segunda-feira, 23 de dezembro de 2013
FÉRIAS. UM BRINDE AO ANO NOVO!
E QUE TAL APROVEITAR O JUSTO E MERECIDO DESCANSO PARA COLOCAR AS LEITURAS EM DIA?
A REVISTA GIZ, DO SINDICATO DOS PROFESSORES DE SÃO PAULO, PREPAROU UM ESPECIAL COM 22 SONORAS DE ESCRITORES BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS, QUE FALAM SOBRE SUAS OBRAS (ROMANCES) RECENTEMENTE LANÇADAS E REVELAM AINDA DETALHES DE SEUS PROCESSOS CRIATIVOS.
PARA OUVIR OS PODCASTS, CLIQUE NO LINK - http://revistagiz.sinprosp.org.br/?p=4818
O BLOG VOLTARÁ À PROGRAMAÇÃO NORMAL EM MEADOS DE JANEIRO.
ABRAÇOS E ATÉ LÁ!
MUITO OBRIGADO E EXCELENTE 2014 PARA TODOS!
sábado, 14 de dezembro de 2013
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
FILHOTES DA DITADURA
O muro naquele trecho era baixo, pouco mais de um metro. Não tinha nem o antiquado e carcomido arame farpado com cacos de vidro nem a cerca eletrônica com câmeras de vídeo, parafernália moderna de segurança tão comum nos prédios de luxo da cidade. Alto, esguio, barba por fazer, uns vinte anos, André vestia camiseta preta e calça de moletom da mesma cor. Joana estava de cabelo preso, agasalho também preto, com capuz, mangas arregaçadas, bermuda jeans, tênis colorido e sem cadarço. Lino, o mais velho, perto de 40 anos, carregava uma mochila nas costas (parecia pesada) e, coincidência, trajava camisa preta de gola, mangas longas. Conversavam em tom bem baixo, quase sussurrando, como se não quisessem ser ouvidos. Eram quatro da manhã. A avenida estava praticamente deserta. Olharam para a direita, miraram a esquerda. Tudo certo. Num aceno de cabeça de Lino, movimentos ensaiados e sincronizados, pularam o muro, sem dificuldades.
Começaram a caminhar com passos largos, ritmados, deixando para trás túmulos imponentes e garbosos de várias famílias quatrocentonas paulistanas. Contornaram a capela, paredes amareladas já descascando. Joana fez o sinal da cruz, três vezes. Beijou o crucifixo preso a um cordão enrolado no pescoço. A missão daquela madrugada nem de longe lembrava os agitados dias de junho, quando tinham marcado presença nas manifestações que chacoalharam a capital paulista, sempre vestidos de preto, a queimar bandeiras vermelhas, dos movimentos negro e homossexual e a gritar "sem partido, minha única bandeira é a do Brasil, comunismo nunca mais!". Na escuridão silenciosa, André seguia um pouco atrás, ressabiado, um frio na barriga, tentando não aparentar medo. Não gostava dessa coisa de estar tão perto dos mortos. Tinha um nó na garganta, a sensação de estar sendo vigiado. Lembrou das histórias de fantasmas que ouvia da mãe, quando criança. Quase ao mesmo tempo, os três viraram à esquerda, estreita e longa alameda com jazigos ainda mais suntuosos dos dois lados, a marcar o caminho. Avistaram, barranco abaixo, um antigo casarão.
Lino fez sinal de positivo, confirmando satisfeito - 'é ali mesmo'. Desceram o escadão correndo, de dois em dois degraus. Plano seguido à risca, tudo previamente combinado, Joana deu a volta no casarão, certificando-se de que estavam realmente sozinhos. Sorriu. Área limpa. André deu uma voadora e meteu o pé na porta de madeira, que não ofereceu resistência e se abriu, rangendo. Lino já tinha retirado da mochila duas marretas. Joana agora segurava uma lanterna que timidamente iluminava o ossário - o suficiente para que, naquela penumbra, uma a uma as gavetas fossem sendo estouradas e violadas, a marretadas. Dezenas delas foram destruídas, sem dó ou pudor, com as ossadas sendo violentamente atiradas no chão, com raiva e adrenalina a mil. Lino e André espumavam, em êxtase. Tinham sangue nos olhos. "Filhos da puta!", praguejou o mais velho, fazendo questão de pisar em crânios e fêmures, agora todos espalhados e misturados, sem os pequenos cartões com informações preciosas, como datas e locais de origens. "Terroristas de merda, vergonha da nação!". Acertou um chute num crânio, que se espatifou na parede. Cuspiu em um pedaço que foi parar perto da porta, já do lado de fora do casarão. Elétrico por conta do comportamento do amigo, André, ensandecido, continuava distribuindo marretadas nas gavetas. "Odeio todos vocês. Escória do Brasil. Vermelhos do caralho". Joana continuava alerta, na entrada do ossário, montando guarda, uma picareta na outra mão, atenta a qualquer movimento estranho ou presença indesejada.
A invasão demorou pouco mais de dez minutos - e deixou fragmentos de madeira, gesso, cimento, sacos plásticos e ossos por todos os lados. Escreveram numa das paredes externas do ossário: "Viva a ditadura!". Em mais um aceno de Lino, guardaram as ferramentas na mochila e saíram correndo. Refizeram o caminho - o escadão, a alameda com os túmulos grandes, a capela, o muro. Ofegantes, já do lado de fora do cemitério, tarefa cumprida, respiraram aliviados. "Vamos beber no boteco ali da esquina, até amanhecer. Agora não passa ônibus. Merecemos. Precisamos relaxar e comemorar. Deu tudo certo", convidou Lino. Os três se abraçaram.
**************
Olhou pela janela da frente. A casa estava cercada. Tirou a arma da cintura - um velho revólver, que já tinha travado numa operação de invasão a um banco - e decidiu tentar escapar pelos fundos. Não deu tempo sequer de chegar ao quintal. Ouviu o estampido seco, rápido. Sentiu dor lancinante, perto do joelho. Tombou, já sem muita consciência de onde estava. Os chutes vieram de todos os lados - na cabeça, nos ombros, no estômago, no joelho ferido. Desmaiou. Foi encapuzado e arrastado para uma veraneio cinza, placa fria.
**************
- Fala, comuna safado! Quem mais participou do roubo ao banco do Centro?
Ele era um farrapo humano, ferimentos espalhados pelo corpo, hematomas, dentes quebrados, ouvidos sangrando. Não conseguia falar. Mesmo que quisesse. Pensou em soltar informações falsas, para despistar, ao menos ganhar tempo, parar de tomar porrada. Não articulava as palavras. Começou a se contorcer, freneticamente. Choques elétricos. Um meganha chegou por trás e deu-lhe um murro na nuca. Curvou-se. Na volta, sem conseguir medir ou controlar os movimentos, bateu violentamente a cabeça na parede. Mais choques. Mijou. Cagou. Gritou. Palavras desconexas, desesperadas. Ninguém ouvia.
- Quero nomes, filho da puta. Me dá os nomes dos canalhas malditos! Todos eles. Você sabe. Você sabe! Fala, seu merda!
Jogaram água nele. Aumentaram a voltagem dos choques. Com um alicate, lentamente, arrancaram-lhe as unhas dos pés. Uma a uma. Outro meganha deu última tragada num cigarro, para depois apagá-lo no peito de Cesar, codinome Camilo, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e integrante da célula de mobilização e comunicação da organização comandada pelo temido Carlos Marighella, inimigo número um da ditadura civil-militar brasileira, e que tinha sido friamente assassinado em emboscada na Alameda Santos alguns dias antes.
Arrastaram-lhe para perto de um enorme tanque. Água imunda, barrenta. Fétida. Foi puxado pelos cabelos - e mantido debaixo d'água por quase um minuto. Debateu-se, em desespero. Tentou respirar. Engoliu água. Vomitou.
- Deixa de ser burro, animal. Ninguém vai te ajudar. Acabou para vocês. Vamos pegar todos, um por um. Mas antes você vai falar.
A cabeça foi novamente mergulhada no tanque. E mais uma vez. Outra. Quase sem tempo para que ele pudesse recuperar o fôlego. E assim foi por mais de meia hora. Sentiu o coração estourar. O corpo inteiro estremeceu. Ainda pode sentir um cabo de vassoura sendo enfiado no ânus, ainda com a cabeça na água. Tentou buscar o ar, de novo. Não conseguiu. O corpo foi amolecendo, aos poucos. Lentamente. Puxou o ar. Não soltou. Já estava morto quando tiraram a cabeça dele do tanque. Era uma massa sem forma de órgãos. Tinha sido brutalmente torturado, durante três dias. No chão, desfalecido, sem vida, ainda levou pontapés. Urravam de raiva. O ódio era maior ainda, porque Cesar não tinha falado.
- Filho da puta, filho da puta. Canalha. Não falou. Burro. Vai queimar nos infernos, terrorista da porra. Um a menos! Viva o Brasil!, gritou o chefe dos torturadores, que ordenou que fosse seguido o procedimento operacional padrão. Cesar deveria ser enterrado como indigente, em vala clandestina.
- Vocês sabem o que fazer. Não deixem pistas. Não digam nada aos parentes. Será mais um que sumiu. Não vai fazer falta.
Cantaram em coro o hino nacional.
*********************
Acordou estranhamente cedo naquela sexta-feira, emenda do feriado de Finados. Ainda estava tocada, abalada. O dia anterior tinha sido emocionalmente intenso - participara de um ato político que homenageara os mortos e desaparecidos pela ditadura e que exigia ainda que as ossadas agora guardadas no cemitério do Araçá, região oeste de São Paulo, fossem finalmente identificadas. Há fortes suspeitas de que algumas delas possam ser de militantes assassinados pelo regime de terror. Na cama, pelo celular, acessou o noticiário da internet. Deu um grito horroroso. "Ossário é invadido e violado no cemitério do Araçá", dizia a manchete de um dos portais.
Jogou longe os lençóis, tropeçou nos chinelos. Trocou-se em menos de cinco minutos. Nem tomou café. Precisava ir correndo ao cemitério. Uma das ossadas guardadas naquelas gavetas criminosamente arrebentadas a marretadas durante a madrugada provavelmente era do pai dela. Cesar. Ou Camilo. Camila - evidente homenagem à alcunha de guerra do militante da ALN - tinha só dois anos quando o pai foi preso e trucidado pela ditadura. Desde aquele longínquo dezembro de 1969, a família peregrina incansavelmente, em busca de informações sobre o paradeiro do companheiro de Marighella. Sempre esbarraram em negativas, falsas promessas, pistas desencontradas, registros fragmentados, ausência total de vontade política. Sofrimento sem fim.
As esperanças renasceram quando a vala clandestina do cemitério de Perus foi descoberta e aberta, em 1990, na administração da prefeita Luiza Erundina - que, aliás, também participara do ato político no Araçá, no dia de Finados. Mas a frustração que veio em seguida talvez tenha sido maior ainda. As ossadas passaram anos empacotadas e empilhadas num canto de um galpão quase abandonado na Universidade Estadual de Campinas, até serem transferidas para o Araçá. Mesmo depois de quase trinta anos da redemocratização do país, os familiares continuam lutando para que as ossadas sejam examinadas e identificadas. Permanecem firmes, embora às vezes a agonia a a sensação de abandono e fracasso sejam quase insuportáveis. Camila não se conforma - lembra que já passamos pelos governos do sociólogo uspiano, do líder operário do ABC e da militante presa e torturada. Em graus e situações diferentes, os três foram vítimas da ditadura. E nenhum deles, avalia, enfrentou de fato o desafio de exorcizar os fantasmas dos anos de chumbo. Nenhum deles garantiu o amplo direito à justiça. à verdade e à memória.
Naquela manhã de sexta-feira, Camila torcia para que o metrô andasse muito mais rápido. Não conseguia esconder a tensão. Mexia as pernas, batia os dedos na capa do livro que carregava (nem pensar em se concentrar na leitura de "Barba ensopada de sangue", romance premiado de Daniel Galera), olhava de um lado para outro do vagão. Tinha medo brutal de ter perdido os últimos vínculos materiais que poderiam ligá-la ao pai. Tinha as memórias, as histórias narradas pela mãe, pelos avós, pelos amigos de militância. Tinha fotos do pai com 22 anos, pouco antes de ser preso e assassinado. Mas queria o corpo. O direito ao luto. O velório. O enterro. O ritual de passagem. A despedida, tão necessária à espécie humana.
