quarta-feira, 13 de julho de 2016

PERIPÉCIAS EM GRAMADO

05 de julho

Quando a ordem é tirar os pezinhos do chão e 'tripulação, decolagem autorizada' para viajar a sei lá quantos pés de altitude, esse papinho de 'a viagem até que foi boa' nunca me convenceu. Em uma hora e meia, o avião furou três zonas de turbulência. Chacoalhou, deu estranhas rabeadas. Acende e apaga o sinal de afivelar cinto de segurança. Tanto faz, não tiro o cinto nem levanto da poltrona. Nem sob decreto de condução coercitiva do juiz de Curitiba. Dos casarões portugueses e das ruas de pedras feitas para equilibristas, em Paraty, desembarcamos na Gramado das casinhas alemãs com telhados inclinados. Foi tarde de dizer 'olá, chegamos, muito prazer. Encantados'. Primeiro contato. Expedição desbravadora pelos quase quatro quilômetros da avenida principal, a Borges de Medeiros. Parada para poses e fotos no Palácio onde acontece o tradicional festival de cinema da cidade. I am the king of the world. Tudo bem, está valendo, embora esse tenha conquistado o Oscar. Every night in my dreams. Na Rua Coberta, também ponto badalado da cidade, um chocolate quente de lamber os beiços e fazer tilintar a alma, daqueles de sorver bem devagarinho e de deixar em êxtase boleiros do Inter e do Grêmio antes de final do gauchão. A catedral de São Pedro, todinha construída com blocos retilíneos de basalto, é arquitetonicamente belíssima. Palavra de um ateu que termina ainda hoje a leitura de 'O Reino', romance do francês Emmanuel Carrere que narra as origens do cristianismo e os entreveros e os bem bolados entre Pedro, Paulo, Lucas, João. O teu jeitinho não nega, turista, porque és turista no andar, falar, olhar, perguntar. Os turistas paulistanos ainda tivemos tempo de quase cair numa pegadinha. Sabe aquela das facas ginsu, 'e não é só isso'? Os mais velhos vão se lembrar. Pois então, nos ofereceram dois ingressos para o Snowland, uma das atrações turísticas mais concorridas daqui, patinação e tobogã no gelo, em troca de 'meia hora para ouvir sobre um novo empreendimento nosso'. Desconfia, cara, desconfia. Muita moleza. Óbvio, o desejo não inicialmente revelado era nos vender frações de um super, mega, blaster e incrível novo resort que será inaugurado em breve, para passarmos todas as nossas férias, até o fim dos tempos. Uns dez mil reais para começar a brincadeira. Atiraram no alvo errado - um ariano odiado pelo sistema porque nem cartão de crédito tem, uma escorpiana que sente de longe o cheiro de roubada e duas crianças que nos pediam 'vamos sair daqui e continuar nosso passeio' com os olhos. Antes que a tal apresentação pudesse chegar aos quinze minutos, interrompi a mocinha, muito simpática, agradecendo educadamente a tentativa. 'Não é o nosso perfil. Vamos parar por aqui'. Ela ficou aparvalhada, sem saber o que dizer. 'Está tudo bem, você está fazendo o seu trabalho. Apenas somos as pessoas erradas'. Depois de consultar o supervisor, voltou muito constrangida e decepcionada e gaguejou que poderíamos ficar com os ingressos, como cortesia. Era só assinar um papelzinho. Nada de assinaturas. Nem que o Janot tussa. Grato. Fica para a próxima. Jantamos de nos entupir num rodízio de pizzas. Quando saímos do hotel, quatro da tarde, o termômetro marcava vinte graus. Um blusão e nada mais. Ousei fazer troça de um amigo sulista que dissera 'te prepara para conhecer o frio'. Agora, nove da noite, já estamos na casa dos quinze graus. A massa de ar polar deve chegar durante a madrugada. Previsões sugerem entre quatro e seis graus até o final da semana. Quem disse que reclamo? Quem vem a Gramado quer ver geada. Você quer brincar na neve? Tudo bem. Daniel e Luiza esperam mais um episódio do Master Chef. De pijamas. Debaixo das cobertas. O quarto é quentinho. Por via das dúvidas, o aquecedor está ao alcance das mãos. É só dar um clique. Vai que...


