O muro naquele trecho era baixo, pouco mais de um metro. Não tinha nem o antiquado e carcomido arame farpado com cacos de vidro nem a cerca eletrônica com câmeras de vídeo, parafernália moderna de segurança tão comum nos prédios de luxo da cidade. Alto, esguio, barba por fazer, uns vinte anos, André vestia camiseta preta e calça de moletom da mesma cor. Joana estava de cabelo preso, agasalho também preto, com capuz, mangas arregaçadas, bermuda jeans, tênis colorido e sem cadarço. Lino, o mais velho, perto de 40 anos, carregava uma mochila nas costas (parecia pesada) e, coincidência, trajava camisa preta de gola, mangas longas. Conversavam em tom bem baixo, quase sussurrando, como se não quisessem ser ouvidos. Eram quatro da manhã. A avenida estava praticamente deserta. Olharam para a direita, miraram a esquerda. Tudo certo. Num aceno de cabeça de Lino, movimentos ensaiados e sincronizados, pularam o muro, sem dificuldades.
Começaram a caminhar com passos largos, ritmados, deixando para trás túmulos imponentes e garbosos de várias famílias quatrocentonas paulistanas. Contornaram a capela, paredes amareladas já descascando. Joana fez o sinal da cruz, três vezes. Beijou o crucifixo preso a um cordão enrolado no pescoço. A missão daquela madrugada nem de longe lembrava os agitados dias de junho, quando tinham marcado presença nas manifestações que chacoalharam a capital paulista, sempre vestidos de preto, a queimar bandeiras vermelhas, dos movimentos negro e homossexual e a gritar "sem partido, minha única bandeira é a do Brasil, comunismo nunca mais!". Na escuridão silenciosa, André seguia um pouco atrás, ressabiado, um frio na barriga, tentando não aparentar medo. Não gostava dessa coisa de estar tão perto dos mortos. Tinha um nó na garganta, a sensação de estar sendo vigiado. Lembrou das histórias de fantasmas que ouvia da mãe, quando criança. Quase ao mesmo tempo, os três viraram à esquerda, estreita e longa alameda com jazigos ainda mais suntuosos dos dois lados, a marcar o caminho. Avistaram, barranco abaixo, um antigo casarão.
Lino fez sinal de positivo, confirmando satisfeito - 'é ali mesmo'. Desceram o escadão correndo, de dois em dois degraus. Plano seguido à risca, tudo previamente combinado, Joana deu a volta no casarão, certificando-se de que estavam realmente sozinhos. Sorriu. Área limpa. André deu uma voadora e meteu o pé na porta de madeira, que não ofereceu resistência e se abriu, rangendo. Lino já tinha retirado da mochila duas marretas. Joana agora segurava uma lanterna que timidamente iluminava o ossário - o suficiente para que, naquela penumbra, uma a uma as gavetas fossem sendo estouradas e violadas, a marretadas. Dezenas delas foram destruídas, sem dó ou pudor, com as ossadas sendo violentamente atiradas no chão, com raiva e adrenalina a mil. Lino e André espumavam, em êxtase. Tinham sangue nos olhos. "Filhos da puta!", praguejou o mais velho, fazendo questão de pisar em crânios e fêmures, agora todos espalhados e misturados, sem os pequenos cartões com informações preciosas, como datas e locais de origens. "Terroristas de merda, vergonha da nação!". Acertou um chute num crânio, que se espatifou na parede. Cuspiu em um pedaço que foi parar perto da porta, já do lado de fora do casarão. Elétrico por conta do comportamento do amigo, André, ensandecido, continuava distribuindo marretadas nas gavetas. "Odeio todos vocês. Escória do Brasil. Vermelhos do caralho". Joana continuava alerta, na entrada do ossário, montando guarda, uma picareta na outra mão, atenta a qualquer movimento estranho ou presença indesejada.