Subiu as escadas rolantes aos saltos, atropelando as pessoas, sentindo o coração bater na boca. No ponto de ônibus, bem em frente ao cemitério, estavam sentados dois rapazes - um jovem, outro mais velho, mochila nas costas - e uma garota, cabelos presos. Os três vestiam camisas pretas. Os olhares se cruzaram, fração de segundo, e rapidamente se desviaram. Camila entrou apressadíssima no cemitério. Queria ter notícias do pai. Precisava ter notícias do pai.
Depois dos brindes e da bebedeira de comemoração, que invadiram a manhã ensolarada da sexta-feira, Lino, André e Joana continuavam esperando o ônibus para voltar para casa. Tranquilamente. Impunemente.
Começaram a caminhar com passos largos, ritmados, deixando para trás túmulos imponentes e garbosos de várias famílias quatrocentonas paulistanas. Contornaram a capela, paredes amareladas já descascando. Joana fez o sinal da cruz, três vezes. Beijou o crucifixo preso a um cordão enrolado no pescoço. A missão daquela madrugada nem de longe lembrava os agitados dias de junho, quando tinham marcado presença nas manifestações que chacoalharam a capital paulista, sempre vestidos de preto, a queimar bandeiras vermelhas, dos movimentos negro e homossexual e a gritar "sem partido, minha única bandeira é a do Brasil, comunismo nunca mais!". Na escuridão silenciosa, André seguia um pouco atrás, ressabiado, um frio na barriga, tentando não aparentar medo. Não gostava dessa coisa de estar tão perto dos mortos. Tinha um nó na garganta, a sensação de estar sendo vigiado. Lembrou das histórias de fantasmas que ouvia da mãe, quando criança. Quase ao mesmo tempo, os três viraram à esquerda, estreita e longa alameda com jazigos ainda mais suntuosos dos dois lados, a marcar o caminho. Avistaram, barranco abaixo, um antigo casarão.
Lino fez sinal de positivo, confirmando satisfeito - 'é ali mesmo'. Desceram o escadão correndo, de dois em dois degraus. Plano seguido à risca, tudo previamente combinado, Joana deu a volta no casarão, certificando-se de que estavam realmente sozinhos. Sorriu. Área limpa. André deu uma voadora e meteu o pé na porta de madeira, que não ofereceu resistência e se abriu, rangendo. Lino já tinha retirado da mochila duas marretas. Joana agora segurava uma lanterna que timidamente iluminava o ossário - o suficiente para que, naquela penumbra, uma a uma as gavetas fossem sendo estouradas e violadas, a marretadas. Dezenas delas foram destruídas, sem dó ou pudor, com as ossadas sendo violentamente atiradas no chão, com raiva e adrenalina a mil. Lino e André espumavam, em êxtase. Tinham sangue nos olhos. "Filhos da puta!", praguejou o mais velho, fazendo questão de pisar em crânios e fêmures, agora todos espalhados e misturados, sem os pequenos cartões com informações preciosas, como datas e locais de origens. "Terroristas de merda, vergonha da nação!". Acertou um chute num crânio, que se espatifou na parede. Cuspiu em um pedaço que foi parar perto da porta, já do lado de fora do casarão. Elétrico por conta do comportamento do amigo, André, ensandecido, continuava distribuindo marretadas nas gavetas. "Odeio todos vocês. Escória do Brasil. Vermelhos do caralho". Joana continuava alerta, na entrada do ossário, montando guarda, uma picareta na outra mão, atenta a qualquer movimento estranho ou presença indesejada.
A invasão demorou pouco mais de dez minutos - e deixou fragmentos de madeira, gesso, cimento, sacos plásticos e ossos por todos os lados. Escreveram numa das paredes externas do ossário: "Viva a ditadura!". Em mais um aceno de Lino, guardaram as ferramentas na mochila e saíram correndo. Refizeram o caminho - o escadão, a alameda com os túmulos grandes, a capela, o muro. Ofegantes, já do lado de fora do cemitério, tarefa cumprida, respiraram aliviados. "Vamos beber no boteco ali da esquina, até amanhecer. Agora não passa ônibus. Merecemos. Precisamos relaxar e comemorar. Deu tudo certo", convidou Lino. Os três se abraçaram.
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Olhou pela janela da frente. A casa estava cercada. Tirou a arma da cintura - um velho revólver, que já tinha travado numa operação de invasão a um banco - e decidiu tentar escapar pelos fundos. Não deu tempo sequer de chegar ao quintal. Ouviu o estampido seco, rápido. Sentiu dor lancinante, perto do joelho. Tombou, já sem muita consciência de onde estava. Os chutes vieram de todos os lados - na cabeça, nos ombros, no estômago, no joelho ferido. Desmaiou. Foi encapuzado e arrastado para uma veraneio cinza, placa fria.
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- Fala, comuna safado! Quem mais participou do roubo ao banco do Centro?
Ele era um farrapo humano, ferimentos espalhados pelo corpo, hematomas, dentes quebrados, ouvidos sangrando. Não conseguia falar. Mesmo que quisesse. Pensou em soltar informações falsas, para despistar, ao menos ganhar tempo, parar de tomar porrada. Não articulava as palavras. Começou a se contorcer, freneticamente. Choques elétricos. Um meganha chegou por trás e deu-lhe um murro na nuca. Curvou-se. Na volta, sem conseguir medir ou controlar os movimentos, bateu violentamente a cabeça na parede. Mais choques. Mijou. Cagou. Gritou. Palavras desconexas, desesperadas. Ninguém ouvia.
- Quero nomes, filho da puta. Me dá os nomes dos canalhas malditos! Todos eles. Você sabe. Você sabe! Fala, seu merda!
Jogaram água nele. Aumentaram a voltagem dos choques. Com um alicate, lentamente, arrancaram-lhe as unhas dos pés. Uma a uma. Outro meganha deu última tragada num cigarro, para depois apagá-lo no peito de Cesar, codinome Camilo, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e integrante da célula de mobilização e comunicação da organização comandada pelo temido Carlos Marighella, inimigo número um da ditadura civil-militar brasileira, e que tinha sido friamente assassinado em emboscada na Alameda Santos alguns dias antes.
Arrastaram-lhe para perto de um enorme tanque. Água imunda, barrenta. Fétida. Foi puxado pelos cabelos - e mantido debaixo d'água por quase um minuto. Debateu-se, em desespero. Tentou respirar. Engoliu água. Vomitou.
- Deixa de ser burro, animal. Ninguém vai te ajudar. Acabou para vocês. Vamos pegar todos, um por um. Mas antes você vai falar.
A cabeça foi novamente mergulhada no tanque. E mais uma vez. Outra. Quase sem tempo para que ele pudesse recuperar o fôlego. E assim foi por mais de meia hora. Sentiu o coração estourar. O corpo inteiro estremeceu. Ainda pode sentir um cabo de vassoura sendo enfiado no ânus, ainda com a cabeça na água. Tentou buscar o ar, de novo. Não conseguiu. O corpo foi amolecendo, aos poucos. Lentamente. Puxou o ar. Não soltou. Já estava morto quando tiraram a cabeça dele do tanque. Era uma massa sem forma de órgãos. Tinha sido brutalmente torturado, durante três dias. No chão, desfalecido, sem vida, ainda levou pontapés. Urravam de raiva. O ódio era maior ainda, porque Cesar não tinha falado.
- Filho da puta, filho da puta. Canalha. Não falou. Burro. Vai queimar nos infernos, terrorista da porra. Um a menos! Viva o Brasil!, gritou o chefe dos torturadores, que ordenou que fosse seguido o procedimento operacional padrão. Cesar deveria ser enterrado como indigente, em vala clandestina.
- Vocês sabem o que fazer. Não deixem pistas. Não digam nada aos parentes. Será mais um que sumiu. Não vai fazer falta.
Cantaram em coro o hino nacional.
*********************
Acordou estranhamente cedo naquela sexta-feira, emenda do feriado de Finados. Ainda estava tocada, abalada. O dia anterior tinha sido emocionalmente intenso - participara de um ato político que homenageara os mortos e desaparecidos pela ditadura e que exigia ainda que as ossadas agora guardadas no cemitério do Araçá, região oeste de São Paulo, fossem finalmente identificadas. Há fortes suspeitas de que algumas delas possam ser de militantes assassinados pelo regime de terror. Na cama, pelo celular, acessou o noticiário da internet. Deu um grito horroroso. "Ossário é invadido e violado no cemitério do Araçá", dizia a manchete de um dos portais.
Jogou longe os lençóis, tropeçou nos chinelos. Trocou-se em menos de cinco minutos. Nem tomou café. Precisava ir correndo ao cemitério. Uma das ossadas guardadas naquelas gavetas criminosamente arrebentadas a marretadas durante a madrugada provavelmente era do pai dela. Cesar. Ou Camilo. Camila - evidente homenagem à alcunha de guerra do militante da ALN - tinha só dois anos quando o pai foi preso e trucidado pela ditadura. Desde aquele longínquo dezembro de 1969, a família peregrina incansavelmente, em busca de informações sobre o paradeiro do companheiro de Marighella. Sempre esbarraram em negativas, falsas promessas, pistas desencontradas, registros fragmentados, ausência total de vontade política. Sofrimento sem fim.
As esperanças renasceram quando a vala clandestina do cemitério de Perus foi descoberta e aberta, em 1990, na administração da prefeita Luiza Erundina - que, aliás, também participara do ato político no Araçá, no dia de Finados. Mas a frustração que veio em seguida talvez tenha sido maior ainda. As ossadas passaram anos empacotadas e empilhadas num canto de um galpão quase abandonado na Universidade Estadual de Campinas, até serem transferidas para o Araçá. Mesmo depois de quase trinta anos da redemocratização do país, os familiares continuam lutando para que as ossadas sejam examinadas e identificadas. Permanecem firmes, embora às vezes a agonia a a sensação de abandono e fracasso sejam quase insuportáveis. Camila não se conforma - lembra que já passamos pelos governos do sociólogo uspiano, do líder operário do ABC e da militante presa e torturada. Em graus e situações diferentes, os três foram vítimas da ditadura. E nenhum deles, avalia, enfrentou de fato o desafio de exorcizar os fantasmas dos anos de chumbo. Nenhum deles garantiu o amplo direito à justiça. à verdade e à memória.
Naquela manhã de sexta-feira, Camila torcia para que o metrô andasse muito mais rápido. Não conseguia esconder a tensão. Mexia as pernas, batia os dedos na capa do livro que carregava (nem pensar em se concentrar na leitura de "Barba ensopada de sangue", romance premiado de Daniel Galera), olhava de um lado para outro do vagão. Tinha medo brutal de ter perdido os últimos vínculos materiais que poderiam ligá-la ao pai. Tinha as memórias, as histórias narradas pela mãe, pelos avós, pelos amigos de militância. Tinha fotos do pai com 22 anos, pouco antes de ser preso e assassinado. Mas queria o corpo. O direito ao luto. O velório. O enterro. O ritual de passagem. A despedida, tão necessária à espécie humana.
Subiu as escadas rolantes aos saltos, atropelando as pessoas, sentindo o coração bater na boca. No ponto de ônibus, bem em frente ao cemitério, estavam sentados dois rapazes - um jovem, outro mais velho, mochila nas costas - e uma garota, cabelos presos. Os três vestiam camisas pretas. Os olhares se cruzaram, fração de segundo, e rapidamente se desviaram. Camila entrou apressadíssima no cemitério. Queria ter notícias do pai. Precisava ter notícias do pai.
Depois dos brindes e da bebedeira de comemoração, que invadiram a manhã ensolarada da sexta-feira, Lino, André e Joana continuavam esperando o ônibus para voltar para casa. Tranquilamente. Impunemente.
domingo, 8 de dezembro de 2013
A BARBÁRIE
Nada faz sentido.
Não faz sentido que se vá ao campo não para torcer, mas para brigar e arrebentar quem estiver por perto.
Não faz sentido ainda permitir que torcidas organizadas entrem nos estádios.
Não faz sentido aceitar que torcidas organizadas continuem a existir.
Não faz sentido que clubes de futebol continuem a apoiar as torcidas organizadas.
Não faz sentido que o dito torcedor comum entre nessa merda de onda e corra para brigar também, movido pela explosão da massa.
