"Meu jogo de Copa inesquecível"
Ricardo Paes Carvalho, jornalista
Tá cheia, como sempre. Afinal,
quem gosta de lavar louça? Absolutamente ninguém. Mas eu gosto. Trata-se de uma
boa terapia. Aquela esponja molhada, cheia de graça, com o sabonetão, geralmente enquadrado em um recipiente plástico e que, não importa a cor, termina por fazer boa espuma. Espessa, grossa, capaz de tirar toda a
gordura de cada utensílio ali arremessado. Vidro, ferro, madeira, plástico,
resto de comida, até cuspe e cinza de cigarro, às vezes. Uma verdadeira sopa
escura e que ninguém quer nem mesmo pensar em colocar a mão. Pois eu ponho.
Todo dia. Então, quando hoje gritam “não vai ter Copa”, é possível entender,
não é verdade?
Estava eu com o caneco na mão, ou
seja, lavando louça, quando meu camarada ligou fazendo o convite para escrever
sobre a Copa, evento que começa em menos de dois meses corridos. Cara, eu gelei,
né? Vale lembrar que esse amigo de fé, apesar dele ser ainda mais ateu que eu, foi
meu professor, e dos melhores! Grande mestre. Por isso pensei: vou falar
daquilo que eu entendo. Copa e cozinha.
Acontece que esse irmão camarada,
além de grudar lambe-lambe de foice e martelo, é um puta de um boleiro. Para
quem não o conhece, é daqueles com um físico franzino, mas uma cabeça que é um
trovão. Talvez daí a projeção com a bola, que brilha nos seus pés. Além de
saber tudo de bola, pelo simples fato de ter nascido assim, nossa única
semelhança de nascimento é que ambos nascemos pelados, mas ele, com certeza já
batia bola com a placenta. É o cara que
assiste até terceira divisão, se empolga nos debates de boteco quando o velho
escrete está em pauta, levanta, articula os braços, arregala, por trás de seus
característicos óculos, aqueles olhinhos azuis irrequietos, saltitantes, sempre
percorrendo tudo e todos, enfim, este é o Chiquinho Bicudo.
Um gigante, por quem tive o
privilégio de ser orientado em um trabalho de iniciação científica e no de conclusão de curso também.
Fizemos uma revista sobre educação e histórias em quadrinhos, enfim, H.Q. Com a parceria de um maninho de coração, Diego.
Colocamos em texto corrido o que já foi muito fatiado, afinal, a HQ fatia sua
história. Vale lembrar que Chiquinho também era meu bisavô. Fazendeiro, de
Espírito Santo do Pinhal. Conheci também. Foi pouca coisa, mas o suficiente
para ter um vínculo afetivo. Ele chamava seus netos e bisnetos de “seus filhos
do diabo”, e ria com a gente. Referências.
Mas vamos à Copa. Putz, são muito
limitadas as minhas lembranças, bem menos do que as memórias de nosso nobre
anfitrião Chico. Mas farei um esforço aqui. Assim como os quadrinhos, minhas lembranças da
Copa são todas recortadas, editadas nesse meu HD interno. Creio que isso se
deve à minha infância e tenra juventude bem longe deste esporte bretão. Meu
pai, um cardiologista pernóstico e ranzinza, embora saiba tudo da medicina
clínica, coração, teatro, cinema, arquitetura, macramê, pintura, música, dança
e escultura, sempre teve uma espécie de asco ao esporte mais popular de nosso país,
e claro, do mundo. Tinha orgulho em dizer que seus filhos (somos em quatro
irmãos homens) não batem bola por aí. Besta. Pois digo também com orgulho que
este autor que vos escreve aqui joga bola há mais de dez anos com muitos amigos
queridos. Ganhei até apelidos carinhosos, como Boneco de Olinda, jogador de
jogadas espíritas, os quais demonstram realisticamente um carinho enorme e
inversamente proporcional ao jogo, quando a bola chega aos meus pés.
Nesse meu emaranhado de memórias,
o primeiro fio de lembrança que puxo é o da Copa de 82, é isso? (Peço a licença
de dizer que não me responsabilizo por datas e nomes de jogadores corretos, sou
péssimo nisso, mas me esforçarei na descrição e contextualização para que
vocês, que sabem de tudo, possam localizar a resposta certa, combinado?). Devia
ser por aí, pois estava no antigo ginásio do colégio. E lembro como se fosse
hoje, a garotada comprando caixas e caixas de chicletes, só para pegar a
figurinha dos jogadores. Eu, fissurado por chiclete na infância, me contorcia
de dó ao ver tanto chiclete espalhado no chão no pátio. Era uma pena mesmo.
