segunda-feira, 20 de julho de 2015

NA CASA DO VÔ E DA VÓ

Pode dormir tarde, bem tarde, mas muito tarde mesmo, madrugada, se aguentar, no limite máximo das energias (inesgotáveis) das crianças, só mesmo quando elas capotam na cama, com ou sem pijama, às vezes sem escovar os dentes, definitivamente vencidas pelo sono e pelo senhor cansaço nosso de cada dia. "Boa noite, durma bem, sonhe com os anjos, meu netinho, minha netinha". Cobertor e beijos. Pode brincar no computador, depois no vídeo-game, em seguida no celular e finalmente no tablet por horas a fio, sem tempos combinados pré-estabelecidos, jogos, mensagens, vídeos, uatzap e fanfics em cascatas, um atrás do outro, sequência infinita, alegria virtual cibernética da criançada. "Tudo bem, só mais um pouquinho, hein". O fim desse tantinho chega nunca. Nunquinha de marré de si. "Nossa, passou todo esse tempo, nem percebi. Só mais um pouquinho, hein". A nave segue. Pode até desinstalar programas usados pelo vô e pela vó, aquele aplicativo do banco a quem se recorre na hora de pagar contas, por exemplo, a lista de sites favoritos, vale até perder o documento em word que precisa ser enviado com urgência, numa boa, sem estresse ou chateação. "Tudo bem, querido , querida, foi sem querer, tenho cópia do texto, depois a gente busca e instala a porcaria do banco de novo, é super fácil". Pode esparramar papeis e mais papeis e lápis de cor e canetas coloridas e giz de cera e réguas pelo chão da sala, pelo quarto, na cozinha, no corredor, no banheiro, para desenhar, rabiscar, valendo até mesmo pedir para o vô ou para a vó sentar e ficar imóvel, posando para o (a) artista, "calma, não se mexe, vai ficar bonito, vou te desenhar, você vai gostar". O vô e a vó obedecem, comportados e lisonjeados, paradinhos como estátuas, achando tudo lindo, "meu neto é um artista, minha neta é um talento, puxa, muito bem, super bacana, ficou ótimo". Pode transformar a casa em verdadeira brinquedoteca quase profissional, bonecas, carrinhos, botões, quebra-cabeças, jogos de trilhas, dados, tudo ao mesmo tempo e misturado, sem deixar espaço nem para sentar no sofá, sem muita força, compromisso ou preocupação para guardar toda essa tranca depois. "Deixa, vá lá lavar as mãos e tomar um lanche, a gente guarda bem rapidinho". Pode até jogar bola dentro do apartamento, dribles da vaca e carrinhos em pés de cadeiras e portas atuando como gols, "só cuidado para não escorregar e se machucar. Ah, sim, atenção com a cristaleira e as taças de vinho". Pode desmanchar o cabelo do vô, fazer penteado maluco na vó, destrambelhar tudo, tudinho, cada fio e todos os fios, para então morrer de rir de como ficaram os dois, que continuam achando tudo um número, enorme diversão. Pode pular trocentas ondas no mar (mesmo com a água geladíssima), fazer buracão na areia, largar o buracão na areia para voltar ao mar, só mais um mergulhinho, pedindo para a vó ou o vô tomar conta do buraco e não deixar ninguém mexer nele, "volto já". Pode comer brigadeiro, leite condensado de colher, batata frita, pastel, sorvete de todos os sabores, chocolate ao leite, chocolate branco, chocolate crocante, nutella (o pote inteiro de uma vez), pipoca, paçoça, doce de leite, cachorro-quente, lembrando, claro, que "em algum momento vamos comer também uma fruta, uma verdura, sua mãe recomendou, seu pai reforçou, a gente pensa nisso depois". Pode mudar o canal na televisão bem na hora da novela, do telejornal, sem pedir licença, para ver aquele desenho imperdível, o jogo de futebol decisivo ou aquela série que hoje tem um capítulo sensacional. "Essa novela é muito chata, está paradona, nada acontece, nem estamos acompanhando, a gente vê o jornal mais tarde. Sentem aí no sofá. Cabemos todos. Vamos ver juntos". Pode ouvir música alta, sem fone de ouvido. "Meio barulhenta essa, né? Mas pode deixar, não conhecia". Na casa do vô e da vó tem carinho, colo, abraço, beijo, afagos, histórias, muitas histórias, livros de aventura e de terror, Mônica e Cebolinha, Mario de Andrade e Malala, Bela Adormecida e Elsa de Arendelle, Vingadores e Batman, Rei Leão e Mogli, conversas divertidas e papos sérios sobre a vida, conselhos e avisos, memórias sobre São Bernardo e Salvador, experiências- referências, exemplos, lições, dicas, aconchego, porto seguro e sossego para as almas, "vô, conta de novo aquela da sua escola quando você era criança e tinha uma professora brava? E os cavalos da ditadura?", "vô, quando você veio da Itália? E o Mussolini?", "vô, e o livro que você traduziu? Vamos ao parque no domingo?", "vó, sério que você escapava das aulas para ver os jogos pan-americanos? Morava numa chácara?", "vó, por que você quis ser jornalista? E os militares da censura?", histórias que não acabam mais, curiosidade, raízes e identidades múltiplas. Na casa do vô e da vó de vez em quando tem bronca também, porque afinal de contas até mesmo os limites infladíssimos de vó e de vô às vezes são ultrapassados. Irmão briga com irmã. Primo discute com prima. É preciso intervir, apartar. Mas é raro, muito raro, exceção da exceção, de vez em nunca. Aquela bronca firme, legítima, necessária - e ouvida com atenção e respeito. Obedecida. Sem levantar a voz. Pito manso, quase sussurrado e pedindo desculpas. "Não foi legal. Exagerou. Preste mais atenção. Não faça mais isso. Combinado? Agora vai brincar". Dorothy, as crianças aqui te adoram, mandam beijos e acham mesmo que nosso lar é especial. Magicamente, no entanto, ao lado de bruxas, leões, espantalhos e homens de lata, encantadas com o arco-íris, elas pedem para dizer a você que não há lugar como a casa do vô e da vó.

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