No premiado romance de estreia, "Se eu fechar os olhos agora" (Record, 2009), Edney Silvestre arrastava sem pedir licença (que bom) o leitor para uma eletrizante trama que combinava assassinato, mistério, investigações policiais, racismo, machismo, corrupção e influências políticas da pior espécie, permeados por memórias e resquícios da ditadura de Getulio Vargas. Na obra seguinte, "A felicidade é fácil" (Record, 2011), não tão arrebatadora, menos tensa, mas igualmente bem escrita, o sequestro de quem se imaginava ser o filho de um publicitário rico e influente é o ponto de partida para um olhar aguçado sobre a soberba e a vida pautada pelo consumo das elites brasileiras, a contrastar com as mazelas e carências das periferias e dos que ocupavam a base da pirâmide, sem perspectivas de mudanças, no Brasil do início dos anos 1990.
Em "Vidas provisórias", que acaba de chegar às livrarias pela editora Intrínseca, reencontramos Edney em seus melhores momentos como contador de histórias, a conduzir a narrativa a partir dos universos de dois personagens presentes nas obras anteriores. Paulo, um dos garotos-detetive de "Se eu fechar...", é agora um jovem estudante de Direito que vive no Rio de Janeiro. Confundido com um militante da resistência armada de esquerda à ditadura civil-militar que se instalou no país em 1964, acusado de ter participado do sequestro do embaixador alemão, é preso e barbaramente torturado. Edney não poupa o leitor das descrições, dos choques, dos urros, dos cheiros, do sangue e das dores. Logo nas primeiras páginas já se lê: "Tossiu. A dor surgida nos pulmões percorreu imediatamente o corpo inteiro. Um gosto azedo subiu até a garganta e invadiu as narinas. Sentiu ainda mais dificuldade para respirar. Se ao menos conseguisse erguer o tronco. Se ao menos conseguisse. O tronco. O peso. Sobre as pernas. Se soltasse as mãos. As mãos. Os pés descalços. Sujos. Inchados. Era sangue, aquilo? No peito do pé e nos dedos?". Exilado na Suécia, depois de ter passado pelo Chile, o rapaz convive com as marcas físicas e psicológicas das sevícias. "Este é o grande poder dos torturadores. A dor não passa. O domínio deles continua", escreve o autor. Paulo casa-se com Anna, funcionária da Anistia Internacional, com quem tem dois filhos, Edward e Joseph. Torna-se funcionário da Unesco e, nos anos 2000, passa a percorrer o mundo a defender a democracia e os direitos humanos. O fantasma da ditadura, no entanto, não lhe dará sossego. Nunca mais.
Barbara, filha do motorista morto em "A felicidade é fácil", vive a absoluta falta de perspectivas, a desesperança e a decepção profunda com o Brasil governado por Fernando Collor de Melo. Foi a época em que, empurrados pelo desemprego, pela recessão e pelas poupanças confiscadas, as mentiras do caçador de marajás, milhares de brasileiros abandonaram o país e voaram para o gigante do norte, em busca de um sonho tão sedutor quanto falso de realização profissional, prosperidade e enriquecimento. Em terras estadunidenses, a jovem vive quase em cárcere privado voluntário, auto-reclusão, pânico permanente por ser imigrante ilegal, a paúra de poder ser presa a qualquer momento pelos órgãos de controle de imigração. Sem falar inglês, trabalha como faxineira e manicure de compatriotas, que buscam construir certa rede de proteção num país que não tolera estrangeiros. Encanta-se com Filipe, que morre vítima da Aids, aproxima-se de prostitutas e vê-se em determinado momento novamente ameaçada pela presença de políticos influentes e poderosos.
Nos mais de dez anos que passa no exterior, observa a mudança de perfil dos brasileiros que por lá chegam. No final dos 90, são as peruas que tomam conta da cidade de Nova Iorque. "São mulheres recentemente enriquecidas, de cabelos alisados e tingidos, idades apagadas por bisturis e injeções, faces e corpos alterados cirurgicamente, cobertas de penduricalhos, vestidas e calçadas de marcas famosas, carregando malas e bolsas de marcas famosas, carregando bolsas estampadas com nomes de costureiros, sapateiros e fabricantes de malas".
As vozes dos dois protagonistas se intercalam, em capítulos que são diferenciados por agradáveis soluções gráficas. Chamam a atenção também os diálogos rápidos e cortantes construídos pelo autor, as breves palavras, às vezes falas que são quase grunhidos, mas que batem no leitor repletas de significados. É uma das marcas da narrativa.
Ao trazer à tona a história recente do Brasil, sobretudo nas lembranças amargas de Paulo, Edney recorre a um aspecto que já foi definidor do romance brasileiro em outras épocas: o fazer da Literatura um exercício de reflexão sobre a nossa sociedade, a nossa identidade. É uma característica que, como traço de unidade, parece já não mais fazer parte das preocupações principais da nossa geração contemporânea de escritores, pautados por saudável pluralidade temática e reconhecidos por habilidades com linguagens, mas que acabam por perder de vista a tarefa de discutir o país. No texto "A ficção que (não) discute a realidade", o professor e jornalista Fabio Silvestre reforça que "tema recorrente na literatura de autores clássicos como Machado de Assis e Graciliano Ramos, o Brasil tem sido um assunto pouco privilegiado por escritores contemporâneos".
Edney fura esse bloqueio - e de forma consciente. No booktrailer de "Vidas provisórias", diz que deseja que as pessoas se lembrem verdadeiramente o que é uma ditadura. No livro, ele escancara essa realidade. Em trecho que trata da Guerrilha do Araguaia, o militar diz a Paulo que "não sobrou nenhum terrorista para contar a história. Seus amigos revolucionários agora são considerados desaparecidos. E assim ficarão para sempre. Corpos esquartejados e carbonizados somem da História. (...) Os subversivos que me preocupam estão vivos. E estão se reagrupando. Nas fábricas, nas igrejas, nas redações, nas faculdades, até mesmo dentro das próprias Forças Armadas. Precisamos impedir isso. (...) Geisel é uma decepção. Mas vamos dar um jeito nisso, também".
As histórias se entrelaçam ainda na permanente sensação de não pertencimento, de fuga, de raízes que ficaram perdidas no passado, identidades arrancadas e apagadas, nas dores cruas do exílio. O final não é previsível, embora não chegue a ser surpreendente. Vidas provisórias que se cruzam. Prepara, talvez, mais um capítulo da saga romanesca de Edney. Quem sabe sejamos em dois anos (esse é o tempo médio da escrita dele) presenteados com um livro que tenha como pano de fundo os anos da chamada era Lula.
Parabéns pela brilhante síntese, Chico Bicudo. Para quem conheceu de perto a Ditadura, não deixa de ser instigante o desejo de conhecer as obras de Edney Silvestre. Grato. Abs.
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