Frio
de julho. Temperatura perto dos dez graus. Um vento cortante, daqueles de fazer
doer os ossos, entrava cantando pela enorme janela da sala, escancarada.
Ninguém se importava. Ernesto vestia a guerreira camisa amarela com listras
verticais verdes de tantos outros mundiais, mangas curtas, número 8 nas costas.
Estava toda amassada, surrada. Quase nem mais cabia nele. Era o uniforme da
sorte. Nervoso, adrenalina fervendo no sangue, o rapaz suava em bicas e permanecia
de joelhos, bem na frente da TV. Quase sem respirar, sentia o corpo todinho dolorido,
como se tivesse sido pisoteado por oito elefantes africanos, cinco toneladas
cada, um atrás do outro. Viu finalmente o árbitro erguer o braço. Chegava ao fim
a prorrogação. A semi-final da Copa do Mundo seria decidida nos pênaltis.
O
rapaz desaba no chão, olhar perdido, buscando o teto. Fica imóvel. Não pisca.
Não mexe nem a pontinha da unha do dedo mindinho. Anita sente um aperto no
coração. Já tinha visto aquela cena, algumas vezes. O semblante dela era tenso,
testa enrugada. Mordeu os lábios. Balançou a cabeça de um lado a outro. Sem
perceber, falou alto, quase gritando: “Ah, mas pode parar por aí. Nem em sonho
invente de ter outro piripaque por conta de futebol. Já foi suficiente o do ano
passado, quando precisamos voar para o pronto-socorro. Dessa vez não vou ajudar
ninguém. Não conte comigo. Chega”. Ainda não tinha esquecido o susto, o surto, o
pavor, a agonia, o namorado todo travado, sem nem conseguir falar, o médico do
plantão dizendo “cuidado, infarto pode vir desse jeito”.
Sem
prestar muita atenção ao que dizia a companheira, Ernesto olha o relógio. Seis
e quarenta. Já escureceu. Ainda estatelado, ele começa a ouvir cadeiras sendo
arrastadas na sala. Alguém levanta e acende as luzes. Sem dizer palavra, o pai,
que passara a partida inteira andando em círculos, sempre no mesmo sentido, quase
a fazer um buraco no chão do apartamento, faz o sinal da cruz, pega a imagem de
Nossa Senhora de Fátima que estava no oratório, abraça-a fortemente, conversa
baixinho com ela, dá vários beijos nela, faz mais um carinho e com ela sai para
a área de serviço.
Como
se tivesse recebido ordem do marido por telepatia, talvez um impulso elétrico
conectado, ou ainda quem sabe tempestades cerebrais em sintonia, como nos experimentos
do neurocientista Miguel Nicolelis, a mãe corre em desabalada carreira pelo
corredor e se tranca no quarto. O irmão vai também, para o escritório. Em
silêncio. Logo atrás, vão a irmã, o primo, a tia, o tio, o cunhado, a namorada
do primo, o outro primo. Todos vão buscar abrigo em outros cantos da casa. As
arquibancadas da sala, até então apinhadas, agitadíssimas, ficam abandonadas.
Só restam ele e o irmão mais novo, encolhido e assustado num canto do sofá,
olhos arregalados. Aguardam o início da disputa de pênaltis. Na lateral de
campo, entre consultas e confabulações, os cobradores das penalidades estavam
sendo definidos. Os jogadores recebiam aquelas massagens e aguinhas milagrosas
que acabam com qualquer incômodo muscular.
Agora
quase vazia, a sala parecia enorme. Os pratos e os talheres sujos de molho de
macarrão do almoço ainda estavam espalhados pela mesa, que tinha sido encostada
na parede, perto da porta de entrada. Tudo para não atrapalhar a visão do jogo.
Já escolheram o gol onde os pênaltis serão cobrados?, Ernesto quis saber.