A invasão demorou pouco mais de dez minutos - e deixou fragmentos de madeira, gesso, cimento, sacos plásticos e ossos por todos os lados. Escreveram numa das paredes externas do ossário: "Viva a ditadura!". Em mais um aceno de Lino, guardaram as ferramentas na mochila e saíram correndo. Refizeram o caminho - o escadão, a alameda com os túmulos grandes, a capela, o muro. Ofegantes, já do lado de fora do cemitério, tarefa cumprida, respiraram aliviados. "Vamos beber no boteco ali da esquina, até amanhecer. Agora não passa ônibus. Merecemos. Precisamos relaxar e comemorar. Deu tudo certo", convidou Lino. Os três se abraçaram.
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Olhou pela janela da frente. A casa estava cercada. Tirou a arma da cintura - um velho revólver, que já tinha travado numa operação de invasão a um banco - e decidiu tentar escapar pelos fundos. Não deu tempo sequer de chegar ao quintal. Ouviu o estampido seco, rápido. Sentiu dor lancinante, perto do joelho. Tombou, já sem muita consciência de onde estava. Os chutes vieram de todos os lados - na cabeça, nos ombros, no estômago, no joelho ferido. Desmaiou. Foi encapuzado e arrastado para uma veraneio cinza, placa fria.
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- Fala, comuna safado! Quem mais participou do roubo ao banco do Centro?
Ele era um farrapo humano, ferimentos espalhados pelo corpo, hematomas, dentes quebrados, ouvidos sangrando. Não conseguia falar. Mesmo que quisesse. Pensou em soltar informações falsas, para despistar, ao menos ganhar tempo, parar de tomar porrada. Não articulava as palavras. Começou a se contorcer, freneticamente. Choques elétricos. Um meganha chegou por trás e deu-lhe um murro na nuca. Curvou-se. Na volta, sem conseguir medir ou controlar os movimentos, bateu violentamente a cabeça na parede. Mais choques. Mijou. Cagou. Gritou. Palavras desconexas, desesperadas. Ninguém ouvia.
- Quero nomes, filho da puta. Me dá os nomes dos canalhas malditos! Todos eles. Você sabe. Você sabe! Fala, seu merda!
Jogaram água nele. Aumentaram a voltagem dos choques. Com um alicate, lentamente, arrancaram-lhe as unhas dos pés. Uma a uma. Outro meganha deu última tragada num cigarro, para depois apagá-lo no peito de Cesar, codinome Camilo, militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e integrante da célula de mobilização e comunicação da organização comandada pelo temido Carlos Marighella, inimigo número um da ditadura civil-militar brasileira, e que tinha sido friamente assassinado em emboscada na Alameda Santos alguns dias antes.
Arrastaram-lhe para perto de um enorme tanque. Água imunda, barrenta. Fétida. Foi puxado pelos cabelos - e mantido debaixo d'água por quase um minuto. Debateu-se, em desespero. Tentou respirar. Engoliu água. Vomitou.
- Deixa de ser burro, animal. Ninguém vai te ajudar. Acabou para vocês. Vamos pegar todos, um por um. Mas antes você vai falar.
A cabeça foi novamente mergulhada no tanque. E mais uma vez. Outra. Quase sem tempo para que ele pudesse recuperar o fôlego. E assim foi por mais de meia hora. Sentiu o coração estourar. O corpo inteiro estremeceu. Ainda pode sentir um cabo de vassoura sendo enfiado no ânus, ainda com a cabeça na água. Tentou buscar o ar, de novo. Não conseguiu. O corpo foi amolecendo, aos poucos. Lentamente. Puxou o ar. Não soltou. Já estava morto quando tiraram a cabeça dele do tanque. Era uma massa sem forma de órgãos. Tinha sido brutalmente torturado, durante três dias. No chão, desfalecido, sem vida, ainda levou pontapés. Urravam de raiva. O ódio era maior ainda, porque Cesar não tinha falado.
- Filho da puta, filho da puta. Canalha. Não falou. Burro. Vai queimar nos infernos, terrorista da porra. Um a menos! Viva o Brasil!, gritou o chefe dos torturadores, que ordenou que fosse seguido o procedimento operacional padrão. Cesar deveria ser enterrado como indigente, em vala clandestina.
- Vocês sabem o que fazer. Não deixem pistas. Não digam nada aos parentes. Será mais um que sumiu. Não vai fazer falta.