Não faz sentido que, num estalo, num repente, sei lá se a partir de comandos de sei lá quem, dois exércitos de bárbaros saiam correndo, em formação, e se encontrem no canto da arena, com chutes, socos e pauladas.
Não faz sentido imaginar que o que era para ser diversão tenha se transformado em horroroso roteiro de barbárie.
Não faz sentido que pais, mães, irmãos, primos, tios fiquem desesperados, na agonia de não saber o que aconteceu com pessoas queridas que estavam no estádio.
Não faz sentido que um helicóptero tenha de pousar no centro do campo, para socorrer e resgatar vítimas dessa violência cretina.
Não faz sentido que se proíba policiamento em jogos de futebol, que são espetáculos públicos, a movimentar multidões.
Não faz sentido que nossos gestores e governantes que prezam as arenas padrão FIFA sejam tão boçais, escrotos, incompetentes, indecentes e covardes.
Não faz sentido que o ser humano seja chamado de humano ser.
Não faz sentido.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
UM BANDEIRINHA ARROMBADO. E A PEDAGOGIA DO FUTEBOL
A noite estava fria para um sábado de outubro, início de primavera, Dia das Crianças. Chegamos cedo ao aconchegante Paulo Machado de Carvalho, o velho Pacaembu, disparado o melhor e mais charmoso dos palcos paulistanos para se ver futebol. Daniel, meu filho, e Leonardo, sobrinho, tinham um compromisso: entrar em campo com os jogadores do Santos, como mascotes.
Sorriso de criança é sempre recompensador, gratificante, faz a gente esquecer as contas do mês, as reuniões improdutivas e estafantes, o trânsito de malucos da cidade, as decisões truculentas do presidente do Supremo Tribunal Federal, as bobagens que a gente lê no face book e até mesmo a má fase vivida pelo time do coração. Os dois pequenos estavam elétricos, andando nas nuvens, risadas deliciosas. Não paravam um minuto, lembrando as peripécias em outros jogos, os sorvetes e salgadinhos ('vou querer de chocolate'; 'eu, de limão') e escolhendo para qual jogador queriam dar a mão. Tudo certo e bem resolvido. "Pai, entrei com o Arouca!", contou Daniel, fã do futebol e das trancinhas do médio-volante. "Tio Chico, eu fui com o Tiago Ribeiro! Ele é nosso artilheiro!", comemorou o Leo. "Foi muito legal. E quando a gente pode ir de novo? Queremos na Vila!", mataram a charada.
Em campo, vimos um jogo fraco, sonolento, irritante e que chegou a ser angustiante nos minutos finais. A cara do Santos de 2013. Para variar, time esparramado em campo, bicões para todos os lados e a sorte de um gol de bola parada (Montillo cobrou falta na cabeça do Everton Costa!) no final do primeiro tempo. No começo da segunda etapa, talvez o único lampejo de criatividade e futebol vistoso, quando Cícero arrancou da defesa, driblou três jogadores da Ponte Preta (um deles com um quase chapéu) e tocou para Montillo, que ainda deu mais um corte antes de fazer o segundo gol.
Quem imaginava que pudesse vir goleada se decepcionou profundamente - o time sumiu em campo, Cicinho foi expulso no final, tomamos um gol besta, quase cedemos o empate. Vimos os últimos cinco minutos da partida em pé, tradicional setor laranja, gritando para o juiz acabar logo com aquele martírio.
Aliás, talvez para evitar cair no sono, xingar juiz e bandeirinhas foi uma de nossas diversões naquela noite - não porque estivessem errando ou prejudicando o Santos, mas para garantir descontração e tentar dar graça a uma partida que não tinha gosto de coisa alguma. Claro que apelamos para xingamentos leves, pueris, por conta das crianças. "Babaca, cretino, você não entende nada de futebol". Leonardo até arriscou um que já tinha gritado em outros jogos, com aplausos da galera: "desgraçado!".
Mas, e Garrincha era um sábio, a gente esqueceu de combinar o repertório permitido com o restante da torcida. Vou guardar o lance eternamente nas minhas memórias de pai. Saia justíssima, lutador no canto do ringue, com a contagem já aberta... Era metade do segundo tempo e, num dos 'lançamentos' (melhor escrever 'bicão') para o ataque, Tiago Ribeiro estava impedido. O auxiliar levantou a bandeira, corretamente. e parou o lance. Imediatamente, ouviu coleção infinita de palavrões e muitos elogios à honra e honestidade da senhora mãe dele. Daniel e Leonardo riram, se empolgaram e começaram a gritar alguns impropérios mais duros e ousados também. Nosso combinado: no campo, alguns palavrões são permitidos. Alguns. Ajudam a desopilar o fígado.
Eis que, na fileira da frente, um torcedor se levanta e grita a plenos pulmões, em direção ao bandeira, exatamente na nossa linha: "SEU ARROMBADO!". Para não deixar dúvidas, repetiu o berro, lentamente, quase sílaba por sílaba, e mais alto ainda. "ARROMBADO!". Daniel riu. Gelei, pressentindo o perigo. A ratoeira estava sendo engatilhada. E foi solta no meu pescoço.
"Pai, o que é arrombado?", Daniel fulminou. Tentando não gaguejar, procurando manter expressão serena, aquela cara de paisagem de 'tudo bem, está tudo sob controle, é só uma pergunta, sem dramas, vamos lá, é dúvida legítima da criança', fingi que tinha lance de perigo em campo, só para ganhar segundos preciosos. De canto de olho, vi meu irmão gargalhando, de costas para os meninos, para não dar na vista.
"Ah, filho, é quando a pessoa está machucada, arrebentada". Foi o que deu para fazer, pensei. É o melhor que posso, nesse momento. Respirei. Apertei os olhos. E fiquei esperando a réplica, algo como "mas o bandeirinha está machucado, pai?", suando frio para já tentar construir uma réplica aceitável. Mas o pequeno calou-se, virou novamente para o campo e continuou a acompanhar o jogo. Será que mandei bem? Acho que ele ficou satisfeito com minha resposta. Ou, sei lá, sabedoria infantil aguçada, sete anos bem vividos, vai ver entendeu foi tudo mesmo. E resolveu me poupar. Valeu, filhão!
Quem foi que disse que o futebol não é educativo?
Sorriso de criança é sempre recompensador, gratificante, faz a gente esquecer as contas do mês, as reuniões improdutivas e estafantes, o trânsito de malucos da cidade, as decisões truculentas do presidente do Supremo Tribunal Federal, as bobagens que a gente lê no face book e até mesmo a má fase vivida pelo time do coração. Os dois pequenos estavam elétricos, andando nas nuvens, risadas deliciosas. Não paravam um minuto, lembrando as peripécias em outros jogos, os sorvetes e salgadinhos ('vou querer de chocolate'; 'eu, de limão') e escolhendo para qual jogador queriam dar a mão. Tudo certo e bem resolvido. "Pai, entrei com o Arouca!", contou Daniel, fã do futebol e das trancinhas do médio-volante. "Tio Chico, eu fui com o Tiago Ribeiro! Ele é nosso artilheiro!", comemorou o Leo. "Foi muito legal. E quando a gente pode ir de novo? Queremos na Vila!", mataram a charada.
Em campo, vimos um jogo fraco, sonolento, irritante e que chegou a ser angustiante nos minutos finais. A cara do Santos de 2013. Para variar, time esparramado em campo, bicões para todos os lados e a sorte de um gol de bola parada (Montillo cobrou falta na cabeça do Everton Costa!) no final do primeiro tempo. No começo da segunda etapa, talvez o único lampejo de criatividade e futebol vistoso, quando Cícero arrancou da defesa, driblou três jogadores da Ponte Preta (um deles com um quase chapéu) e tocou para Montillo, que ainda deu mais um corte antes de fazer o segundo gol.
Quem imaginava que pudesse vir goleada se decepcionou profundamente - o time sumiu em campo, Cicinho foi expulso no final, tomamos um gol besta, quase cedemos o empate. Vimos os últimos cinco minutos da partida em pé, tradicional setor laranja, gritando para o juiz acabar logo com aquele martírio.
Aliás, talvez para evitar cair no sono, xingar juiz e bandeirinhas foi uma de nossas diversões naquela noite - não porque estivessem errando ou prejudicando o Santos, mas para garantir descontração e tentar dar graça a uma partida que não tinha gosto de coisa alguma. Claro que apelamos para xingamentos leves, pueris, por conta das crianças. "Babaca, cretino, você não entende nada de futebol". Leonardo até arriscou um que já tinha gritado em outros jogos, com aplausos da galera: "desgraçado!".
Mas, e Garrincha era um sábio, a gente esqueceu de combinar o repertório permitido com o restante da torcida. Vou guardar o lance eternamente nas minhas memórias de pai. Saia justíssima, lutador no canto do ringue, com a contagem já aberta... Era metade do segundo tempo e, num dos 'lançamentos' (melhor escrever 'bicão') para o ataque, Tiago Ribeiro estava impedido. O auxiliar levantou a bandeira, corretamente. e parou o lance. Imediatamente, ouviu coleção infinita de palavrões e muitos elogios à honra e honestidade da senhora mãe dele. Daniel e Leonardo riram, se empolgaram e começaram a gritar alguns impropérios mais duros e ousados também. Nosso combinado: no campo, alguns palavrões são permitidos. Alguns. Ajudam a desopilar o fígado.
Eis que, na fileira da frente, um torcedor se levanta e grita a plenos pulmões, em direção ao bandeira, exatamente na nossa linha: "SEU ARROMBADO!". Para não deixar dúvidas, repetiu o berro, lentamente, quase sílaba por sílaba, e mais alto ainda. "ARROMBADO!". Daniel riu. Gelei, pressentindo o perigo. A ratoeira estava sendo engatilhada. E foi solta no meu pescoço.
"Pai, o que é arrombado?", Daniel fulminou. Tentando não gaguejar, procurando manter expressão serena, aquela cara de paisagem de 'tudo bem, está tudo sob controle, é só uma pergunta, sem dramas, vamos lá, é dúvida legítima da criança', fingi que tinha lance de perigo em campo, só para ganhar segundos preciosos. De canto de olho, vi meu irmão gargalhando, de costas para os meninos, para não dar na vista.
"Ah, filho, é quando a pessoa está machucada, arrebentada". Foi o que deu para fazer, pensei. É o melhor que posso, nesse momento. Respirei. Apertei os olhos. E fiquei esperando a réplica, algo como "mas o bandeirinha está machucado, pai?", suando frio para já tentar construir uma réplica aceitável. Mas o pequeno calou-se, virou novamente para o campo e continuou a acompanhar o jogo. Será que mandei bem? Acho que ele ficou satisfeito com minha resposta. Ou, sei lá, sabedoria infantil aguçada, sete anos bem vividos, vai ver entendeu foi tudo mesmo. E resolveu me poupar. Valeu, filhão!
Quem foi que disse que o futebol não é educativo?
terça-feira, 19 de novembro de 2013
quinta-feira, 14 de novembro de 2013
APLAUSOS PARA O BOM SENSO FUTEBOL CLUBE
Reconheço que, quando o movimento deu o ar da graça, torci o nariz e não dei muita bola. Comportamento de torcedor chato mesmo. Achei que fosse fogo de palha, tabelinha rápida e improdutiva, firula sem foco ou objetividade, a jogar para as arquibancadas, sem possibilidade de resultados concretos. Mas as reuniões, as trocas de mensagens, o planejamento, os textos divulgados, as faixas, as declarações e entrevistas, a articulação por meio do "whatsapp" e, sobretudo, os gestos e as manifestações coordenadas e escancaradas em campo me conquistaram. Faço mea culpa - e me rendo. Os boleiros me convenceram. Há algo de interessante e relevante no reino do futebol brasileiro. Chama-se Bom Senso Futebol Clube.
O que aconteceu no início das partidas da rodada deste meio de semana no Campeonato Brasileiro tem uma força simbólica política extraordinária - a mensagem que os jogadores estão enviando aos que se imaginam donos absolutos do futebol nacional é "temos clareza e convicção de nossas justas reivindicações e não aceitaremos ser mais enrolados por promessas ou falas vazias que apenas pretendem ganhar tempo, empurrar o problema com a barriga para aguardar a discussão arrefecer e sair da agenda pública". Ousaram questionar publicamente, de forma criativa e inteligente, os autoritários e arrogantes dirigentes da Confederação Brasileira de Futebol.