Ninguém respondeu. Começou a se mexer. Encolheu
lentamente as pernas. Girou de lado. Apoiou-se sobre o braço direito. Fez força
para levantar. São dez anos sofrendo com dores na coluna. O exame periódico de
ressonância magnética feito no mês anterior diz que há acentuação da lordose
lombar em decúbito, esboços osteofitários incipientes em alguns corpos
vertebrais, leve abaulamento discal difuso L3-L4 que retifica o saco discal e
sei lá quantas outras encrencas vertebrais complicadas. Ele chama todas essas
letras e nomes de hérnias, protuberâncias e discos desgastados. Tem dor. Muita
dor – que o impede inclusive de participar das peladas de final de semana com
os amigos.
O
ortopedista que também tinha casa de férias na cidade de Serra Negra, interior
paulista, onde Ernesto passara boa parte da infância e da juventude, um tanto
delas correndo atrás de bolas e comemorando os gols anotados, recomendou que o
rapaz sempre se levante com cuidado, bem devagar. Flexiona os joelhos. Conta
até três. Tudo bem. Apoia no sofá. Fica em pé. Estica. Não dá. Trava. Uma dor
lancinante atravessa a coluna, da base da nuca à lombar. Fica tudo escuro. As
pernas bambeiam. Quase cai. O irmão pula e oferece ajuda. Não precisa, está
tudo bem, agradece. Respira fundo. Vai precisar ligar para o fisioterapeuta e
marcar umas sessões extras de hidro, alongamentos na água. Talvez tenha de
voltar a tomar anti-inflamatórios. Sugeriram ioga e acupuntura. Ele desconfia. Mas
sabe que não é hora de pensar nisso. Respira fundo, mais uma vez. Passou. Ai. Acusou
uma pontada, no lado esquerdo da lombar.
Consegue
dar dois, três passos, lentamente. A sensação é que há uma agulha a espetar sua
espinha, sem dó. O irmão já tinha novamente aumentado o som da televisão. Os
jogadores com as camisas amarelas começam a se abraçar. Parecem dizer aqueles
“é nois, ninguém tira, treinamos muito para chegar até aqui, não vamos perder
agora, vamos fazer acontecer, fé em deus”. Ernesto não vê graça alguma nesses
discursinhos motivacionais, acha todos uma grande bobagem. Se falatório
ganhasse taça...
Na
telinha, o técnico franzino, boné na cachola, madeixas brancas esvoaçantes, não
para de beijar a medalhinha, sozinho, olhando o infinito. O velho Lobo diz a
todo instante “vão ter que me engolir, vão ter que me engolir”. Mais atento, Ernesto
consegue fazer a leitura labial. Começa a ouvir rojões que estouram nas ruas.
Vira bicho. Sai correndo. Olha pela janela. Que merda! Parem com isso! Não
ganhamos nada ainda! Isso dá um azar danado! Só comemorem depois que estivermos
classificados! O irmão continua no cantinho do sofá. Agora rói as unhas, sem
parar. Ameaça rir daquela ceninha patética, um maluco pendurado na janela,
berrando sabe-se lá com quem, porque as ruas estavam desertas. Recebe em troca um
olhar gelado, fulminante. Ernesto é uma bomba-relógio prestes a explodir.
O
locutor abre a torneirinha de asneiras da boneca Emília. “É jogo para cardíaco,
amigo. Pode treinar, mas pênalti é sempre loteria. Caixinha de surpresas. O que
tiver de ser, será. De qualquer maneira, honramos essa camisa. Quem será que
tem mais perna, mais coração? Vale a sua torcida. Haja coração!”. Cala a boca,
Galvão! Sim, Ernesto acha o sujeito um falastrão, cretino fundamental. Mas acredita
que o falatório do cara dá sorte. Nem pensar em mudar de canal. Os adversários
com camisa laranja também ensaiam abraços, rodinhas, palavras de ordem,
tapinhas nas costas. O rapaz solta o verbo novamente. Filhos da puta, viados,
fregueses! Já esqueceram aquele balaço de falta, aquela bunda branca malabarista
que saiu do caminho da bola na hora certinha? Entrou bem no cantinho. Vão
perder de novo. Lembrou que estava em território doméstico paterno/materno,
onde o código de ética e convivência dizia que não eram aceitos palavrões.