06 de julho

'Pai, pai, olha, já está saindo fumaça da boca quando a gente respira!'. O tempo virou. Choveu durante a madrugada. Céu cinzento. Friaca. Prenúncio daquele friozão que meu amigo sulista tinha cantado em verso e prosa. Malhas, gorros, luvas, cachecóis, galochas, jaquetas e botas desfilam no café da manhã. Éramos todos branquinhos e branquinhas naquele nababesco salão, banquete de pães, cafés e doces. Não fosse a presença feminina, diria que era uma imagem digna de foto de posse do ministério do Vice Vigarista. Adoro de paixão a democracia racial brasileira. Cotas para quê? Para quem? Façam por merecer. O Brasil, aliás, continua firme em sua disposição de reparar injustiças históricas. Li logo cedinho que o Usurpador da República indicou um general da reserva que defende a ditadura para a presidência da Funai. A demarcação das terras indígenas estará agora submetida à segurança nacional, sob a batuta de um viúvo dos anos de chumbo. Agora vai. Todo dia voltará a ser dia de índio. E nós, aqui em Gramado, vamos fazer o que nesse dia de chuva? Tínhamos programado passeios de ônibus, paradas em vários pontos, mas o aguaceiro é inimigo dessas andanças abertas. Melhor buscar atração em lugar coberto. Resolvemos vestir as fantasias de Frozen e investir em aventuras em Snowland, o parque da neve. Chegar lá foi fácil. Mas, claro, todos os turistas de Gramado tiveram a mesmíssima brilhante ideia. Passamos a perambular por aquela que é verdadeiro símbolo nacional, instituição já tombada pelo nosso patrimônio histórico, celebridade que desafia ao limite nossa paciência... com vocês, a fila. As filas. Amigas e amigos, respondam com honestidade: o que seria de nossas vidas se não fossem as filas? Os portugueses organizavam filas para fazer escambo com os índios. Até o futebol, manifestação de nossa identidade, apropriou-se da expressão: ficar na fila é um tormento para qualquer torcedor. Significa seca de títulos. Sei bem o que é isso. Fiquei longos dezoito anos numa dessas. Vá lá, não tem um gostinho especial buscar posição no fim de uma fila, andando bem devagarinho, esperando chegar a vez de ser atendido? Não é estranho chegar num banco, num restaurante, num parque e perceber que está tranquilo e favorável, é só entrar? Como assim? Não tem fila? A gente inventa uma. Por favor, encostem aqui na parede, um atrás do outro. Organizadamente. Vida de gado. Povo marcado. Povo feliz. Snowland achou por bem levar ao extremo máximo essa percepção de que fila é uma delícia. O parque era uma fila só - ou uma infinidade de filas. Anda dois passos. Para. Espera. Mais três passos. Leva ombrada. Leva mochilada. Leva pisão no pé. Segue em frente. Tem gente que é vip, mais igual que os outros, e pula lá para os primeiros lugares da fila. A senhora reclama que a porcaria não anda. O marido tenta consolar e diz que até que está andando bem. Tem início uma DR. 'Você nunca concorda comigo'. Uma fila abala casamentos. A criança chora. A mãe berra, histérica. Pede paciência. Tem gente que guarda lugar para só mais uns trinta amigos. E a pessoa que estava bem atrás deles volta trinta casinhas no tabuleiro da fila. Tem neguinho à espreita, pronto para dar o bote e tentar furar a fila. Quando achávamos que estava acabando, desembarcávamos em outra fila. Era uma fila de filas. Paciência. Foi o nosso mantra. Depois de umas duas horas, conseguimos finalmente vestir as roupas quentinhas, as luvas e as botas para entrar - mais uma fila, claro - na montanha de neve. Com aquelas jaquetas laranjas e os capacetes, parecíamos pilotos da Aliança Rebelde de Star Wars seguindo em fila não para pegar os aviões e enfrentar a Estrela da Morte do Império, mas para apanhar nossas boias e deslizar deliciosamente por um enorme tobogã gelado. As risadas e as caras de realização da Luiza e do Daniel nos deram a certeza de que as filas tinham sido apenas detalhe tão pequeno de uma tarde que eles aproveitaram de montão. Alegria, alegria. Fizemos ainda guerra de neve, arriscamos tirar as luvas para testar resistência ao frio (com seis graus negativos, os dedos começavam a doer e enrijecer em segundos), demos boas risadas com os narizes vermelhos com o vento gelado, brincamos de afundar os pés no gelo e marcar as pegadas, pulamos e cantamos para esquentar os corpos. Ainda assim, decidimos que só estaríamos aquecidos de novo e de verdade com um bom chocolate quente. Motorista, por favor, toca para o Museu do Chocolate. Na entrada, absurdo dos absurdos, não tinha fila. Tudo bem, vai sem mesmo. Para compensar o tanto que já penamos. Nossa cota diária de filas já tinha sido cumprida (e comprida). O lugar é espetacular, muito divertido. Uma perdição para um chocólatra compulsivo. Praticamente todas as peças do museu - animais da Amazônia, gôndolas de Veneza, muralha da China, pirâmides do Egito - são feitas do mais puro chocolate. Na última sala, degustação à vontade. E chocolate quente. Se tivesse fila, entrava nela de novo. Só para saborear mais chocolate. Não quero outra vida. Uma querida amiga sempre diz que, a cada três meses de trabalho, deveríamos ter o direito de desfrutar de trinta dias de férias. Assinado. Revogam-se todas as disposições em contrário. Apesar das filas.