Confesso que em alguns momentos, escondidinho, ia lá, pegava alguns, dava uma assopradinha,
e mandava pra dentro. Sem medo de ser feliz. Era engraçado. É, tirava um sarro
daqueles meninos engomadinhos de um colégio legal, mas cheio de firula, e que
de Santo só tinha o nome.
Mas a Copa de que mais lembro foi
aquela maldita em que o Paulo Rossi nos freleu.
Teve a do Zidane também. A mão de
merda do Maradona, tão canalha quanto sabia jogar bola. Mas sabe o que acontece? Não olho o futebol como estratégia, mas sim como complemento, um momento
festivo, social. Como bem disse o pai de uma amiga minha, “o futebol é um reflexo
da sociedade brasileira”. Grande, seu Fernando.
Lembro dos encontros dos amigos, com a
família, as brincadeiras. Aquela energia boa em saber “Na casa de quem vamos
assistir a Copa hoje?” Por exemplo, as dos anos oitenta, apesar de lembrar mais
das olimpíadas do que das copas, lembro de assistir com minha família, com os
amigos, comendo pipoca, fazendo bagunça. Outra delas foi a de 1994. Bom, vocês
com certeza lembram. Nessa Copa eu tinha descoberto o circo. Era o Circo Escola
Picadeiro, que ficava ali na esquina da Cidade Jardim, colado com o Rio
Pinheiros. Assisti a vários jogos no telão montado no meio do picadeiro. Zé
Wilson, o dono, era trapezista, e dos bons. Era de uma família tradicional
chamada “Os Mouras”. Foi quem me ensinou
a magia do trapézio de voos. Cheguei a ter a manha de desenvolver todas
as aptidões circenses ali, do trapézio ao malabares, pirofagia e, claro, perna
de pau. Talvez essa habilidade eu deva ter trazido ao futebol também.
Zezão, com sua pança
enorme e que conhecia o corpo como ninguém, contava que tinha conseguido aquele terreno numa
doação do Guarnieri, aquele que escreveu “Eles não usam blacktie”. Ficou ali
por décadas, até que a prefeitura, não sei qual, tomou o que já era do povo.
Pois além do circo, tinha 3 campos de futebol, jogos importantes da várzea.
Lembro até do bar que ficava entre o circo e os campos. Boteco chulé mesmo, mas
fazia o Zezão largar a aula de trapézio, deixando tudo na nossa mão, e ficava
lá, a tomar umas cachaças. Lembro de ir lá buscá-lo uma vez e, chegando, vi que
no bar tinham vários passarinhos na gaiola, de rolinha a sabiá. Estranhei, mas
precisava levar o Zé pro circo, pois só assim conseguíamos armar a rede de
segurança para iniciar a aula. É uma pena isso tudo ter terminado. Mas
persiste, com os alunos que, hoje, tornaram-se professores.
E com o tempo, acabei caindo de
paraquedas em dois grupos de futebol. E como já diriam os amigos que me
aguentam na peleja semanal, continuo um perna de pau, mas até que atrapalho bem os atacantes adversários, ali na zaga. Temos o nosso religioso futebol todos os sábados, lá na
quadra do Ipiranga. É aí também que aprendo um pouco mais sobre essa nobre arte
com a qual nunca tive afinidade. Como já disse, sou de uma família de 4 irmãos,
cujo pai se orgulhava em dizer que seus filhos não batem bola, que é coisa de
ralé, de povão. Eu sempre discordei e por isso estou aqui, escrevendo um texto
sobre a Copa, mais que isso, sobre o futebol e tanta coisa boa que ele me
ofereceu.
Agora, essa Copa, bom, como
direi, espero que todos se divirtam, sim, torçam muito, reúnam-se, gritem,
esperneiem, cornetem deus e o mundo, pintem muros, postes de luz, avenidas
inteiras, pendurem bandeirinha, xinguem a televisão, façam “catiça”, cruzem os
dedos, usem uma mesma camisa dias a fio, rosnem, estourem rojões, bombinhas,
traques, arrebentem com o sofá, quebrem cascos de cervejas (desde que não seja
na cabeça de ninguém, né), tomem um porre, ufa... afinal, é sim um momento de
celebração, e como todo ritual, deve ser feito em conjunto, em comunhão. Assim,
desse jeitinho mesmo, como eu e meu camarada estamos fazendo aqui.
Agora deixa eu
voltar pra cozinha que a pia já está cheia de novo. Pelo menos ali, também
tenho um companheiro que dá voz a tudo isso que foi dito, o radinho de pilha.
Mas esta é outra história (que saudade me dão as estórias nesse momento).
Bola na rede e beijos pra todos.
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