Escapou, cacete, fazer o quê. Nem fez menção de pedir desculpas. Estava tenso
demais. Movimentou-se para buscar assento ao lado do irmão. A coluna ainda
estava levemente dolorida. Fez suave massagem. Sentou com a palma da mão
esquerda a pressionar as costas. Procurou uma almofada.
Foi
quando a ficha caiu. Numa espécie de viagem imagética, catapultado para outra
realidade, todas as peças se encaixaram, tudo fez sentido. Ele finalmente
entendeu as forças ocultas que tinham empurrado todos os outros familiares para
os demais cômodos do apartamento – e segurado o irmão mais novo com ele na
sala. Só os dois. Tinha sido exatamente assim na final da Copa anterior, quando
a decisão acontecera também nos pênaltis, e os amarelos tinham levantado o
caneco, depois de 24 anos de seca. Era isso! Quatro anos depois, bola na marca
da cal de novo, claro que todos deveriam seguir o mesmo ritual. Óbvio. Natural.
Obrigatório. Superstição coletiva. Irracionalidade racional – e vencedora. Sem
que nada precisasse ter sido combinado. Não teve ordem, comando ou imposição. Cada
um sabia o que precisava fazer. Achava lindo o futebol também por conta dessas
mandingas. É isso, repetiu baixinho. Vai dar certo. Lembrou de cada um dos
familiares reunidos para ver a semi, como se passasse a tropa em revista. Começou
a contá-los – um, dois, três... catorze... quinze... Como quinze? Estancou. Ficou
completamente pálido. Pôde sentir o sangue gelar.
Anita
voltava da cozinha. Tinha ido beber água, comer um bolo de chocolate.
Aproveitou e tomou um café. Foi o suficiente para deixar Ernesto profundamente irritado.
Como é que alguém consegue pensar em comida em decisão de pênaltis em semi de
Copa do Mundo? É como querer desafivelar o cinto de segurança e ir ao banheiro
com o avião em pleno voo, coisa que a namorada também adorava fazer. E que
raios afinal ela estava fazendo ali, no apartamento dos pais dele, naquele
começo de noite? Ah, sim, ele tinha convidado. Mas éramos 14 na última final,
lembrou. Refez as contas, um por um, usando os dedos para registrar cada um dos
parentes. Catorze, confirmou. Éramos catorze. Agora somos quinze. A namorada
era um elemento estranho. Fato inquestionável. Teve mau presságio. Sentiu leve
tontura, tudo escureceu de repente, numa fração de segundo. Não vai dar certo.
Não vai dar certo. Olhou angustiado para a companheira, acomodada
tranquilamente num banquinho, ao lado do sofá. Ela ainda limpava as migalhas de
bolo dos lábios. Colocou o guardanapo sujo na mesinha de canto. Cruzou as
pernas. Sorriu para Ernesto. Ela não estava na sala há quatro anos, Ernesto
repetia, sequer existia, eles não namoravam, nem se conheciam. Estava solteiro.
Definitivamente, só podiam estar naquela arquibancada doméstica ele e o irmão
mais novo. Se não fosse assim...
Ensaiou.
Montou a fala na cabeça. Pensou em cada palavra. Tinha de ser rápido, certeiro.