7 de julho

Não há semáforos em Gramado. Nos principais cruzamentos, o trânsito é distribuído e organizado por rotatórias. Regrado por bom senso. Funciona, acreditem. Sem buzinas. Nada de estresse. Basta você colocar o pé na rua, mesmo fora da faixa de segurança, para que os motoristas imediatamente freiem e garantam sua travessia. Pedestre tem sempre a preferência. Incrível, ninguém te xinga. A gente acena e agradece, por instinto. Eles acham estranho. Por que agradecer? Seria bom que os paulistanos afoitos e irascíveis fizéssemos estágio de direção por aqui. Um workshop rápido já faria diferença. A delegacia da cidade não funciona nos finais de semana e nos feriados. Nesses dias de recesso, se houver ocorrência, o delegado deve ser acionado em casa, por telefone. Está lá a dona autoridade tranquilona, poltrona confortável, quando vibra o celular no bolso. 'Alô, seu delega, perdoe o transtorno, sei que é folga merecida de vossa senhoria, mas é o seguinte... a casa caiu'. Gramado ficou três anos - entre 2010 e 2012 - sem registrar assaltos ou assassinatos. 'Depois a coisa piorou, com a chegada do tráfico de drogas. Mas ainda é bem seguro', conta nosso guia. Hoje foi dia de Raízes, passeio pelas comunidades italianas que vivem na área rural da serra, interior da cidade. O sangue Marconi da família comemorou. Aquele abraço caloroso do nonno, tapas nas costas, beijo estalado da nonna, 'como vai você, guri, prazer recebê-lo na nossa casa'. Com as falas sempre eufóricas e entusiasmadas, minha nossa, sotaques ainda misturados, dio mio, as mãos dançando no ar, gestos a definir entonações e ritmos, ma que belo, nos ensinaram como funciona o moinho d'água usado para amassar milho, trigo e arroz. 'Farinha é de milho seco. Fubá é de milho molhado'. Também revelaram os segredos - nem todos - da arte ancestral de processar a erva mate para fazer chimarrão. Daniel adorou a bebida. 'Parece chá de hortelã no começo, depois fica amargo. Mexi sem querer na bombinha e entrou farelinho da folha no canudo. Estão grudados nos meus dentes'. Luiza foi mais exigente. 'É muito amargo. Não gostei'. Sentamos para ouvir a nonna Maristela narrar deliciosamente as aventuras e peripécias dos bisavós dela que chegaram ao sul do país para formar os primeiros vilarejos italianos. A agricultura, as roupas, as cantorias, os tropeiros, a alimentação, os casamentos e as festas. Ela nos apresentou o papel higiênico usado pelos avós: uma bela e formosa espiga de milho, já sem os grãos. 'E funcionava que era uma beleza, viu! Tudo limpinho! Era o Neve deles'. Com galhardia e lucidez, chamou a atenção de um garotinho. 'Mamma mia, eu aqui contando todas essas histórias e você aí com fone no ouvido e jogando no celular?'. Pois é. Eles não têm aquela reunião urgente de trabalho, o e-mail que precisa ser respondido agora, só mais uma espiadinha no face, as tantas horas no trânsito infernal e a conferência por skype, demandas que tanto nos orgulham e longe das quais nos sentimos vazios, perdidos e culpados. Improdutivos. É evidente que eles também viram-se obrigados a aceitar imposições da dita modernidade. O senhorzinho simpático que nos ofereceu o chimarrão não tem mais autorização para produzir o chá, apenas para empacotá-lo. O forno dele é artesanal, de madeira, não mais aceito pelos controles de qualidade. 'Só podem ser de inox', diz, resignado. Cadeias produtivas, pressões do sistema. Não vivem isolados, em guetos. Ainda assim, o tempo deles passa mais devagar. Paz de espírito. Transpiram felicidade. Olham nos olhos e conversam. Firmeza e sinceridade nas palavras. Como se fôssemos grandes e antigos amigos. Na casa da nonna Zulmira tem queijo, salame, café e pão que acabou de sair do forno à lenha. Tem cantoria e dança. 'Mérica, Mérica, Mérica, cossa saralos ista Mérica'. Para terminar com a festa do 'quando se mangia la bela polenta'. Sol lindo, céu azul. Sem nuvens. Mas o vento é gelado, daqueles de fazer o pinguim não querer sair da casa que tem aquecedor e de obrigar a mamãe urso polar a colocar gorro e luvas no filhote. Fiz questão de ver Alemanha e França numa cervejaria alemã. Achei que teríamos comemorações e muitos brindes com as canecas de cerveja. Quem sabe outro sete a um, dois anos depois. Mas o juiz em dia de Marcio Rezende de Freitas (eita pênalti mandrake) e um Neuer em dia de Dênis (saiu do gol caçando borboletas) acabaram estragando a festa. Marselhesa na final. Só me resta tomar mais um chocolate quente.