Foi de beleza extraordinária, emocionante mesmo, observar, ao vivo, os jogadores de Flamengo e São Paulo solenemente ignorarem as ameaças feitas pelo árbitro da partida (a ordem da CBF era dar cartão amarelo para todos os rebeldes) e ficarem trocando chutões, de uma metade do campo para outra, sem sair do lugar, durante o primeiro minuto do jogo. Foi bonito também depois acompanhar e ter notícias que confirmavam que os protestos aconteceram em todas as outras partidas, com atletas de braços cruzados se recusando a tocar na bola, já com as pelejas em andamento, até que o primeiro minuto se completasse. Antes, os times já haviam entrado em campo carregando faixas que diziam "Por um futebol melhor para todos" e "Amigos da CBF, cadê o bom senso?". A cobrança teve endereço certo, preciso. Foi entendida.
Não surpreende, aliás, a bravata truculenta e a sugestão de punição feita pela CBF, entidade presidida por alguém que conheceu as entranhas da ditadura civil-militar instalada no Brasil em 1964, por meio de golpe que derrubou presidente da República democraticamente eleito pelo povo. Também não é exatamente novidade o malabarismo de discurso feito por narradores da vênus platinada, a emissora dona dos direitos de transmissão do Brasileiro, que talvez tenha orientado seus profissionais a falar de flores, do calor, do aquecimento global e de qualquer outro assunto que permitisse escapar de explicações ou de comentários específicos sobre os protestos que aconteciam em campo, diante dos olhos atentos da sociedade.
Como se fôssemos todos tolinhos, desinformados. Como se não soubéssemos o que estava a acontecer na rodada. Pois vale lembrar, apenas para registrar, que foi essa mesma Globo quem, depois de ter explicitamente apoiado a assassina ditadura brasileira, tentou manipular informações para esconder da população as primeiras manifestações e comícios que, no final de 1983 e início de 1984, tomaram as ruas e praças do país para exigir a volta do direito de votar para Presidente. Para a Globo, o primeiro comício das Diretas Já na cidade de São Paulo, na Praça da Sé, teria sido apenas "evento de comemoração do aniversário da cidade". É a história. Está documentado.
A CBF já deveria ter aprendido que violência só faz crescer e amplificar estranhamentos e insatisfações. E, lamento, TV Globo, mas achar que é possível continuar fingindo que nada está acontecendo e que tudo caminha como dantes e às mil maravilhas nos gramados nacionais e nas novas arenas FIFA é de uma estupidez inconsequente, ainda mais em tempos de redes sociais. Também só ajuda a aumentar indignações, reforça articulações e cimenta consensos - e bons sensos. Os boleiros parecem finalmente ter se dado conta de que são os protagonistas dessa festa. Sem eles, não há espetáculo. Não há campeonatos. Não há transmissões. Não há audiências.
O que o Bom Senso Futebol Clube reivindica é o óbvio ululante, como escreveria mestre Nelson Rodrigues: calendário mais sensato e inteligente, redução do número de partidas por ano para os times de elite e jogos durante todo o ano para equipes menores, férias de trinta dias ininterruptos entre dezembro e janeiro, pré-temporadas mais extensas, punições para clubes que não pagam salários, além de participação nos conselhos técnicos que discutem as competições. Agenda revolucionária? Até se pode afirmar que sim, se considerarmos as medievais relações e condições de trabalho, quase senhor feudal-servos, que pautam o universo do nosso futebol.
No limite, no entanto, os boleiros estão apenas exigindo que essas relações sejam civilizadas. Para quem acha que é bobagem o que cobram nossos jogadores, sugiro reflexões sobre caso específico, o do Atlético Paranaense nesta temporada de 2013. O time de Curitiba chega ao final do ano disputando o título da Copa do Brasil e ocupando a vice-liderança do Brasileirão. Por quê? Graças a um planejamento eficiente e a uma opção corajosa, abriu mão do campeonato estadual, disputado com time B, de garotos, e aproveitou os primeiros meses do ano para treinar e preparar a equipe principal para as disputas do segundo semestre. Pois então.
Em seu Blog, Juca Kfouri, entusiasta desde o primeiro momento do Bom Senso Futebol Clube, escreveu que "com faixas pedindo um futebol melhor para todos, de braços cruzados com a bola em jogo ou trocando-a com o rival amistosamente, os jogadores deram mais um recado para a CBF não se fazer de boba nem de surda porque, de braço cruzado em braço cruzado, eles são bem capazes de resolver descansar os pés ainda antes de o Brasileirão terminar". Firmes em seus propósitos, os boleiros não parecem mesmo dispostos a recuar.
Se não forem atendidos, se a CBF continuar com essa conversinha mole de "estamos estudando, estamos trabalhando", os atletas prometem, nas próximas rodadas, dois minutos de braços cruzados, três minutos de bicões trocados entre as equipes, até...
Seria ótimo, não nego, que num desses movimentos, de surpresa, sem fazer alarde, pudessem também cutucar com vara curta a toda-poderosa Globo, que é verdadeiramente quem define o calendário do futebol brasileiro. Uma faixa, alguns gestos... Quem sabe.
terça-feira, 29 de outubro de 2013
"DEIXEM-NOS ENTERRAR NOSSOS MORTOS E REALIZAR O LUTO NECESSÁRIO"
Texto de Tessa Moura Lacerda, filha de Gildo Macedo Lacerda, militante político da Ação Popular Marxista-Leninista assassinado e desaparecido pela ditadura civil-militar brasileira, em outubro de 1973. O texto foi lido na audiência pública de homenagem a Gildo realizada na Comissão da Verdade Rubens Paiva (Assembléia Legislativa de São Paulo), no dia 25 de outubro de 2013.
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Dizem (...) que [Creonte] proclamou a todos os tebanos a interdição de sepultarem ou sequer chorarem o desventurado Polinices: sem uma lágrima, o cadáver insepulto irá deliciar as aves carniceiras que hão de banquetear-se no feliz achado.” (Sófocles, Antígona, linhas 30-34).
Assim explica Antígona à sua irmã Ismene o que aconteceu a um de seus irmãos, Polinices. Na tragédia escrita por Sófocles no século V a.C., os irmãos Polinices e Etéocles morrem em uma guerra civil, este guiando o exército tebano, aquele o de Argos. Julgado traidor pelo tirano Creonte, que assume o poder de Tebas, Polinices deve permanecer insepulto: nas palavras de Creonte, “a Polinices, (...) quanto a ele foi ditado que cidadão algum se atreva a distingui-lo com ritos fúnebres ou comiseração; fique insepulto o seu cadáver e o devorem cães e aves carniceiras em nojenta cena.” (Sófocles, Antígona, linhas 225-235).
Neste mês de outubro de 2013, faz 40 anos que meu pai, Gildo Macedo Lacerda, foi torturado até a morte sob o governo ditatorial brasileiro. 40 anos atrás, a irmã mais velha de Gildo, Márcia Lacerda Alves, via o Jornal Nacional anunciar a morte de seu irmão em um suposto tiroteio no centro da cidade de Recife, na esquina da Av.Caxangá com a rua General Polidoro. Segundo a versão mentirosa oficial, Gildo, que havia sido preso em 22 de outubro de 1973, e José Carlos Matta Machado (também preso) delataram um encontro que aconteceria entre eles e um terceiro companheiro de codinome Antônio. Este, percebendo a emboscada, atirou em Gildo, que morreu no local. Poucos dias depois, minha mãe, então presa em Salvador, receberia a notícia da morte de seu marido pelo capelão do Exército, que lhe entregou um jornal com a notícia.
A farsa da versão oficial, o “Teatro da Caxangá” ou a prática do “Teatro dos Mortos”, além de encobrir os bárbaros assassinatos sob tortura de Gildo e José Carlos, tentou encobrir o assassinato de Paulo Stuart Wright ao se referir a “Antônio”, que teria conseguido fugir. Essas informações, eu sei de cor há nem sei quanto tempo. Na tentativa de reconstruir a história de Gildo, decorei as palavras que narram sua morte – ainda que sua morte tenha de fato ocorrido na tortura a que foi submetido. O que não consigo por nada gravar em minha memória é o nome das valas e dos cemitérios por onde passou o corpo morto de Gildo. Por meio de pesquisas no Dops/PE, o Grupo Tortura Nunca Mais em Recife (e particularmente uma pessoa: Amparo) descobriu em 1991 que o corpo de Gildo foi necropsiado no Necrotério Público de Santo Amaro, em Recife, para onde foi encaminhado pelo delegado Jorge Tasso de Souza; o corpo ficou inicialmente em caixão lacrado e foi enterrado como indigente no Cemitério da Várzea, em Recife. Os restos mortais de Gildo foram, em seguida, transferidos para uma vala comum no “Buraco do Inferno”, e, em 1986, para outra vala comum (com ossadas de pessoas mortas desde 1945), no Cemitério Parque das Flores – essa última vala, numa triste alusão à tragédia de Sófocles, uma vala a céu aberto.
Antígona não cede à irmã Ismene, recusa-se a obedecer o édito do tirano Creonte, e realiza os ritos jogando sobre seu irmão insepulto uma fina camada de terra com suas próprias mãos, porque para ela as leis do tirano ferem as leis dos deuses, as leis do governo tirano são leis injustas e, por isso, devem ser desobedecidas. Diz ela:
“Zeus não foi arauto delas para mim,/Nem essas leis são as ditadas entre os homens/ pela Justiça, (...);/ e não me pareceu que tuas determinações tivessem força/ para impor aos mortais até a obrigação/ de transgredir normas divinas, não escritas,/inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem,/é desde os tempos mais remotos que elas vigem,/sem que ninguém possa dizer quando surgiram.”(Sófocles, Antígona, linhas 511-520, grifo meu).
Contra o tirano Creonte, que define a justiça como as leis particulares instituídas por seu regime particular (como os Atos institucionais de nossa ditadura), Antígona considera que a justiça é universal e atemporal. Há 25 séculos a Filosofia debate a questão da Justiça. Em linhas muito gerais pode-se dizer que há aqueles que afirmam a Justiça como uma verdade universal e atemporal, derivada dos deuses, de Deus ou da razão humana – a Justiça, nesse caso, porta uma necessidade, ela deve valer em qualquer tempo ou lugar; e, de outro lado, há os filósofos que consideram que Justiça é produto da convenção humana e, como tal, é sempre contingente e particular, já que enraizada em governos particulares. Mas o fato é que quer concebamos a Justiça como uma verdade atemporal e universal, quer a concebamos como o efeito de leis particulares, mesmo entre os defensores de uma justiça que só existe por consenso, que é contingente e produto de seu tempo particular, é muito difícil dar razão para uma lei como a de Creonte; mesmo para quem defende a justiça como pura convenção, é difícil explicar uma lei que obriga a deixar um irmão insepulto, ou uma lei que justifica a prisão e morte arbitrária de pessoas que se opõem ao regime que está no poder. Porque como diz o adivinho Tirésias, ao advertir o tirano Creonte, deixar que um morto jaza insepulto é matá-lo novamente: “Não firas um cadáver!” – exclama Tirésias, e questiona: “Matar de novo um morto é prova de coragem?” (Sófocles, Antígona, linhas 1141-1142).
Recusar os ritos fúnebres a uma pessoa não é apenas uma injustiça, é uma monstruosidade, é nos retirar nossa humanidade, aquilo que nos distingue enquanto seres humanos, é desumano, é inumano.
Na primeira aparição do coro na Antígona de Sófocles, o coro exalta a capacidade do homem – “Há muitas maravilhas, mas nenhuma/ é tão maravilhosa quanto o homem./ (...)/ homem de engenho e arte inesgotáveis. /(...)/ Soube aprender sozinho a usar a fala/ e o pensamento mais veloz que o vento (...)” (Sófocles, Antígona, linhas 385-405). Na versão da Antígona feita pelo dramaturgo alemão Bertold Brecht, e que se inicia com um prólogo no qual duas irmãs veem seu irmão desertor assassinado por um soldado da SS de Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial, Brecht mostra quão longe pode ir o homem quando não reconhece os limites da humanidade e, nas palavras dele, “pisa implacavelmente sobre os demais”, quando impõe uma morte na morte, negando os ritos fúnebres a um morto, negando que os familiares pranteiem o seu ente querido, negando o direito humano de dar um túmulo a um pai, a um marido, a um filho, a um irmão; o direito humano de seguir em frente depois de uma morte inexplicável, incompreensível, seguir em frente, digo, sem o peso insuportável da responsabilidade de não ter dado ao seu parente um enterro digno. Quando o homem capaz de mil maravilhas, nega ao seu semelhante a possibilidade de ser humano e cumprir os ritos fúnebres como um dever para com seu familiar, ele nega a própria humanidade; como diz Brecht: [cito] “O homem não leva em conta o que é realmente humano, e assim, converte-se ele mesmo em um mostro prodigioso” (Brecht – Antigona, p.87).