A disputa ia começar. Que merda, que merda, era horrível. Mas inevitável. Ela o
conhecia, vá lá, ia entender. Já tinham passado poucas e boas por conta de
futebol. A do ano passado tinha sido terrível, ele reconhece, derrota do time
do coração na final do campeonato estadual, no último minuto, a fila que
continuava. Lá se vão dez anos sem uma tacinha sequer. Não suportou o baque. Teve
um colapso nervoso. Primeiro foram as mãos, que começaram a formigar. Não
conseguia mexer os dedos, por mais força contrária que fizesse. Quanto mais
tentava, mais doía. Os braços e as pernas travaram em seguida. Por fim, os
músculos do rosto também foram paralisados. Tentava desesperadamente falar, mas
a boca não obedecia. Saíam apenas sons desconexos. Tinha perdido o controle
sobre o próprio corpo. Estava completamente inerte, entregue a uma dor que não
conhecia. Teve medo. Virou a madrugada no hospital. Levou bronca do médico. Para
tentar desanuviar os ânimos e manter o bom humor, saiu de lá dizendo que talvez
a loucura apaixonada dele por futebol fosse mais um experimento da evolução
natural darwiniana, a reforçar a seleção das espécies e forjar o Homo sapiens
fanaticus futebolisticus.
Anita
ficou furiosa, mas esteve o tempo todo ao lado dele. Ernesto prometeu que nunca
mais aconteceria, que mudaria sua relação com o nobre esporte bretão. Durante
um tempo, pouco mais de seis meses, fez terapia. Desistiu quando percebeu que o
analista tinha se tornado mais um amigo com quem discutia a rodada futebolística
do final de semana. Votavam nos gols mais bonitos, falavam sobre lances
polêmicos. Era incontrolável, muito mais forte que ele. Para quem achava aquela
relação com a pelota uma grande bobagem, ele respondia pedindo ajuda ao genial
Nelson Rodrigues, que dizia que o “futebol é passional porque jogado pelo pobre
ser humano”.
Verdade
que, depois do trauma nervoso, Ernesto começa a ver os jogos com mais
serenidade. A calmaria dura cinco minutos, no máximo - vai se deixando levar
pela tensão, é tomado por ondas e impulsos, demônios que vivem nas entranhas e,
quando percebe, já foi, já está novamente transtornado. Naquele começo de noite
fria, semi-final de Copa do Mundo, o grau máximo de desequilíbrio fora novamente
alcançado. Não tinha mais censura. Aproveitou o embalo. Precisava falar.
-
Amor, é que... é... sabe... é que na final da última Copa, nos pênaltis, só
estávamos eu e meu irmão aqui na sala.
-
Sim, a gente não se conhecia.
-
Pois é. Então. Seria bom se fosse assim de novo.
-
Não entendi.
-
Todo mundo já saiu daqui. Meu pai, minha mãe...
-
Verdade.
-
Só falta você. Acho que seria bom se pudesse sair também.
Quase
travou. A última frase saiu de uma vez só, sem parar, como metralhadora, para
não falhar, não empacar. O olhar de Anita foi fulminante.
-
Não acredito.
-
Nem eu. Mas veja bem, são só cinco minutinhos. Essa porra é semi-final de Copa
do Mundo, não é joguinho contra o Bandeirante de Birigui. Não é qualquer
porcaria. Você volta quando acabar. A gente comemora. Vai na minha, vai dar
certo.
O
irmão fazia cara de paisagem, constrangido.
Anita
sabia que o namorado era um cara cheio de manias futebolísticas. Estavam juntos
há quase três anos. Resignada, aceitava que ele usasse as mesmas roupas em
jogos decisivos, que ficasse sempre na mesma posição e setor no estádio, que
batesse três vezes no controle remoto quando a transmissão da partida fosse
começar na televisão, que colocasse a mão na testa e dissesse “sai, sai, sai”
quando era bola cruzada na área do time dele, que ficasse mudo desde manhã
cedinho em dias de jogos importantes. Mas não entendia. Do fundo do coração, fazia
força, muita força, mas não entendia. Detestava fazer o papel da vilã da
história. Pensava, no entanto, se o namorado suportaria seguidas situações de
enorme estresse – e, principalmente, ficava imaginando como seria quando
tivessem filhos. Era com ele que ela queria casar, estava convicta. Tinha medo
de ficar viúva precocemente.
