, é o fundamentalismo, a violência que tenta cada vez mais ser justificada, a tortura que se tenta justificar. Vivemos um cenário terrível. O que está acontecendo hoje nos quartéis, por exemplo, é algo muito sério. Temos recebido muitas denúncias sobre os treinamentos militares, sobre o tratamento dado aos recrutas. É preciso estar de olhos abertos. Toda vez que a gente conta o que foi a ditadura, a gente não pode deixar de fazer a ligação com o que está acontecendo hoje.

Começamos fazendo a avaliação dos governos Lula, quero encerrar com as perspectivas para o governo Dilma.
A presidenta Dilma tem as marcas que nós temos. Eu disse recentemente a um correspondente internacional que essas marcas não saem nunca. Eu acho que quem passou pela tortura, pela prisão arbitrária, quem viu companheiros sendo mortos, não esquece isso jamais. Agora, não podemos cair em um sentimento de vingança. Essa é a lógica deles, a lógica dos fascistas. Nós somos diferentes. As marcas da tortura estão na Dilma. Espero que ela não caia em uma atitude nem de vítima ou coitadinha nem de vingadora, mas também não deixe o assunto cair no esquecimento. Não tenho muita convicção, mas gostaria muito que as marcas que a Presidenta Dilma Rousseff traz no corpo e na alma pudessem fazer ecoar esse tema com mais força do que ele tem ecoado até hoje.



Clique aqui para ler a primeira parte da entrevista.

Um comentário:

  1. Não tem nada mais tocante do que ouvir (ler) alguém que vivenciou tudo aquilo ainda tentando fazer justiça. O interessante - e preocupante - é que a luta não acabou lá atrás.
    Tudo o que sofreram não foi suficiente. E pensar que ainda ouço de pessoas próximas, com convicção, que quem apanhou/foi morto mereceu. "Eram baderneiros".

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