Por isso, em homenagem ao meu pai, avô de meus filhos, marido de minha mãe, que ficou viúva aos 22 anos, faço um apelo à sociedade brasileira: deixem-nos enterrar nossos mortos!
O que a ditadura brasileira fez não é apenas uma injustiça, é uma monstruosidade. Deixem-nos enterrar nossos mortos, prantear nossos pais, filhos, maridos, amigos, companheiros. Deixem-nos cumprir o dever imemorial e humano de enterrar nossos entes queridos. É o mínimo que podemos fazer por pessoas que lutaram para que vivêssemos em uma democracia, com direito de fazer e dizer o que julgamos melhor, desde que dentro das leis democráticas instituídas.
Queremos que conste a causa mortis no atestado de óbito de Gildo Lacerda, porque assim ficará posto que ele morreu pelas mãos de um Estado ditatorial e jamais traindo seus companheiros, como a farsa da versão oficial quer colocar.
Queremos que se identifique os restos mortais de Gildo, porque assim poderemos fazer os ritos que seus pais não puderam e dar a meu pai o mínimo que se poderia dar diante do que ele nos deu em nome da democracia – sua vida.
Queremos que todos os arquivos da ditadura sejam abertos – e ainda há arquivos fechados, como revelou a Folha de São Paulo em 21 de outubro de 2013 ao relatar a microfilmagem que o serviço de informações da Marinha, o Cenimar, fez entre 1972 e 1974. O nome de Gildo constava de uma lista de militantes e dirigentes de organizações de esquerda que deveriam ser presos e assassinados mostrada ao líder camponês Manoel Conceição, em 1972, quando ele estava preso no Cenimar e no DOI Codi do Rio de Janeiro. Queremos que todos esses arquivos possam ser livremente acessados; queremos entender por que Gildo foi morto – porque não nos basta saber que ele lutava contra a ditadura, queremos reconstruir, reconstituir sua vida.
Deixem-nos enterrar nossos mortos e realizar o luto necessário. Deixem-nos enterrar nossos mortos para dar significado a sua vida e esclarecer para toda a sociedade este ponto obscuro de nossa história.
domingo, 20 de outubro de 2013
(DES) CAMINHOS DE UM TEXTO EM NOITE DE DOMINGO
Já tinha escrito bem umas trinta linhas sobre a polêmica das biografias não autorizadas quando me irritei, rabisquei tudo com raiva (ainda tenho o antiquado costume de escrever primeiro à mão, para depois transportar os garranchos para o computador), fiz uma bolotinha de papel amassado, devidamente arremessado em seguida no cesto dos recicláveis. O texto estava muito chato, nenhuma novidade, ao contrário, era muito mais do mesmo que já havia sido dito e repetido durante a semana. Ainda tentei pedir ajuda aos universitários cadernos especiais dos jornais de domingo, a ver se encontrava alguma inspiração, um "gancho" original, como a gente costuma dizer em linguagem jornalística. Nada. Vai ver o assunto esgotou-se mesmo. Além do mais, para mim a questão é tão cristalina, biografias devem ser livres, sem necessidade de prévia autorização, a consagrar não apenas a máxima da liberdade de expressão e do direito à informação, mas também a premissa que diz que as histórias de pessoas públicas à humanidade pertencem, como patrimônio coletivo indispensável à construção de nossa memória e identidade. Sobre essas trajetórias, é possível construir diferentes narrativas, versões que se entrelaçam e se questionam, num exercício honesto e equilibrado de busca da melhor versão possível dos fatos. Parece-me tão óbvio. É? Não sinto entusiasmo algum em investir outras tantas linhas nesse discurso. Melhor tomar banho. Quem sabe aparece alguma ideia melhor, mais palpitante, como diria uma de minhas primeiras chefes e editoras, ainda no início dos anos 1990, quando eu era um jovem primeiro anista do curso de Jornalismo, a perseguir pautas relevantes e arriscando textos que pudessem ser encantadores (assim eu achava) para os professores. Ela me deixava experimentar, corrigia, sugeria, com toda a paciência do mundo. Era delicada até para dizer "meu querido, aqui não dá, está piegas demais, literatice sem sentido. Vai lá e melhora". Pois neste domingo me lembrei dela e lá fui eu então para o chuveiro tentar esquecer as biografias e deixar vir à tona outro assunto. Pode parecer tremenda sandice, só coincidência, mas o banho tem sido momento mágico para desencalacrar pautas que se anunciavam ameaçadoras, incógnitas indecifráveis, ajudando a água morna ainda a jogar luz sobre trechos de textos com os quais já tinha brigado com todas as minhas forças, sem ficar satisfeito com o que tinha escrito. Um artigo sobre a atual fase do Santos? Não quero. Chato. Monótono. Repetitivo. A cara do time. É, o time anda numa draga danada, jogos sofríveis, de dar nervoso - ou sono. Está certo, ganhou ontem. Não fez mais que a obrigação. Foi goleada? Só fez a lição de casa. Quero só mais cinco pontos e vou finalmente respirar aliviado, Claudinei. Duas vitórias. Exatamente. Outro estalo. É, pode ser, resenhas dos últimos livros que li. Pensei em dois, em especial. "A maçã envenenada", do Michel Laub, que rompe com a narrativa linear, investe nos períodos longos e tem como pano de fundo um show do Nirvana para mais uma vez combinar angústias individuais com tragédias coletivas e contar uma história de liberdades e prisões da alma, incluindo suicídios. "Reprodução", do Bernardo Carvalho, faz uso de fluxos de consciência e das repetições de falas e raciocínios de um jovem estudante de chinês e de uma delegada descontrolada para criticar duramente a sociedade da avalanche de informações, consumidas rapidamente em blogs e colunas de ditos "formadores de opinião", numa tendência que só faz reforçar a carência de conhecimento mais aprofundado e a fragilidade dos argumentos como marcas do nosso tempo, a "era das redes". Concordo, são dois bons livros, mas não foram arrebatadores, ao menos para mim. Não quero escrever sobre eles. O drible, do Sergio Rodrigues? Esse me tocou profundamente, na alma! E não só porque fala de futebol. Mas ainda não terminei. Não, ainda não. Estou no finalzinho. Decidi corrigir provas, à espera da tão desejada inspiração para um texto. E, sei lá, num estalo, lembrei que, depois de quase quinze anos atuando como professor universitário, posso dizer modestamente que ajudei a formar 24 turmas de jornalistas. Não sei se isso é bom ou ruim. Noutro relâmpago de memória, e comecei a gargalhar sozinho, me veio à cabeça uma situação recentemente vivida na universidade. Estava no posto bancário, pilha de boletos na mão, aproveitando o intervalo da aula para resolver as pendências financeiras do mês. Comecei a ouvir as vozes de duas meninas, uma mais aguda, outra mais grave. "Meu, aquela vadia agora resolveu me ignorar. Não respondeu as mensagens que mandei no final de semana. Sabe o que é isso? Fal-ta de pê-nis! Fal-ta de pênis!", cantava uma delas, a mais estridente, no ritmo do "é cam-pe-ão" entoado nas arquibancadas. Não pude resistir. Abandonei o caixinha e virei para ver quem eram aquelas figuras. Ficaram vermelhas. "É... então, vamos ao Hopi Hari no final de semana?", emendou sem conseguir remendar a de voz mais forte. Engraçadíssimo, mas também não rende mais do que isso. É a história quem nos diz o tamanho que quer ter. Não adianta forçar. Enquanto ainda ria com as lembranças da cena, Daniel vociferava na frente da televisão, contra o vídeo-game. "Ah, meu deus, assim não dá. Esse cara é muito ruim. Grosso! Não acerta um chute. É uma calamidade! E esse juiz é um roubão, não marca uma falta. Torce para o outro time! Só pode". Comecei a rir de novo. E nada de aparecer um texto, curtinho que fosse. Fui acompanhar a rodada do Brasileirão. Futebol sempre alimenta boas histórias. Vi a vitória do São Paulo, o empate entre Internacional e Grêmio, o empate entre Vasco e Botafogo. Nenhuma novidade. Nenhum texto. Já é final de noite de domingo, primeiro dia do horário de verão, por quem não tenho apreço algum. Vai tocar a maldita musiquinha do Fantástico. Não quero mais escrever.
quarta-feira, 9 de outubro de 2013
A INACEITÁVEL TENTATIVA DE PROIBIR A PUBLICAÇÃO DE BIOGRAFIAS
O movimento dos músicos que de forma autoritária tenta proibir a livre publicação de biografias pretende evidentemente cercear a liberdade de expressão e ter sob fino controle as narrativas que serão construídas sobre eles. Desejam ardentemente transformar a História, fascinante porque rica em versões e contradições, em via de mão única, impositiva, verdade absoluta e inquestionável, um exercício de chapabranquismo oficialesco, a derramar elogios sobre tais celebridades, como se fossem sujeitos supremos, perfeitos e infalíveis. Se for dessa maneira, uma história só de "coisas boas" (sempre nas avaliações deles, claro), vão adorar ver suas biografias publicadas. Não seria exercício jornalístico, mas estratégia de marketing. E, sim, a assessoria de Chico Buarque, quem te viu, quem te vê, confirmou à Folha de São Paulo que ele faz parte do time da truculência, acreditem.
Tenho cá comigo, no entanto, que esse bloqueio ultrapassa essa esfera da discussão do "a quem pertence a história" para assumir ares ainda mais nefastos de "quanto custa essa história" - e, se as editoras pagarem bem aos cantores potencialmente biografados, talvez e quem sabe eles possam muito generosamente mudar de posição e, num átimo de respeito pelo interesse público, conceder imediata autorização para que suas vidas sejam contadas. Fazem valer a máxima do "pagando bem, por que não?".
Na Folha de hoje, diz o sambista Wilson das Neves que "tudo o que se usa, paga", para completar: "Todo mundo que é ingrediente do sucesso deve ser remunerado. Quem faz a revisão, a capa, não é remunerado? E o assunto do produto, não?". E fulmina: "É até bom um dinheiro que entra na conta. Só estou esperando a minha vez".
Não vou nem me alongar no mérito de discussão mais profunda, a escrachada mercantilização de vidas e trajetórias humanas que são públicas, histórias que, por direito, pertencem à humanidade. Para além dessa dimensão, o discurso do sambista mistura alhos com bugalhos para propositalmente confundir, numa torpe tentativa de seduzir e conquistar adeptos que, em sociedade cada vez mais pautada pela força de grana que ergue e destrói coisas belas (lembra, Caetano?), só pensam na bufunfa, nos bolsos cheios, no valor de troca, e não no valor de uso, para resgatar expressões marxistas.
Vamos lá: quem faz a capa, quem diagrama, quem faz a revisão, quem fotografa e quem apura, pesquisa e escreve o texto de uma biografia está evidentemente sendo remunerado por trabalhos concretamente desenvolvidos. Numa sociedade capitalista, parece-me que a troca da força e capacidade de produção (braçal e intelectual) por remuneração justa e digna, ao menos em tese (chama-se salário, genericamente), é a única maneira de garantir sobrevivência. Agora, a dúvida: qual é o trabalho desenvolvido pelo possível biografado, a merecer remuneração? Qual o tempo socialmente gasto por ele diretamente nessa produção da obra? A história já está lá, é a vida dele, já aconteceu. Será apenas narrada e tornada pública. E quem vai correr para costurar as informações é exatamente o biógrafo. São pressupostos e ações completamente diferentes.