Cantaram em coro o hino nacional.
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Acordou estranhamente cedo naquela sexta-feira, emenda do feriado de Finados. Ainda estava tocada, abalada. O dia anterior tinha sido emocionalmente intenso - participara de um ato político que homenageara os mortos e desaparecidos pela ditadura e que exigia ainda que as ossadas agora guardadas no cemitério do Araçá, região oeste de São Paulo, fossem finalmente identificadas. Há fortes suspeitas de que algumas delas possam ser de militantes assassinados pelo regime de terror. Na cama, pelo celular, acessou o noticiário da internet. Deu um grito horroroso. "Ossário é invadido e violado no cemitério do Araçá", dizia a manchete de um dos portais.
Jogou longe os lençóis, tropeçou nos chinelos. Trocou-se em menos de cinco minutos. Nem tomou café. Precisava ir correndo ao cemitério. Uma das ossadas guardadas naquelas gavetas criminosamente arrebentadas a marretadas durante a madrugada provavelmente era do pai dela. Cesar. Ou Camilo. Camila - evidente homenagem à alcunha de guerra do militante da ALN - tinha só dois anos quando o pai foi preso e trucidado pela ditadura. Desde aquele longínquo dezembro de 1969, a família peregrina incansavelmente, em busca de informações sobre o paradeiro do companheiro de Marighella. Sempre esbarraram em negativas, falsas promessas, pistas desencontradas, registros fragmentados, ausência total de vontade política. Sofrimento sem fim.
As esperanças renasceram quando a vala clandestina do cemitério de Perus foi descoberta e aberta, em 1990, na administração da prefeita Luiza Erundina - que, aliás, também participara do ato político no Araçá, no dia de Finados. Mas a frustração que veio em seguida talvez tenha sido maior ainda. As ossadas passaram anos empacotadas e empilhadas num canto de um galpão quase abandonado na Universidade Estadual de Campinas, até serem transferidas para o Araçá. Mesmo depois de quase trinta anos da redemocratização do país, os familiares continuam lutando para que as ossadas sejam examinadas e identificadas. Permanecem firmes, embora às vezes a agonia a a sensação de abandono e fracasso sejam quase insuportáveis. Camila não se conforma - lembra que já passamos pelos governos do sociólogo uspiano, do líder operário do ABC e da militante presa e torturada. Em graus e situações diferentes, os três foram vítimas da ditadura. E nenhum deles, avalia, enfrentou de fato o desafio de exorcizar os fantasmas dos anos de chumbo. Nenhum deles garantiu o amplo direito à justiça. à verdade e à memória.
Naquela manhã de sexta-feira, Camila torcia para que o metrô andasse muito mais rápido. Não conseguia esconder a tensão. Mexia as pernas, batia os dedos na capa do livro que carregava (nem pensar em se concentrar na leitura de "Barba ensopada de sangue", romance premiado de Daniel Galera), olhava de um lado para outro do vagão. Tinha medo brutal de ter perdido os últimos vínculos materiais que poderiam ligá-la ao pai. Tinha as memórias, as histórias narradas pela mãe, pelos avós, pelos amigos de militância. Tinha fotos do pai com 22 anos, pouco antes de ser preso e assassinado. Mas queria o corpo. O direito ao luto. O velório. O enterro. O ritual de passagem. A despedida, tão necessária à espécie humana.
Subiu as escadas rolantes aos saltos, atropelando as pessoas, sentindo o coração bater na boca. No ponto de ônibus, bem em frente ao cemitério, estavam sentados dois rapazes - um jovem, outro mais velho, mochila nas costas - e uma garota, cabelos presos. Os três vestiam camisas pretas. Os olhares se cruzaram, fração de segundo, e rapidamente se desviaram. Camila entrou apressadíssima no cemitério. Queria ter notícias do pai. Precisava ter notícias do pai.
Depois dos brindes e da bebedeira de comemoração, que invadiram a manhã ensolarada da sexta-feira, Lino, André e Joana continuavam esperando o ônibus para voltar para casa. Tranquilamente. Impunemente.
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