Não foi uma Eurocopa de lamber os beiços nem de encher os olhos de quem ainda se delicia com as pinceladas e rabiscadas artísticas do futebol. Inchaços políticos - 24 participantes, contra 16 na última edição, em 2012, na Polônia/Ucrânia - nos brindaram com uma primeira fase em que garantir o resultado e se cacifar como até um dos quatro melhores terceiros colocados acabou sendo o objetivo de muitas seleções. Jogaram com o regulamento debaixo do braço, como se diz no jargão da bola. Pragmaticamente corretíssimas, travaram as batalhas com as armas e os barões assinalados, as normas que estavam combinadas. Segue o jogo.
Que foi não raro ranheta, truncado, arrastado, sonolento. Confesso que, em algumas pelejas, tive de buscar força espiritual extraordinária para não tirar uma pestana enquanto a redonda rolava. Tive de recorrer aos palitinhos para manter os olhos abertos. Até mesmo na grande final, ontem, no Stade de France (que definitivamente não suporta um Ronaldo), Luiz Figo, craque do escrete lusitano que chegou a a ser eleito o melhor do mundo em 2001 e se aposentou em 2009, foi flagrado bocejando pelas câmeras no televisão, no final do primeiro tempo. Estava chato mesmo.
Romênia, Croácia e Bélgica despontaram como ameaças às seleções de camisas mais pesadas. Jogaram como nunca, perderam como sempre. A Inglaterra foi a Inglaterra. Sem surpresas. A principal contribuição dos ingleses está em terem inventado essa maravilha arrebatadora chamada futebol. E a uma Copa do Mundo que venceram em casa (a gente sabe como). A anfitriã França, narrada em prosa como o esquadrão que, depois de tempos de crises, prometia voltar a fazer jus aos anos memoráveis de Balzac, Victor Higo, Platini e Zidane, uma nova geração de craques, alternou altos (alguns lampejos) e baixos (muitos). A Alemanha esteve distante daqueles jornadas embaladas pelas pajelanças dos índios pataxós vividas na Copa de 2014. Aos trancos e barrancos, a Itália fez até mais do que se esperava dela. A Espanha voltou a ser coadjuvante, para desespero de Cervantes. País de Gales e Islândia empolgaram pela animação, entrega e empenho manifestados em campo e pelas festas das torcidas nas arquibancadas. Campanhas estupendas. Fizeram história. Inesquecíveis serão as narrações de locutores de rádio galeses e islandeses a exaltar as peripécias de suas seleções em gramados franceses. Torci junto com eles. Agora, futebol que é bom...
Ora, pois, tenha a coragem, Chico Bicudo, você que também é Pereira por parte de pai, de família materna Ferreira de Castro, de profanar todas essas heresias ao patrício Manuel Joaquim Rodrigues Oliveira Ferreira Magalhães da Silva II, que estava ontem naquele mar vermelho numa das curvas do Stade de France (tinha estado também na tragédia do Estádio da Luz em 2004, quanto Portugal perdeu a final da Euro para a zebraça Grécia). O raparigo fica fulo da vida quando lhe dizem que a classificação na primeira fase veio com três empates chorados. E por acaso a Alemanha não empatou com Gana no Mundial de 2014? Quase não perdeu para a Argélia nas oitavas? Irrita-se e coça fortemente os bigodes roliços e bem aparados ao ouvir que o triunfo sobre a Croácia só veio na prorrogação. Pois, meu deus do céu, e a Alemanha também não levantou assim o caneco no Brasil? Fica rubro de raiva como a camisa dos heroicos boleiros descendentes de Vasco da Gama e com as bochechas inchadas tremendo de indignação se lhe dizem que a Polônia apenas foi despachada nos pênaltis. Faça-me um favorzinho e responda rápido - de que maneira o Brasil venceu a Itália na final em 1994? E explode num discurso saramaguiano sem pontuações a quem lhe provoca insistindo que Portugal derrotou a França na final por apostar num ferrolho de retranca e nos contra-ataques, porque foi exatamente essa artimanha, estás a ver, a que os franceses recorreram para ultrapassar a Alemanha na semi-final, e foram elogiadíssimos por essa postura, portanto tentem outra bobagem porque essa não está a funcionar, ora, que cacete.
Bravo, bravo! O gajo é preciso como as técnicas de navegação desenvolvidas pela Escola de Sagres. Está mais que coberto de razão. Futebol é também estratégia, entrega, vontade, desejo, sonho, sorte, gana. Alma. Mandingas. Treinamento. Oração. Ele rezou com fervor à nossa Senhora de Fátima quando Cristiano Ronaldo saiu machucado de campo. Pediu só mais um milagre. Suou frio e lembrou das histórias contadas nas rodas de família sobre um tal dom João que abandonou seu povo e fugiu de Lisboa na calada da noite com receio da invasão das tropas de Napoleão - mas que também não se ajoelhou nem jurou obediências ao general usurpador - quando Gignac mandou bola malemolente e traiçoeira na trave lusitana, aos 46 do segundo tempo. Esteve perto de um infarto, santinho roçando entre os dedos, quando foi a vez do balaço luso estourar no travessão dos azuis, na prorrogação, em falta cobrada por Guerrero. Para explodir num choro de transe com tons de quem assina o Tratado de Tordesilhas revisto e atualizado e volta a mandar no mundo, ó pá, quando a cruzada de fora da área de Éder, herói negro da Guiné-Bissau, finalmente venceu o estupendo arqueiro francês.
"Chegou a tua hora, Portugal!. Je T'aime, Portugal Je suis Portugal! Campeones!", berravam os locutores da rádio pública portuguesa, sem saber se narravam ou se comemoravam a épica conquista. Entre um grito e outro da torcida em êxtase no Stade de France, o patrício Manuel Joaquim Rodrigues Oliveira Ferreira Magalhães da Silva, agora campeão da Europa, declamava, com a mão no peito e os olhos cerrados, os versos decassílabos heróicos de "Os Lusíadas". Foi possível ainda ouvi-lo dizendo, quase num sussurro, 'deus do céu, muito agradecido, meu Fernando Pessoa, gratíssimo, meu Eça de Queirós, salve, Eusébio, salve, Figo. Leicester na Inglaterra, Audax no Paulista que ainda tanto me agrada, Chile em duas Copas Américas, Portugal no topo deste Velho Continente. Pois olha que esse mágico futebol estás a ficar interessantíssimo, belíssimo!'.
Fez questão de abrir os olhos para aplaudir o gajo Cristiano Ronaldo, com quem tem assumidas divergências ludopédicas-midiáticas (quantas vezes já não disse 'deixe de olhar para o telão e jogue bola, ora, pois!'), reconhecendo no camisa sete o coração valente de um líder e o talento dos boleiros especiais. Pulou e cantou com Rui Patrício, com Cedric Soares, com Pepe, com Jose Fonte, com Raphael Guerrero, com Renato Sanches, com William Carvalho, com Adrien Silva, com João Mario, com Nani, com João Moutinho, com Quaresma. Quando Éder aproximou-se do alambrado, ajoelhou-se, esticou os braços e reverenciou e prestou lealdade ao novo rei de Portugal. Mandou beijos para Fernando Soares. Desenhou no ar a cruz de Malta. Na saída do estádio, sem voz, bateu um zapzap para amigos e amigas que estavam hospedados numa casa perto do estádio: 'preparem o bacalhau e o vinho do Porto! Estou chegando com a taça!".
Nenhum comentário:
Postar um comentário