Percebam como esse raciocínio é reacionário e perigosíssimo: todos os dias, nas diferentes redações de jornais, emissoras de TV e de rádio e nos portais, pauteiros pautam, diagramadores diagramam, repórteres entrevistam e escrevem, editores editam. Trabalham todos com histórias que não são exatamente as deles, mas as dos outros. E são todos remunerados por todas essas distintas atividades. A seguir o raciocínio estapafúrdio de gente como Wilson das Neves (que não é voz isolada), todas as fontes entrevistadas para todas as matérias, nas mais diferentes editorias (Política, Economia, Internacional, Cultura, Cidades, Esportes), distintos veículos, precisariam ser também remuneradas. Afinal, o assunto do produto não ganha? E estaria assim definitivamente enterrada e inviabilizada a prática jornalística, ao menos aquela que pretende publicizar a melhor versão possível dos fatos, em nome dos direitos de cidadania e do fortalecimento da democracia.
Mais triste é constatar que esse cerco à liberdade de expressão está sendo patrocinado por muitos daqueles que sofreram diretamente as agruras da repressão, nos terríveis anos de chumbo da ditadura militar.
É proibido proibir. Vai passar. E, apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia.
Tenho cá comigo, no entanto, que esse bloqueio ultrapassa essa esfera da discussão do "a quem pertence a história" para assumir ares ainda mais nefastos de "quanto custa essa história" - e, se as editoras pagarem bem aos cantores potencialmente biografados, talvez e quem sabe eles possam muito generosamente mudar de posição e, num átimo de respeito pelo interesse público, conceder imediata autorização para que suas vidas sejam contadas. Fazem valer a máxima do "pagando bem, por que não?".
Na Folha de hoje, diz o sambista Wilson das Neves que "tudo o que se usa, paga", para completar: "Todo mundo que é ingrediente do sucesso deve ser remunerado. Quem faz a revisão, a capa, não é remunerado? E o assunto do produto, não?". E fulmina: "É até bom um dinheiro que entra na conta. Só estou esperando a minha vez".
Não vou nem me alongar no mérito de discussão mais profunda, a escrachada mercantilização de vidas e trajetórias humanas que são públicas, histórias que, por direito, pertencem à humanidade. Para além dessa dimensão, o discurso do sambista mistura alhos com bugalhos para propositalmente confundir, numa torpe tentativa de seduzir e conquistar adeptos que, em sociedade cada vez mais pautada pela força de grana que ergue e destrói coisas belas (lembra, Caetano?), só pensam na bufunfa, nos bolsos cheios, no valor de troca, e não no valor de uso, para resgatar expressões marxistas.
Vamos lá: quem faz a capa, quem diagrama, quem faz a revisão, quem fotografa e quem apura, pesquisa e escreve o texto de uma biografia está evidentemente sendo remunerado por trabalhos concretamente desenvolvidos. Numa sociedade capitalista, parece-me que a troca da força e capacidade de produção (braçal e intelectual) por remuneração justa e digna, ao menos em tese (chama-se salário, genericamente), é a única maneira de garantir sobrevivência. Agora, a dúvida: qual é o trabalho desenvolvido pelo possível biografado, a merecer remuneração? Qual o tempo socialmente gasto por ele diretamente nessa produção da obra? A história já está lá, é a vida dele, já aconteceu. Será apenas narrada e tornada pública. E quem vai correr para costurar as informações é exatamente o biógrafo. São pressupostos e ações completamente diferentes.
Percebam como esse raciocínio é reacionário e perigosíssimo: todos os dias, nas diferentes redações de jornais, emissoras de TV e de rádio e nos portais, pauteiros pautam, diagramadores diagramam, repórteres entrevistam e escrevem, editores editam. Trabalham todos com histórias que não são exatamente as deles, mas as dos outros. E são todos remunerados por todas essas distintas atividades. A seguir o raciocínio estapafúrdio de gente como Wilson das Neves (que não é voz isolada), todas as fontes entrevistadas para todas as matérias, nas mais diferentes editorias (Política, Economia, Internacional, Cultura, Cidades, Esportes), distintos veículos, precisariam ser também remuneradas. Afinal, o assunto do produto não ganha? E estaria assim definitivamente enterrada e inviabilizada a prática jornalística, ao menos aquela que pretende publicizar a melhor versão possível dos fatos, em nome dos direitos de cidadania e do fortalecimento da democracia.
Mais triste é constatar que esse cerco à liberdade de expressão está sendo patrocinado por muitos daqueles que sofreram diretamente as agruras da repressão, nos terríveis anos de chumbo da ditadura militar.
É proibido proibir. Vai passar. E, apesar de vocês, amanhã há de ser outro dia.
domingo, 6 de outubro de 2013
MARINA SILVA E EDUARDO CAMPOS CHACOALHAM A DISPUTA PRESIDENCIAL
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Direto, sem rodeios ou firulas, tentando observar de maneira mais detalhada alguns elementos da fotografia política produzida neste início de outubro de 2013, um ano antes da eleição presidencial:
* A filiação de Marina Silva ao PSB de Eduardo Campos faz escorregar ladeira abaixo, e em alta velocidade, o discurso do "somos diferentes, não pensamos apenas no poder", que tanto ajudou a pavimentar a credibilidade e a imagem política dela. Marina afirmou em várias ocasiões que desejava fundar a Rede porque todos os demais partidos existentes "não serviam, estavam viciados". Quando o registro da Rede foi negado pelo Tribunal Superior Eleitoral, ela mudou o rumo da prosa e rapidamente correu para buscar abrigo no "mais do mesmo". Não há malabarismo de narrativa em entrevista coletiva que seja capaz de negar esse movimento. Será preciso agora acompanhar a repercussão desse gesto entre os entusiastas e ativistas que sonhavam com o que consideravam um fato novo na política nacional. Nas redes sociais, não são poucos os que manifestam decepção com a escolha da ex-senadora.
* Pragmaticamente, a aliança Rede-PSB tem potencial político e eleitoral para construir terceira via de peso e fazer ventar forte num cenário que anunciava mais uma vez o carcomido e insuportável cabo de guerra entre PT e PSDB.
* Eduardo Campos, líder regional, figura conhecida e com presença razoavelmente consolidada no Nordeste, teria dificuldades para entrar no Triângulo das Bermudas (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais), estados decisivos para as pretensões de qualquer presidenciável. Com Marina, a carregar significativo capital político entre as classes médias urbanas e intelectualizadas do Sudeste (20% de votos entre os paulistas em 2010, 31% entre os cariocas, outros 20% entre os mineiros), o governador de Pernambuco fura esse bloqueio.
* João Santana, marqueteiro oficial do PT, não se cansa de cantar em verso e prosa que a presidenta Dilma Rousseff será reeleita com facilidade em primeiro turno em 2014. A considerar as notícias veiculadas pelos jornais e portais neste final de semana, os assessores palacianos já não parecem mais tão tranquilos em relação a esse diagnóstico. Em condições normais de temperatura e pressão, e salvo hecatombe, Dilma é presença líquida e certa num eventual segundo turno, ainda que se considere o patamar de votos dela até aqui mais baixo captado pelas pesquisas (30%, logo depois das jornadas de junho). Os governistas estavam prontinhos para mais um embate com o PSDB, jogo que já conhecem de longa data. As cartas ficarão mais confusas e embaralhadas se os adversários na segunda etapa forem Campos-Marina, não só pela novidade que representam, exigindo a reformatação de estratégias e de discursos, que serão publicizados pela primeira vez (o risco é sempre mais elevado), mas também porque, de alguma maneira, a dupla pode ser também considerada herdeira do lulismo. O atual governador de Pernambuco foi ministro da Ciência e Tecnologia de Lula; a idealizadora da Rede, ministra do Meio Ambiente. Não podem ser considerados adversários vindos das fileiras da oposição dura aos doze anos de administração do PT.
* Se o ex-presidente Lula já manifestava disposição para percorrer o país a defender a reeleição de Dilma, provavelmente multiplicará por mais dez essa vontade, diante desse novo cenário mais complexo, nebuloso e arisco. O presidente mais bem avaliado da democracia brasileira poderá mais uma vez transferir parcela representativa de sua popularidade para a sucessora; ao mesmo tempo, pisará em ovos e será obrigado a calibrar o discurso. Não haverá margem para bater em ex-aliados, ao menos não da maneira como ele se vê livre e à vontade para fazer quando os adversários são os tucanos.
* O PMDB de Michel Temer, Renan Calheiros e José Sarney esfrega as mãos e não esconde o sorriso largo no rosto, já que, como definitivo parceiro preferencial do governo, sem mais o PSB a incomodar e reivindicar essa condição, será ainda mais importante para garantir a reeleição de Dilma, principalmente nas prefeituras dos rincões do país. Vai cobrar - mais - a fatura, já elevadíssima.
* A candidatura que sofre mais abalos é a do senador Aécio Neves. Se o PSDB já tinha dificuldades para pavimentar unidade interna e conter as ambições do ex-governador José Serra, além de patinar nas pesquisas e ainda em relação a programas e narrativas alternativos ao projeto petista, vê-se agora diante da sombra crescente e bojuda de Campos-Marina, que ameaça deixar os tucanos de fora do segundo turno, fato que representaria uma tragédia para o partido. Aécio corre até o risco de perder a condição de queridinho da mídia grande, caso os jornalões e revistões enxerguem na Rede-PSB discurso palatável e condições mais efetivas para derrotar o PT.
* A lógica de alianças nos estados passará provavelmente por reavaliações e rearranjos. O anunciado pacto de não-agressão entre Aécio e Campos tinha espaço num cenário em que o primeiro alcançava desempenho muito superior nas pesquisas eleitorais, em relação ao segundo (15% contra 5%, na média e arredondando). Nessas condições, sobravam tapinhas nas costas e apertos de mãos para fotógrafos. Com os dois se digladiando para definir quem vai enfrentar Dilma num eventual segundo turno, será que vão continuar trocando juras de amor eterno e dedicando músicas um para o outro? Aécio continuará aceitando tranquilamente, por exemplo, que o governador Geraldo Alckmin dê palanque também para Campos, no maior colégio eleitoral do país, e onde tucanos e pessebistas desejam aparecer regionalmente coligados?
* Se o tempo de televisão já pautava as alianças, cada segundo extra cobiçadíssimo, será agora disputado a tapa - ou na base da farta distribuição de cargos, emendas e verbas públicas, nos diferentes níveis de governo.
* A declaração de Marina na entrevista coletiva que oficializou a filiação dela ao PSB - "é preciso acabar com o chavismo do governo" - é lamentavelmente mais um indício a sugerir que o debate político da próxima disputa presidencial deverá ser novamente marcado por nível baixíssimo, a exemplo do que já se viu em 2010. Não será surpresa se a campanha enveredar pelos descaminhos de uma guerra santa ainda mais conservadora e pestilenta.
sexta-feira, 4 de outubro de 2013
FRAGMENTOS AGONIADOS DE UM SANTOS X SÃO PAULO
A aula era sobre a construção da hegemonia dos Estados Unidos, disciplina "História Contemporânea". Conversávamos a respeito das frustrações provocadas pela administração do presidente Barack Obama. Eram quase dez da noite. Mentalmente, sem que ninguém percebesse, sem perder o fio da meada nem deixar de dar atenção aos alunos, desejei que o Santos fizesse um bom jogo. E bati com o dorso do dedo indicador três vezes na tela do celular, como sempre faço no início de cada partida. Para dar sorte. Funciona. Acreditem.
Pouco mais de vinte minutos depois, o celular, ligado mas colocado no modo silencioso, como faço em todas as aulas, até para conseguir controlar o tempo, anuncia uma nova mensagem. No telão, sala no escuro, em silêncio, víamos uma interessante entrevista do jornalista David Remnick, biógrafo do presidente estadunidense. Relutei. Nada de atrapalhar a aula. Consultei discretamente a mensagem. "Gol! Edu Dracena de cabeça, no terceiro andar!". Era um colega professor, solidário ao meu drama de, sem jamais deixar de lado o profissionalismo e a ética docentes, tentar acompanhar à distância o que acontecia na Vila Belmiro. Não movi um músculo. Comemorei em silêncio. Não duvidem. Funciona.
Quando a aula acabou, perto das onze da noite, o primeiro tempo também já tinha chegado ao fim. Como nenhuma outra mensagem havia dado o ar da graça, entendi que ainda estávamos na frente. Acertei. Vi o gol do Edu na sala dos professores, antes de assinar o ponto, nos melhores momentos exibidos durante o intervalo da partida. Voei para o estacionamento, mas não quis ligar o rádio - acreditem, dá um azar dos infernos, o Peixe invariavelmente perde quando resolvo ouvir os jogos recorrendo ao meu amigo falador do carro. Preferi sintonizar música brasileira, no máximo volume, para não correr risco de ouvir gritos e rojões, em caso de empate do São Paulo.