A
namorada sempre dizia para as amigas que Ernesto era das pessoas mais racionais
que conhecera, metódico, ponderado, equilibrado, ateu convicto, a desconfiar de
todas as espiritualidades. Jamais o tinha visto rezar, recorrer a apelos a
anjos ou santos, nem nos momentos mais sofridos e dramáticos, quando sabia que
o companheiro estava fragilizado. Ele dizia que as leis da natureza lhe bastavam.
Não movia uma palha antes de pensar com cuidado sobre cada decisão que
precisava tomar. Aos 30 anos, formado em História, o jovem estava concluindo o
mestrado, uma pesquisa sobre a Guerrilha do Caparaó, que combateu a ditadura
militar entre 1966-67, na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. Com futebol, e só com futebol, Ernesto
ficava alterado.
Anita
era justa, reconhecia que o namorado não se envolvia com torcidas organizadas,
escapava delas, jamais se metia em brigas ou confusões, condenava qualquer
forma de violência. Mas era outro sujeito quando a bola rolava. Ela ficava
assustada com a transformação. Não era o universo dela. Gostava do jogo, de ir
aos estádios, acompanhava os campeonatos, torcia – para o mesmo time de coração
de Ernesto, ainda bem, acabava evitando outras discussões. Tinha sido no
entanto criada a entender futebol como sinônimo de diversão, jamais de
sofrimento. Achou que era hora de pedir truco. Resolveu bancar.
-
Não vou sair desta sala. Melhor, se eu sair, não volto nunca mais.
Ernesto
acusou o golpe. Entendeu perfeitamente a mensagem. Conhecia bem a namorada. Sabia
que ela falava sério. Não iria recuar. Ele ficou gelado. Ferrou, pensou. Vamos
perder. Já era. Sem chances. Não se deve cutucar as entidades do futebol. Não
perdoam. São implacáveis. Não se brinca com tradição. Mas... fazer o quê? Sabia
que não ia adiantar insistir, pedir de novo. Talvez cruzasse uma linha
perigosa, sem volta. Amava Anita. Além do mais, na telinha da TV o primeiro
batedor com camisa amarela já estava com a bola nas mãos, dirigindo-se lentamente
ao local da cobrança. A namorada estava com cara de pouquíssimos amigos. Conformou-se.
Sentou
no chão, mão direita grudada na poltrona. Exatamente como fizera quatro anos antes.
Puxou o ar. Não soltou. O primeiro canarinho mandou a bola na lua. Filho de uma
égua, imbecil! Acabou. Eu sabia. Ameaçou olhar para a companheira e gritar “eu
avisei!”. Recuou. Teve plena noção do perigo, apesar das fortes emoções. Ainda
restava uma nesga de equilíbrio, instinto de sobrevivência. Começou a sentir as
mãos formigando, os músculos se contraindo. Sentiu medo dos espasmos. Esticou
as pernas e os braços. Alongou. Agora não, por favor. Procurou controlar a
respiração. Abria e fechava compassadamente a mão esquerda – a direita não
soltava a poltrona, nem por decreto do presidente do Supremo Tribunal Federal.
Gol
dos laranjas. Empatamos, mas já batemos um a mais. Mesmo assim, Ernesto empurra
a poltrona e faz com que ela se choque três vezes e ritmadamente contra o sofá,
comemorando. Fizera assim na última final. Era preciso repetir. Segundo gol dos
laranjas. Também convertemos. Mais três batidas com a poltrona. Pressiona os
dedos das mãos, três vezes, girando também os pés. Precisa soltá-los, aliviá-los.
