sexta-feira, 10 de julho de 2015

BOLEIRO COM DATA DE NASCIMENTO AVANÇADA

Era só driblar o goleiro. 

Nos tempos de menino, corria sozinho pelo quintal da chácara do meu avô em São Bernardo, fazendo as vezes de goleiro, de atacante, me atirando no chão para espalmar lindamente um pênalti, arriscando uma falta indefensável no ângulo, em partidas emocionantes que só acabavam quando vinha lá de casa um "por hoje já chega", ainda brincava com o perigo e enrolava mais alguns minutinhos, valiosos acréscimos determinados pelo árbitro, que também era eu, até que a voz materna tornava-se mais grave e assertiva, tudo bem, logo vinha o almoço de domingo em São Paulo, quintalzão em ladeira do outro vô, pelada com os primos bicudinhos só tinha hora para começar, a briga era para ver quem atacava para baixo, todos talhados na arte boleira única de driblar a pintangueira carregadinha e as árvores de araçá que atuavam como zagueiros (e que cometiam o disparate de minar aqueles ladrilhinhos vermelhos com frutas esbagaçadas que caíam de maduras e nos faziam escorregar), saíamos de lá fedendo a ganso, era o que diziam pais e tios, mãos imundas e rostos pretos, almas saciadas de gols, gingas, dribles e tabelas marotas, semana nem bem começava e lá vinham as diárias peladas na escola, não só as oficiais, nas quadras, interclasses, partidas memóráveis contra outras escolas, mas sobretudo os torneios paralelos e aquelas pelejas que aconteciam em corredores estreitíssimos, com tampinhas de garrafa e copinhos de danone fazendo as vezes de bola, a inconveniente da maldita campainha berrando e determinando o reinício das aulas, a gente sempre achava que dava mais um pouquinho, vai, rápido, não pára, só mais um lateral, primeira bola fora, o professor não vai chegar na hora, depois subíamos as escadas voando, de três em três degraus, esbaforidos, cabelos malocados, calças resagadas, camisas imundas, sorrisos nos rostos, quem ganhava enchia o saco de quem perdia, descansar para quê?, a gente jogava também nas casas dos amigos, na sala do apartamento, sem dó, a mesa fazendo as vezes de gol, bolinhas de tênis estourando nas estantes, na televisão, nas noites de sextas-feiras e nos finais de semana, o bicho pegava nos campeonatos do clube, toma ônibus Jardim Colombo lotado para chegar lá, trânsito dos infernos que não anda, Cardeal Arcoverde travada, avenida Rebouças parada, mochila com unifome nas costas esbarrando e levando esbarrões e xingos, frio de lascar num campo de terra batida, meus pais torcendo e mandando ver nos conhaques, era o único jeito de espantar a friaca, eu jogava de meia direita, avançando para ajudar o ataque e recuando para compor a marcação, correndo o tempo inteiro, noventa minutos, cansaço?, quem disse?, fôlego para jogar umas duas ou três, seguidas, sem contar as férias em São Vicente, quando a bola rolava com os amigos e inavdia a madrugada, golzinhos feitos com pedras e chinelos, pisando firme na areia fofa ou naquela mais batida, à beira-mar, pés fazendo bolhas e ardendo a cada chute descalço, mas quem disse que a gente se importava?, segue o jogo, a parada era forte também em Serra Negra, valia a quadra municipal, o campo improvisado num gramadão atrás do prédio ou as quatro linhas desenhadas no meio da rua, todas tortas, um lado do campo maior que o outro, e quem se importava, jogávamos ferozmente, horas a fio, partidas duríssimas, rivalidades à flor da pele, as panelinhas, os escretes, eu e meus irmãos, como se fosse final de Copa do Mundo, e era quase isso, mesmo depois de baladas, sem conseguir esconder a ressaca, estômago embrulhado virando e roncando, a gente arrancava o segurança da cama às oito da matina do domingão para abrir a quadra alugada, o nível técnico, esperado, natural, era sofrível, reflexos atrasados, trombadas, lances bizarros, sem problemas, o legal era correr, correr, correr, jogar freneticamente, verdade, fôlego nunca me faltou, vontade, muito menos, e alguma habilidade também sempre tive.

Ontem, quarenta e três primaveras nas costas, joelhos com tendinites crônicas, hérnias de disco e coluna avariada, quadrinha sintética com os amigos, em dois lances os zagueiros já tinham ficado para trás, a cabeça raciocinou rápido e deu a ordem, vai, finge que vai para a direita e sai para a esquerda, corta rápido, rabisca, dá mais dois toques na bola e chuta, você sempre fez isso, é sua marca, você não esqueceu, é fácil, agora, e corre para o abraço.

O corpo refugou. Fingiu não ouvir o comando mental. Teve medo danado de fazer o movimento de rotação, de soltar aquela gingada característica e fatal e sofrer com as dores. As costas travadas. O inchaço nos joelhos. Uma semana infernal de compressas de gelo e bolsas de água quente.

Era só driblar o goleiro.   

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