Mais uns dez minutos e, em plena avenida Faria Lima, perto do shopping Iguatemi, o celular piscou de novo. Hesitei. Segundo? Empate? Esperei parar num farol vermelho. Não resisti. Cliquei. "Dois a zero!", torpedo curto e objetivo. Era outro amigo santista, a também fazer parte da rede de solidariedade que pretende informar um professor santista em desespero.
Cheguei em casa a tempo de ver os últimos vinte minutos do clássico. Busquei rapidamente abrigo na ponta esquerda do sofá, lugar da sorte, controle remoto na mão direita, como mais um amuleto. Só então descobri que jogávamos com um a menos. Alisson tinha sido expulso com justiça ainda no final do primeiro tempo. Imaginei que ia sofrer, me preparei para ver o bicho pegando naqueles minutos derradeiros. Mas o São Paulo sequer conseguia chegar perto da nossa área. O Santos jogava muito bem, coeso e de maneira inteligente.
Ainda pude ver o terceiro gol, marcado pelo Leo. Tudo o que tinha sido até então comedido e ético silêncio transformou-se em saltos e gritos que, quase meia-noite, ameaçaram acordar o bairro de Perdizes, quem sabe também os vizinhos da Pompéia, do Sumaré, da Lapa... Por alguns segundos, tive receio de ser expulso do prédio. Fiquei esperando o interfone tocar, alguém do outro lado reclamando, dizendo não muito educadamente (com razão) 'quero dormir'. Nada. Mudei de canal, para ver os comentários e as entrevistas dos técnicos - aquilo que aqui em casa a gente chama de "conversinha de futebol". Fui dormir muito mais leve.
terça-feira, 10 de setembro de 2013
(IN) DECISÃO
Frio
de julho. Temperatura perto dos dez graus. Um vento cortante, daqueles de fazer
doer os ossos, entrava cantando pela enorme janela da sala, escancarada.
Ninguém se importava. Ernesto vestia a guerreira camisa amarela com listras
verticais verdes de tantos outros mundiais, mangas curtas, número 8 nas costas.
Estava toda amassada, surrada. Quase nem mais cabia nele. Era o uniforme da
sorte. Nervoso, adrenalina fervendo no sangue, o rapaz suava em bicas e permanecia
de joelhos, bem na frente da TV. Quase sem respirar, sentia o corpo todinho dolorido,
como se tivesse sido pisoteado por oito elefantes africanos, cinco toneladas
cada, um atrás do outro. Viu finalmente o árbitro erguer o braço. Chegava ao fim
a prorrogação. A semi-final da Copa do Mundo seria decidida nos pênaltis.
O
rapaz desaba no chão, olhar perdido, buscando o teto. Fica imóvel. Não pisca.
Não mexe nem a pontinha da unha do dedo mindinho. Anita sente um aperto no
coração. Já tinha visto aquela cena, algumas vezes. O semblante dela era tenso,
testa enrugada. Mordeu os lábios. Balançou a cabeça de um lado a outro. Sem
perceber, falou alto, quase gritando: “Ah, mas pode parar por aí. Nem em sonho
invente de ter outro piripaque por conta de futebol. Já foi suficiente o do ano
passado, quando precisamos voar para o pronto-socorro. Dessa vez não vou ajudar
ninguém. Não conte comigo. Chega”. Ainda não tinha esquecido o susto, o surto, o
pavor, a agonia, o namorado todo travado, sem nem conseguir falar, o médico do
plantão dizendo “cuidado, infarto pode vir desse jeito”.
Sem
prestar muita atenção ao que dizia a companheira, Ernesto olha o relógio. Seis
e quarenta. Já escureceu. Ainda estatelado, ele começa a ouvir cadeiras sendo
arrastadas na sala. Alguém levanta e acende as luzes. Sem dizer palavra, o pai,
que passara a partida inteira andando em círculos, sempre no mesmo sentido, quase
a fazer um buraco no chão do apartamento, faz o sinal da cruz, pega a imagem de
Nossa Senhora de Fátima que estava no oratório, abraça-a fortemente, conversa
baixinho com ela, dá vários beijos nela, faz mais um carinho e com ela sai para
a área de serviço.
Como
se tivesse recebido ordem do marido por telepatia, talvez um impulso elétrico
conectado, ou ainda quem sabe tempestades cerebrais em sintonia, como nos experimentos
do neurocientista Miguel Nicolelis, a mãe corre em desabalada carreira pelo
corredor e se tranca no quarto. O irmão vai também, para o escritório. Em
silêncio. Logo atrás, vão a irmã, o primo, a tia, o tio, o cunhado, a namorada
do primo, o outro primo. Todos vão buscar abrigo em outros cantos da casa. As
arquibancadas da sala, até então apinhadas, agitadíssimas, ficam abandonadas.
Só restam ele e o irmão mais novo, encolhido e assustado num canto do sofá,
olhos arregalados. Aguardam o início da disputa de pênaltis. Na lateral de
campo, entre consultas e confabulações, os cobradores das penalidades estavam
sendo definidos. Os jogadores recebiam aquelas massagens e aguinhas milagrosas
que acabam com qualquer incômodo muscular.
Agora
quase vazia, a sala parecia enorme. Os pratos e os talheres sujos de molho de
macarrão do almoço ainda estavam espalhados pela mesa, que tinha sido encostada
na parede, perto da porta de entrada. Tudo para não atrapalhar a visão do jogo.
Já escolheram o gol onde os pênaltis serão cobrados?, Ernesto quis saber.
Ninguém respondeu. Começou a se mexer. Encolheu
lentamente as pernas. Girou de lado. Apoiou-se sobre o braço direito. Fez força
para levantar. São dez anos sofrendo com dores na coluna. O exame periódico de
ressonância magnética feito no mês anterior diz que há acentuação da lordose
lombar em decúbito, esboços osteofitários incipientes em alguns corpos
vertebrais, leve abaulamento discal difuso L3-L4 que retifica o saco discal e
sei lá quantas outras encrencas vertebrais complicadas. Ele chama todas essas
letras e nomes de hérnias, protuberâncias e discos desgastados. Tem dor. Muita
dor – que o impede inclusive de participar das peladas de final de semana com
os amigos.
O
ortopedista que também tinha casa de férias na cidade de Serra Negra, interior
paulista, onde Ernesto passara boa parte da infância e da juventude, um tanto
delas correndo atrás de bolas e comemorando os gols anotados, recomendou que o
rapaz sempre se levante com cuidado, bem devagar. Flexiona os joelhos. Conta
até três. Tudo bem. Apoia no sofá. Fica em pé. Estica. Não dá. Trava. Uma dor
lancinante atravessa a coluna, da base da nuca à lombar. Fica tudo escuro. As
pernas bambeiam. Quase cai. O irmão pula e oferece ajuda. Não precisa, está
tudo bem, agradece. Respira fundo. Vai precisar ligar para o fisioterapeuta e
marcar umas sessões extras de hidro, alongamentos na água. Talvez tenha de
voltar a tomar anti-inflamatórios. Sugeriram ioga e acupuntura. Ele desconfia. Mas
sabe que não é hora de pensar nisso. Respira fundo, mais uma vez. Passou. Ai. Acusou
uma pontada, no lado esquerdo da lombar.
Consegue
dar dois, três passos, lentamente. A sensação é que há uma agulha a espetar sua
espinha, sem dó. O irmão já tinha novamente aumentado o som da televisão. Os
jogadores com as camisas amarelas começam a se abraçar. Parecem dizer aqueles
“é nois, ninguém tira, treinamos muito para chegar até aqui, não vamos perder
agora, vamos fazer acontecer, fé em deus”. Ernesto não vê graça alguma nesses
discursinhos motivacionais, acha todos uma grande bobagem. Se falatório
ganhasse taça...
Na
telinha, o técnico franzino, boné na cachola, madeixas brancas esvoaçantes, não
para de beijar a medalhinha, sozinho, olhando o infinito. O velho Lobo diz a
todo instante “vão ter que me engolir, vão ter que me engolir”. Mais atento, Ernesto
consegue fazer a leitura labial. Começa a ouvir rojões que estouram nas ruas.
Vira bicho. Sai correndo. Olha pela janela. Que merda! Parem com isso! Não
ganhamos nada ainda! Isso dá um azar danado! Só comemorem depois que estivermos
classificados! O irmão continua no cantinho do sofá. Agora rói as unhas, sem
parar. Ameaça rir daquela ceninha patética, um maluco pendurado na janela,
berrando sabe-se lá com quem, porque as ruas estavam desertas. Recebe em troca um
olhar gelado, fulminante. Ernesto é uma bomba-relógio prestes a explodir.
O
locutor abre a torneirinha de asneiras da boneca Emília. “É jogo para cardíaco,
amigo. Pode treinar, mas pênalti é sempre loteria. Caixinha de surpresas. O que
tiver de ser, será. De qualquer maneira, honramos essa camisa. Quem será que
tem mais perna, mais coração? Vale a sua torcida. Haja coração!”. Cala a boca,
Galvão! Sim, Ernesto acha o sujeito um falastrão, cretino fundamental. Mas acredita
que o falatório do cara dá sorte. Nem pensar em mudar de canal. Os adversários
com camisa laranja também ensaiam abraços, rodinhas, palavras de ordem,
tapinhas nas costas. O rapaz solta o verbo novamente. Filhos da puta, viados,
fregueses! Já esqueceram aquele balaço de falta, aquela bunda branca malabarista
que saiu do caminho da bola na hora certinha? Entrou bem no cantinho. Vão
perder de novo. Lembrou que estava em território doméstico paterno/materno,
onde o código de ética e convivência dizia que não eram aceitos palavrões.
Escapou, cacete, fazer o quê. Nem fez menção de pedir desculpas. Estava tenso
demais. Movimentou-se para buscar assento ao lado do irmão. A coluna ainda
estava levemente dolorida. Fez suave massagem. Sentou com a palma da mão
esquerda a pressionar as costas. Procurou uma almofada.
Foi
quando a ficha caiu. Numa espécie de viagem imagética, catapultado para outra
realidade, todas as peças se encaixaram, tudo fez sentido. Ele finalmente
entendeu as forças ocultas que tinham empurrado todos os outros familiares para
os demais cômodos do apartamento – e segurado o irmão mais novo com ele na
sala. Só os dois. Tinha sido exatamente assim na final da Copa anterior, quando
a decisão acontecera também nos pênaltis, e os amarelos tinham levantado o
caneco, depois de 24 anos de seca. Era isso! Quatro anos depois, bola na marca
da cal de novo, claro que todos deveriam seguir o mesmo ritual. Óbvio. Natural.
Obrigatório. Superstição coletiva. Irracionalidade racional – e vencedora. Sem
que nada precisasse ter sido combinado. Não teve ordem, comando ou imposição. Cada
um sabia o que precisava fazer. Achava lindo o futebol também por conta dessas
mandingas. É isso, repetiu baixinho. Vai dar certo. Lembrou de cada um dos
familiares reunidos para ver a semi, como se passasse a tropa em revista. Começou
a contá-los – um, dois, três... catorze... quinze... Como quinze? Estancou. Ficou
completamente pálido. Pôde sentir o sangue gelar.
Anita
voltava da cozinha. Tinha ido beber água, comer um bolo de chocolate.
Aproveitou e tomou um café. Foi o suficiente para deixar Ernesto profundamente irritado.
Como é que alguém consegue pensar em comida em decisão de pênaltis em semi de
Copa do Mundo? É como querer desafivelar o cinto de segurança e ir ao banheiro
com o avião em pleno voo, coisa que a namorada também adorava fazer. E que
raios afinal ela estava fazendo ali, no apartamento dos pais dele, naquele
começo de noite? Ah, sim, ele tinha convidado. Mas éramos 14 na última final,
lembrou. Refez as contas, um por um, usando os dedos para registrar cada um dos
parentes. Catorze, confirmou. Éramos catorze. Agora somos quinze. A namorada
era um elemento estranho. Fato inquestionável. Teve mau presságio. Sentiu leve
tontura, tudo escureceu de repente, numa fração de segundo. Não vai dar certo.