8 de julho

A tocha olímpica passou por Gramado. A cidade travou. Várias ruas tiveram os sentidos de direção alterados. Outras foram totalmente bloqueadas. Funcionários da CET local confusos. Engarrafamento nas avenidas principais. Helicópteros de televisão e segurança sobrevoando o Centro. Estudantes aglomerados cantando nas esquinas. O garçom chegou atrasado para começar o turno de trabalho no restaurante. O taxista precisou se virar nos trinta e dar uma imensa volta para deixar um passageiro perto do Palácio do Cinema. Moradores reclamaram da confusão. Faixas e balões verdes e amarelos enfeitavam as janelas das casas e dos hoteis. Há dois anos, seria tudo bem. Hoje deu ruim, aperto no peito. Instintos mais primitivos. Lembro das manifestações golpistas na avenida Paulista. Do pato. Dos cartazes pedindo intervenção militar. Das selfies sorridentes com a tropa de choque da Polícia Militar. Da proposta de aposentadoria aos 70 anos. Da aberração da jornada de trabalho de oitenta horas semanais. Caminho calado. Bateu tristeza. Voltei a sorrir só quando chegamos a uma ruazinha que dá acesso ao Lago Negro, onde um garoto e uma garota distribuíam brindes dos patrocinadores da festa da tocha. Correram até a gente, aliviados. Nos encheram de bugigangas. 'Levem, levem. Por favor. Mandaram a gente entregar tudo. Mas fecharam as ruas por perto. Ninguém passa por aqui. Vocês são os primeiros'. Rimos também. Pegamos os apetrechos. Desejamos boa sorte. Seguimos. Os vinte minutos de pedalinho no Lago serviram como academia ao ar livre, até porque Daniel, nada competitivo, resolveu apostar corrida. Os músculos das pernas estão até agora doloridos. No ônibus turístico vermelho, dois andares, nos sentimos em Londres. Da janela, quase dava para colher laranjas nas árvores. No Mini Mundo, parada obrigatória em Gramado, nos sentimos como Gullivers em Lilliput. Aeroportos, pontes, navios, igrejas, vilarejos, casas e prédios em perfeitas e minuciosas réplicas miniaturas. Vinte e quatro vezes menores que os objetos originais. Tinha até ciclofaixa minúscula, pintada em berrante cor vermelha. Desconfio que o pequeno maldito prefeito desse micro lugar seja um desprezível petralha. É uma máfia. Impressionante, estão em todos os lugares. Atormentam até em miniatura. Vou sugerir que a musa Janaína entre com pedido de impeachment contra esse figurinha também. Apesar do PT, o passeio é obrigatório. Diversão certa. Almoçamos numa deliciosa e aconchegante cantina italiana. Visitamos o Mundo do Chocolate (diferente do Museu do Chocolate), que narra a história do cacau, da bebida dos deuses que alimentava imperadores e do doce cremoso e sem igual que embala minhas leituras nas madrugadas desde os tempos dos maias e dos astecas. Elementar, pausa para mais um chocolate quente. Esplendoroso. No Museu de Cera, já no final da tarde, espanto e encanto. Cento e dez bonecos distribuídos por salas temáticas - alguns, vagas lembranças dos personagens que representam; outros são perfeitos. Com tanta gente especial e importante reunida, aproveitei para ter um teretetê ao pé do ouvido com alguns deles. Papo curto e reto, para não atrapalhar a fila e os outros visitantes. Perguntei ao Marlon Brando/Vito Corleone, logo na primeira sala, se ele já tinha ouvido falar em Eduardo Cunha e Michel Temer. Para sir. Paul, dos quatro de Liverpool, um singelo aceno e um let it be. Bob Marley perguntou do nosso Santos. Indiana Jones/Harrison Ford, quando criança eu sonhava ser arqueólogo! Abraço apertado para o Han Solo. Com Muhammad Ali, a conversa foi séria. Jovens negros assassinados por policiais brancos nos Estados Unidos. Neymar, deixa de mimimi e joga bola também na Seleção. Entende, Pelé? Fica, Messi! Passei reto por Cristiano Ronaldo. Harry Potter, mestre Dumbledore tinha razão. São tempos obscuros. Dilma, minha querida, seu governo é péssimo. Mas você é a presidenta democraticamente eleita. Cinquenta e quatro milhões de votos. O resto é golpe. Cínico e hipócrita. Não há, aliás, boneco do Vice Vigarista. Fora, Temer! ET, te ajudo a ligar para sua casa. Ao mestre Yoda, desejei que a força esteja sempre com ele. Mandei um grunhido para o Chewbacca. Com a rainha Elizabeth foi tenso também. Que porcaria os ingleses fizeram na semana passada! Ela ouviu calada. Sem reação. Parece ter concordado. O último ambiente simula o salão oval da Casa Branca. É o momento da foto oficial, ao lado de Barack Obama, tendo a mesa presidencial como cenário. A imagem só pode ser registrada pelo fotógrafo do Museu, para depois ser comprada pelos visitantes. Cada família passava uns cinco minutos ali, clicada em várias poses. Os pais sempre sentados na cadeira do Obama, mães, filhos e filhas atrás, em pé. Quando chegou a nossa vez, resolvemos subverter a ordem e quebrar o protocolo. Combinamos que Elisa seria a presidenta. Eu, Daniel e Luiza ficaríamos ao lado dela. Assumimos nossos lugares. E deixamos o fotógrafo completamente desconcertado. Ele ainda tentou insistir. 'Mãe, o pai senta aí'. Elisa respondeu de bate-pronto. 'No nosso país, a presidenta é mulher'. O cara, com muita má vontade, foi ligeirinho. Só tirou duas fotos e nos dispensou. Devem ter saído tremidas. Borradas. Quem sabe até queimadas. Não importa. Nem quisemos ver. O que importa e que está reverberando até agora no salão oval é que, no Brasil, a presidenta é uma mulher. Até o Obama sabe disso. Ele riu junto com a gente. Discretamente, mas riu. Deu uma piscadela. Fez sinal de positivo. E disse, bem baixinho: 'sim, vocês podem'.