Não pode surtar. Não quer surtar. Anita olha discretamente para ele, a conferir
se está bem. Parece preocupada. Os laranjas perdem a terceira cobrança – defesa
espetacular do goleiro verde água! Vai que é sua, goleirão! Vai que é sua! Ernesto
fica de joelhos, beija a camisa. Como há quatro anos. Volta rapidamente para a
posição original. Tudo igual. Gol canarinho, empate laranja, mais um amarelo,
outro laranja. Cinco batidas para cada lado. Quatro a quatro. Tudo igual. Vamos
para as cobranças alternadas. Ninguém erra. Chegamos à décima rodada. Gol
amarelinho. Poltrona jogada três vezes contra o sofá.
O
cobrador adversário toma distância. Na sala, sem tirar a mão direita do pé da
poltrona, Ernesto começa a falar bem baixinho “vai errar, vai errar, é agora,
só pode ser, vai errar”. Dera certo da última vez com o cara da camisa azul e
rabinho de cavalo. Ele olhou para a namorada. Sentiu o corpo estremecer, aquela
sensação de “a morte está passando”, como diz a crendice popular. Era um sinal.
Num átimo de segundo, seguindo os instintos e as vozes de entidades
futebolísticas, já que não estava tudo exatamente como há quatro anos, resolveu
entrar de vez naquela dança e inovar. Era a bola do jogo. Arriscou tudo. Correu
para a cozinha. Ficou de joelhos, de frente para a geladeira. Fechou os olhos. Curvou-se
para a frente. Encostou a testa no chão. Esticou os braços, na horizontal. Nunca
tinha feito isso. Aguçou os ouvidos. Ficou esperando, controlando o pênalti apenas
pelos sons.
Descobriria
depois que a última batida laranja explodira no travessão. Levantou de um pulo
só, com a festa que vinha das ruas. Disparou para a sala. Deu tempo de ver a
poltrona sendo chutada com raiva pelo irmão. O móvel foi parar no meio da sala,
pernas para cima. As portas dos quartos começaram a se abrir, freneticamente,
numa sinfonia de chaves e maçanetas. O pai voltou correndo da área de serviço
(quase derrubou a santa, cuidado, ainda tem a final). Ernesto imaginou ter
visto alguém também escapando do banheiro, chorando. Palmas, urros, um primo se
atirou no chão do corredor, chegou deslizando até a sala, de peixinho, tirando
fina da quina da parede. Todos pularam sem dó em cima dele, pirâmide humana a
amassá-lo. Não reclamou. Também não entendia nada do que gritavam. Ouviu baterias
intermináveis de rojões. Buzinas começaram a tocar. Ainda não tinha vuvuzela. Alguém
colocou o som da televisão no máximo. Identificou o Tema da Vitória. A sala
tinha virado uma verdadeira feira livre. As arquibancadas – nada de padrão FIFA
– estavam novamente lotadas. Exultantes.
Quando
conseguiu recuperar os sentidos, se livrar dos abraços, camisa ainda mais
ensopada, apertou a coluna que latejava. Correu para ver o replay, a cobrança
perdida pelos laranjas, que classificou os amarelos para a final. As mãos não
formigavam mais. Apalpou o rosto. Massageou as bochechas. É, estou bem. Tudo
certo. Será que aprendi a controlar aquela porcaria?, pensou. A dúvida fez com
que se lembrasse de Anita, que continuava sentada no banquinho, sozinha, olhando
fixamente para a TV. Já tendo voltado do inferno, novamente em sua rotação
normal, procedimento operacional padrão, Ernesto tinha plena consciência da
bobagem que havia feito. Sem jeito, aquela clássica expressão de “preciso
reparar a cretinice” escancarada no rosto com um baita sorriso amarelo, foi
lentamente até a namorada, de joelhos. Você é pé quente! Dá sorte! Vamos ver
juntos a final! E eu nem passei mal... Me abraça?
Ela
só levantou a sobrancelha esquerda, sem alterar o tom de voz. Foi firme.
-
Vamos conversar lá fora.
-
É... Você viu, eu nem passei mal.
Bonito. Um gol, diria eu: Golaço.
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