Não vai dar certo. Olhou angustiado para a companheira, acomodada
tranquilamente num banquinho, ao lado do sofá. Ela ainda limpava as migalhas de
bolo dos lábios. Colocou o guardanapo sujo na mesinha de canto. Cruzou as
pernas. Sorriu para Ernesto. Ela não estava na sala há quatro anos, Ernesto
repetia, sequer existia, eles não namoravam, nem se conheciam. Estava solteiro.
Definitivamente, só podiam estar naquela arquibancada doméstica ele e o irmão
mais novo. Se não fosse assim...
Ensaiou.
Montou a fala na cabeça. Pensou em cada palavra. Tinha de ser rápido, certeiro.
A disputa ia começar. Que merda, que merda, era horrível. Mas inevitável. Ela o
conhecia, vá lá, ia entender. Já tinham passado poucas e boas por conta de
futebol. A do ano passado tinha sido terrível, ele reconhece, derrota do time
do coração na final do campeonato estadual, no último minuto, a fila que
continuava. Lá se vão dez anos sem uma tacinha sequer. Não suportou o baque. Teve
um colapso nervoso. Primeiro foram as mãos, que começaram a formigar. Não
conseguia mexer os dedos, por mais força contrária que fizesse. Quanto mais
tentava, mais doía. Os braços e as pernas travaram em seguida. Por fim, os
músculos do rosto também foram paralisados. Tentava desesperadamente falar, mas
a boca não obedecia. Saíam apenas sons desconexos. Tinha perdido o controle
sobre o próprio corpo. Estava completamente inerte, entregue a uma dor que não
conhecia. Teve medo. Virou a madrugada no hospital. Levou bronca do médico. Para
tentar desanuviar os ânimos e manter o bom humor, saiu de lá dizendo que talvez
a loucura apaixonada dele por futebol fosse mais um experimento da evolução
natural darwiniana, a reforçar a seleção das espécies e forjar o Homo sapiens
fanaticus futebolisticus.
Anita
ficou furiosa, mas esteve o tempo todo ao lado dele. Ernesto prometeu que nunca
mais aconteceria, que mudaria sua relação com o nobre esporte bretão. Durante
um tempo, pouco mais de seis meses, fez terapia. Desistiu quando percebeu que o
analista tinha se tornado mais um amigo com quem discutia a rodada futebolística
do final de semana. Votavam nos gols mais bonitos, falavam sobre lances
polêmicos. Era incontrolável, muito mais forte que ele. Para quem achava aquela
relação com a pelota uma grande bobagem, ele respondia pedindo ajuda ao genial
Nelson Rodrigues, que dizia que o “futebol é passional porque jogado pelo pobre
ser humano”.
Verdade
que, depois do trauma nervoso, Ernesto começa a ver os jogos com mais
serenidade. A calmaria dura cinco minutos, no máximo - vai se deixando levar
pela tensão, é tomado por ondas e impulsos, demônios que vivem nas entranhas e,
quando percebe, já foi, já está novamente transtornado. Naquele começo de noite
fria, semi-final de Copa do Mundo, o grau máximo de desequilíbrio fora novamente
alcançado. Não tinha mais censura. Aproveitou o embalo. Precisava falar.
-
Amor, é que... é... sabe... é que na final da última Copa, nos pênaltis, só
estávamos eu e meu irmão aqui na sala.
-
Sim, a gente não se conhecia.
-
Pois é. Então. Seria bom se fosse assim de novo.
-
Não entendi.
-
Todo mundo já saiu daqui. Meu pai, minha mãe...
-
Verdade.
-
Só falta você. Acho que seria bom se pudesse sair também.
Quase
travou. A última frase saiu de uma vez só, sem parar, como metralhadora, para
não falhar, não empacar. O olhar de Anita foi fulminante.
-
Não acredito.
-
Nem eu. Mas veja bem, são só cinco minutinhos. Essa porra é semi-final de Copa
do Mundo, não é joguinho contra o Bandeirante de Birigui. Não é qualquer
porcaria. Você volta quando acabar. A gente comemora. Vai na minha, vai dar
certo.
O
irmão fazia cara de paisagem, constrangido.
Anita
sabia que o namorado era um cara cheio de manias futebolísticas. Estavam juntos
há quase três anos. Resignada, aceitava que ele usasse as mesmas roupas em
jogos decisivos, que ficasse sempre na mesma posição e setor no estádio, que
batesse três vezes no controle remoto quando a transmissão da partida fosse
começar na televisão, que colocasse a mão na testa e dissesse “sai, sai, sai”
quando era bola cruzada na área do time dele, que ficasse mudo desde manhã
cedinho em dias de jogos importantes. Mas não entendia. Do fundo do coração, fazia
força, muita força, mas não entendia. Detestava fazer o papel da vilã da
história. Pensava, no entanto, se o namorado suportaria seguidas situações de
enorme estresse – e, principalmente, ficava imaginando como seria quando
tivessem filhos. Era com ele que ela queria casar, estava convicta. Tinha medo
de ficar viúva precocemente.
A
namorada sempre dizia para as amigas que Ernesto era das pessoas mais racionais
que conhecera, metódico, ponderado, equilibrado, ateu convicto, a desconfiar de
todas as espiritualidades. Jamais o tinha visto rezar, recorrer a apelos a
anjos ou santos, nem nos momentos mais sofridos e dramáticos, quando sabia que
o companheiro estava fragilizado. Ele dizia que as leis da natureza lhe bastavam.
Não movia uma palha antes de pensar com cuidado sobre cada decisão que
precisava tomar. Aos 30 anos, formado em História, o jovem estava concluindo o
mestrado, uma pesquisa sobre a Guerrilha do Caparaó, que combateu a ditadura
militar entre 1966-67, na divisa do Espírito Santo com Minas Gerais. Com futebol, e só com futebol, Ernesto
ficava alterado.
Anita
era justa, reconhecia que o namorado não se envolvia com torcidas organizadas,
escapava delas, jamais se metia em brigas ou confusões, condenava qualquer
forma de violência. Mas era outro sujeito quando a bola rolava. Ela ficava
assustada com a transformação. Não era o universo dela. Gostava do jogo, de ir
aos estádios, acompanhava os campeonatos, torcia – para o mesmo time de coração
de Ernesto, ainda bem, acabava evitando outras discussões. Tinha sido no
entanto criada a entender futebol como sinônimo de diversão, jamais de
sofrimento. Achou que era hora de pedir truco. Resolveu bancar.
-
Não vou sair desta sala. Melhor, se eu sair, não volto nunca mais.
Ernesto
acusou o golpe. Entendeu perfeitamente a mensagem. Conhecia bem a namorada. Sabia
que ela falava sério. Não iria recuar. Ele ficou gelado. Ferrou, pensou. Vamos
perder. Já era. Sem chances. Não se deve cutucar as entidades do futebol. Não
perdoam. São implacáveis. Não se brinca com tradição. Mas... fazer o quê? Sabia
que não ia adiantar insistir, pedir de novo. Talvez cruzasse uma linha
perigosa, sem volta. Amava Anita. Além do mais, na telinha da TV o primeiro
batedor com camisa amarela já estava com a bola nas mãos, dirigindo-se lentamente
ao local da cobrança. A namorada estava com cara de pouquíssimos amigos. Conformou-se.
Sentou
no chão, mão direita grudada na poltrona. Exatamente como fizera quatro anos antes.
Puxou o ar. Não soltou. O primeiro canarinho mandou a bola na lua. Filho de uma
égua, imbecil! Acabou. Eu sabia. Ameaçou olhar para a companheira e gritar “eu
avisei!”. Recuou. Teve plena noção do perigo, apesar das fortes emoções. Ainda
restava uma nesga de equilíbrio, instinto de sobrevivência. Começou a sentir as
mãos formigando, os músculos se contraindo. Sentiu medo dos espasmos. Esticou
as pernas e os braços. Alongou. Agora não, por favor. Procurou controlar a
respiração. Abria e fechava compassadamente a mão esquerda – a direita não
soltava a poltrona, nem por decreto do presidente do Supremo Tribunal Federal.
Gol
dos laranjas. Empatamos, mas já batemos um a mais. Mesmo assim, Ernesto empurra
a poltrona e faz com que ela se choque três vezes e ritmadamente contra o sofá,
comemorando. Fizera assim na última final. Era preciso repetir. Segundo gol dos
laranjas. Também convertemos. Mais três batidas com a poltrona. Pressiona os
dedos das mãos, três vezes, girando também os pés. Precisa soltá-los, aliviá-los.
Não pode surtar. Não quer surtar. Anita olha discretamente para ele, a conferir
se está bem. Parece preocupada. Os laranjas perdem a terceira cobrança – defesa
espetacular do goleiro verde água! Vai que é sua, goleirão! Vai que é sua! Ernesto
fica de joelhos, beija a camisa. Como há quatro anos. Volta rapidamente para a
posição original. Tudo igual. Gol canarinho, empate laranja, mais um amarelo,
outro laranja. Cinco batidas para cada lado. Quatro a quatro. Tudo igual. Vamos
para as cobranças alternadas. Ninguém erra. Chegamos à décima rodada. Gol
amarelinho. Poltrona jogada três vezes contra o sofá.
O
cobrador adversário toma distância. Na sala, sem tirar a mão direita do pé da
poltrona, Ernesto começa a falar bem baixinho “vai errar, vai errar, é agora,
só pode ser, vai errar”. Dera certo da última vez com o cara da camisa azul e
rabinho de cavalo. Ele olhou para a namorada. Sentiu o corpo estremecer, aquela
sensação de “a morte está passando”, como diz a crendice popular. Era um sinal.
Num átimo de segundo, seguindo os instintos e as vozes de entidades
futebolísticas, já que não estava tudo exatamente como há quatro anos, resolveu
entrar de vez naquela dança e inovar. Era a bola do jogo. Arriscou tudo. Correu
para a cozinha. Ficou de joelhos, de frente para a geladeira. Fechou os olhos. Curvou-se
para a frente. Encostou a testa no chão. Esticou os braços, na horizontal. Nunca
tinha feito isso. Aguçou os ouvidos. Ficou esperando, controlando o pênalti apenas
pelos sons.
Descobriria
depois que a última batida laranja explodira no travessão. Levantou de um pulo
só, com a festa que vinha das ruas. Disparou para a sala. Deu tempo de ver a
poltrona sendo chutada com raiva pelo irmão. O móvel foi parar no meio da sala,
pernas para cima. As portas dos quartos começaram a se abrir, freneticamente,
numa sinfonia de chaves e maçanetas. O pai voltou correndo da área de serviço
(quase derrubou a santa, cuidado, ainda tem a final). Ernesto imaginou ter
visto alguém também escapando do banheiro, chorando. Palmas, urros, um primo se
atirou no chão do corredor, chegou deslizando até a sala, de peixinho, tirando
fina da quina da parede. Todos pularam sem dó em cima dele, pirâmide humana a
amassá-lo. Não reclamou. Também não entendia nada do que gritavam. Ouviu baterias
intermináveis de rojões. Buzinas começaram a tocar. Ainda não tinha vuvuzela. Alguém
colocou o som da televisão no máximo. Identificou o Tema da Vitória. A sala
tinha virado uma verdadeira feira livre. As arquibancadas – nada de padrão FIFA
– estavam novamente lotadas. Exultantes.
Quando
conseguiu recuperar os sentidos, se livrar dos abraços, camisa ainda mais
ensopada, apertou a coluna que latejava. Correu para ver o replay, a cobrança
perdida pelos laranjas, que classificou os amarelos para a final. As mãos não
formigavam mais. Apalpou o rosto. Massageou as bochechas. É, estou bem. Tudo
certo. Será que aprendi a controlar aquela porcaria?, pensou. A dúvida fez com
que se lembrasse de Anita, que continuava sentada no banquinho, sozinha, olhando
fixamente para a TV. Já tendo voltado do inferno, novamente em sua rotação
normal, procedimento operacional padrão, Ernesto tinha plena consciência da
bobagem que havia feito. Sem jeito, aquela clássica expressão de “preciso
reparar a cretinice” escancarada no rosto com um baita sorriso amarelo, foi
lentamente até a namorada, de joelhos. Você é pé quente! Dá sorte! Vamos ver
juntos a final! E eu nem passei mal... Me abraça?
Ela
só levantou a sobrancelha esquerda, sem alterar o tom de voz. Foi firme.
-
Vamos conversar lá fora.
-
É... Você viu, eu nem passei mal.
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