9 de julho

No livro 'Vozes de Tchernóbil', a escritora bielorussa Svetlana Aleksiévitch conta que os animais da região foram os primeiros a perceber a presença da radiação no ambiente, depois do acidente na usina nuclear. As abelhas ficaram sete dias sem sair das colmeias. Os pássaros silenciaram, deixaram de voar. Foram os bichos que alertaram os moradores dos vilarejos próximos à usina sobre os riscos e os perigos que estavam todos vivendo. Hoje, em Gramado, resolvemos enfrentar uma chuva ranheta e insistente e conhecer o zoológico da cidade, que abriga apenas espécies da fauna brasileira. Devidamente paramentados - agasalhos e capas, guarda-chuvas -, achamos que todos os bichos estariam festivamente à nossa disposição, para nos receber com confetes, serpentinas e fanfarras, agradecendo nossa presença e dizendo 'que bom que vieram, tchê'. Não foi bem assim. Encontramos muitos animais - onça, jaguatirica, macacos, jacaré, quatis, capivaras - escondidos e abrigados em tocas e cavernas, protegendo-se da chuva e buscando o quentinho e o aconchego de suas casas. Estavam a nos dizer - é tempo de silêncio e de descanso; voltem para o hotel e aprendam a aproveitar o valor e a delícia do fazer nada. A natureza é extraordinariamente inteligente. Arrogantes e soberbos que somos, achamos que podemos controlá-la, embora ela nos mostre cotidianamente que a relação é exatamente contrária. Tolos que somos, quem sabe até aceitemos trabalhar doze horas por dia, até os setenta anos, para garantir eficiência e produtividade. E ainda achamos que merecemos ser chamados de Homo sapiens.

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