terça-feira, 6 de agosto de 2013

MARIA RESOLVEU CONTAR A HISTÓRIA DE JESUS

O ponto de vista é original - Maria, mãe de Jesus Cristo, revela sua versão privilegiada da história e narra, em primeira pessoa, acontecimentos marcantes da vida do filho, como as bodas de Canaã, o julgamento comandado por Pilatos e a crucificação no monte Gólgota. Lançado pela Companhia das Letras, "O testamento de Maria", romance do irlandês Colm Tóibín, coloca as duas mãos num vespeiro e compra briga: para a protagonista que o escritor idealiza, Jesus, nada divino e mortal como qualquer um de nós, foi homem de bons princípios, mas deixou-se levar pela soberba e esteve acompanhado por companheiros pouco equilibrados. "Meu filho reuniu desajustados, embora ele mesmo, apesar de tudo, não fosse um desajustado, ele poderia ter feito qualquer coisa, poderia até ter sido tranquilo, também tinha essa tão rara capacidade de poder ficar a sós sem dificuldade, podia olhar para uma mulher como sua igual, e era grato, bem-comportado, inteligente".

Com a certeza de que Jesus não era filho de Deus - e ninguém melhor do que ela para negar essa condição -, Maria rejeita os milagres atribuídos a Cristo. Sabe que tais feitos são amparados pela necessidade de garantir condição superior a quem liderava multidões, sendo depois disseminados pela imaginação popular, pelas tradições orais. Como não reconhece no filho a fonte de nova religião, dá-se o direito de frequentar templos não cristãos. "Lembro-me então de me voltar e ver pela primeira vez a estátua de Ártemis (deusa grega da caça); no instante em que olhei fixamente, a estátua irradiava constância e generosidade, fertilidade e graça, talvez beleza, sim, até mesmo beleza (...) Com o dinheiro que havia poupado, comprei de um dos prateiros uma pequena estátua da deusa, que me fez sentir melhor. E a escondi".  

Depois de todo o martírio que terminou com a trágica morte do filho, Maria vive atormentada, escondida em Éfeso, sob responsabilidade de dois protetores - um deles é provavelmente João, apóstolo e evangelista. A ele, na cruz, Jesus teria dito, de acordo com relato bíblico: "homem, eis aí tua mãe; mulher, eis aí teu filho", referindo-se a Maria. Ela estabelece com a dupla de "anjos da guarda" um jogo cínico de conveniências: já na velhice, precisa deles para comer e dormir, para ser amparada e sentir-se segura, longe do alcance dos inimigos do filho; os benfeitores cobram dela que conte com detalhes lembranças da relação com Jesus, aproveitadas na elaboração daqueles que viriam a ser os evangelhos. Desafiada, não hesita em mostrar sua face humanamente violenta. Quando um dos protetores ousa tentar sentar na cadeira que teria sido de Jesus, e que Maria preservava vazia num canto da sala desde a crucificação de Cristo, ela faz uma ameaça nem tão velada. "Rapidamente encontrei a faca afiada, segurei-a e toquei na lâmina. Não a apontei na direção deles, mas meu movimento para pegá-la havia sido tão veloz e repentino que lhes chamou a atenção. Sorri para eles e depois olhei para a lâmina".

Em tempos de intensa turbulência política e de conflitos religiosos, das tensões entre judeus e romanos e de ameaças de revoltas populares, Maria sabia que, ao assumir a condição de líder das massas, Jesus corria grande perigo. Ela foi até o casamento em Canaã fortemente disposta a convencer o filho a abandonar o enfrentamento com os poderosos do Império e voltar para Nazaré, na casa da família. Já era tarde. Encontrou um Cristo irredutível, ouvidos moucos aos apelos da mãe, talvez entorpecido pelos afagos do povo que imaginava que iria defendê-lo se fosse preciso. Julgava-se inalcançável, ninguém me pega. "Compreendi que não tinha perdido a oportunidade de tirar meu filho dali, compreendi que nunca tinha tido tal oportunidade e que estávamos todos condenados". Resignada, acompanha, disfarçada e perdida na multidão, o julgamento de Jesus. Sofre horrores, sem poder gritar. Mas não fica ao pé da cruz até o final. Escapa dali antes do último suspiro de Cristo. "Mas vou dizer isto agora porque precisa ser dito por alguém ao menos uma vez: eu fugi para me salvar. Fugi por esta única razão".

Durante todo o livro, Maria é tomada pela dúvida - o que contar? Para quem e como narrar? É uma mulher solitária, vulnerável, com idade já bem avançada, mais perto da morte, tomada pela angústia, e a recordar acontecimentos dolorosíssimos. A força literária do romance vem um tanto desse exercício de retomada do passado. As memórias, afinal, são os fragmentos que somos capazes de reunir. São inevitavelmente reconstruções, com perdas e ganhos, lacunas e exageros, recordações de fato e brancos totais da (na) mente. Como então confiar plenamente naquilo que está sendo contado por Maria? Como consequência (e aqui vai percepção minha, não necessariamente motivação do autor), e também reconhecendo que falamos de distintas propostas literárias e de tempos diferentes, a obra sugere que essa mesma conexão crítica, ressabiada e de desconfiança deva ser estabelecida com outros relatos que tratam da vida de Cristo, sem adotá-los, a priori, como o estatuto da inquestionável verdade.

Para além das polêmicas e provocações religiosas, "O testamento de Maria" é uma história bem contada, sem firulas ou recursos literários rebuscados, conduzida pela voz angustiada de uma protagonista cravada por contradições, que procura escapar de um discurso hegemônico que já começava a ser forjado - "Jesus é o filho de Deus". Sensibilidade ímpar, Tóibín consegue alcançar a dor de uma alma feminina em frangalhos. Parece que não há intermediários entre escritor e leitor - Tóibín é Maria. A simbiose confere autenticidade e autoridade ao que se lê. O escritor é ainda artista com admirável capacidade de construção de cenas, descritas em mínimos detalhes. O leitor, espectador privilegiado do calvário de Jesus, é quase transportado para as vielas e casas de uma Palestina remota.

A crítica especializada parece também ter gostado do livro: "O testamento de Maria" é um dos finalistas do Man Booker Prize de 2013. O vencedor será anunciado em 15 de outubro.

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