A cobertura jornalística sobre a tragédia acontecida na região serrana do Rio de Janeiro por conta das chuvas (e também pela inércia e descaso das autoridades locais, é sempre bom reforçar) transformou-se rapidamente no desejo estranho de publicar diariamente (ou a cada telejornal, no caso das emissoras de TV) o ranking das mortes.
Começamos com dezenas, ultrapassamos a centena, e já são mais de 600 as vítimas fatais. É informação relevante? Certamente que sim. Mas quando é alçada à condição que foi, descontextualizada, e sem que outros elementos importantes do episódio sejam discutidos com profundidade, o que se tem é a tentativa de alcançar e tocar a população por meio de um sentimentalismo afoito e irresponsável, escapando de nossa racionalidade para fazer emergir nossos instintos mais primitivos.
É a lógica do espetáculo, levada às últimas consequências e que assume contornos gravíssimos quando se toma conhecimento de que era falsa, uma invenção completa a tal história do cãozinho que não saía do lado do túmulo da dona que morreu nas enchentes (a imagem e a história mórbida, sempre presentes). Explicando: o cachorro Caramelo tornou-se celebridade nacional ao aparecer em várias matérias (sites, jornais e TVs) sempre ao lado de uma cruz e de um monte de terra, local onde teria sido enterrada sua ex-dona.
Eis que o jornal Diário de Teresópolis vem a público para desmontar a farsa. De acordo com matéria do Comunique-se, repercutindo o Diário, "Caramelo realmente existe e perdeu seus donos na tragédia, mas não era ele que aparecia ao lado de um túmulo, e sim John, o cachorro de Rodolfo Júnior, o voluntário que trabalha no cemitério Carlinda Berlim". O texto do Comunique-se traz ainda uma fala do administrador do cemitério, Márcio de Souza: "“É lamentável que tal fato seja utilizado para causar comoção aos leitores! Fui contatado horas antes da notícia ser levada ao ar por um repórter e fui claro ao dizer que o cão da foto ao lado do túmulo é de propriedade de um de nossos voluntários que no momento faziam sepultamentos naquele local, logo não tem nada a ver com o cão adotado".
Atenção - e muito mais grave: não se trata "apenas" de um erro, de falha de apuração. Quem divulgou a falsa notícia sabia que aquele não era o cãozinho em questão. Mas resolveu apostar na história apelativa e espetacular. Rodolfo, o dono do John, que de fato é o "personagem" da foto, é de uma lucidez imensa (que faltou ao repórter...) ao afirmar, sempre no Comunique-se, que "isso é coisa de repórter que precisava chegar com uma história diferente para apresentar ao chefe...". Trocando em miúdos: entre a narrativa "corriqueira", mas rigorosa, correta e precisa, e o relato insólito, mórbido e sensacionalista, optou-se, conscientemente, pela segunda proposta. Que tal?
Escreve Claudio Novaes Pinto Coelho, no livro "Comunicação e Sociedade do Espetáculo" (editora Paulus), que "a sociedade contemporânea teria dito adeus à chatice, à caretice, ao comedimento. Nossos sentidos são estimulados ininterruptamente, em especial a visão". Na mesma obra, Fábio Cardoso Marques afirma que "prevalece a tendência, na grande imprensa, de simplificar os discursos, através da escolha da mesma gama de fontes e de um processo de espetacularização da notícia que, no seu limite, tende a criar ou a recriar a realidade dos fatos. Tais fenômenos desvalorizam a função mediadora e reflexiva da imprensa". Em "A Saga dos Cães Perdidos" (editora Hacker), Ciro Marcondes Filho diz que "dentro da nova orientação do jornalismo, assuntos associados ao curioso, ao insólito, ao imageticamente impressionante ganham mais espaço no noticiário, que deixa de ser 'informar-se sobre o mundo' para ser 'surpreender-se com pessoas e coisas'".
Sim, choramos, gritamos, lamentamos a tragédia no Rio de Janeiro (e não estou criticando a rede de solidariedade que se forma, ao contrário). Mas será que de fato conseguimos compreender, com profundidade, como e por que as cidades serranas foram devastadas pelas chuvas? As causas e consequências? O contexto?
A espetacularização jornalística é eficientíssima em estimular sensações e reações impulsivas, mas paupérrima em incentivar reflexões. Por isso, quando as tempestades e as enxurradas desaparecem e tudo volta ao "normal" (será?), todos voltamos a viver nossas vidas. Até as enchentes do ano seguinte.
Comentário enviado por Mariluce Moura, por e-mail:
ResponderExcluir"Excelente, Chico. A manipulação da sensibilidade dos espectadores (ou leitores ou ouvintes) com mentiras, falsidades, inverdades, etc. é uma praga no mau jornalismo e um acinte ao direito dos cidadãos de serem corretamente informados. A tragédia já é grande por si, suas causas sociais, para muito além do desastre natural, dariam grandes análises jornalísticas, mas há quem prefira o sensacionalismo indecente ante a dor de tantos".
Muito bom!
ResponderExcluirA situação é realmente complicadíssima. Quando me pego pensando nesta maneira de fazer jornalismo chego a ficar assustado com o que ela transmite e (não)transforma. O problema maior é que banaliza a sensibilização que pode levar a solidariedade. O que aparece apresentado é um fácil modelo de como provocar sensações (efêmeras) em nosso corpo, ou seja, acabou o jornal, acabou minha preocupação com a liberdade e direito do outro. Desliga-se a TV e volta-se novamente a dentro das cascas, inquebraveis por outros seres, mas abandonada instantaneamente por um aparelho que apresenta o mundo de maneira "Virtual e fragmentada". Quem espera o mundo ser apresentado a ele por uma caixa, dentro de sua própria casa, dificilmente pensará por si.
Matheus Marestoni