As noites já não são mais o momento de cair profundamente nos braços de Morfeu para buscar o justo descanso - ao contrário, transformaram-se em tormenta angustiante, mais uma etapa da ininterrupta jornada de preparação para as tarefas do dia seguinte, que vai começar cedo, bem cedo. Sem pregar os olhos, passamos mentalmente em revista as agendas, as reuniões, os textos, os deslocamentos pela cidade, as pressões, os relatórios, os projetos, as ligações, os e-mails que devem ser respondidos com urgência e sem falta e todo o restante de ações de que teremos de dar conta em mais um dia de exaustivo trabalho. Implacável, o relógio anda. Meia-noite. Uma da madrugada. A gente vira e revira na cama. Duas horas. O corpo pede, a cabeça não pára de funcionar. Três da matina. E vamos ficando cada vez mais agoniados.
Quando finalmente a manhã se anuncia (tudo o que conseguimos foram fragmentados cochilos), já passamos então a organizar a agenda da tarde - e quando esta chega, pensamos nos compromissos da noite. O sono é presença constante. Hora de dormir? Não conseguimos, novamente. Finais de semana? Momento de dar conta do que ficou pendurado durante a semana. O mundo do trabalho, mais do que em qualquer outra época, nos consome. O sistema é tão cruel que, quando dispomos por exemplo de tempo livre para uma sessão de cinema em uma tarde de uma segunda-feira qualquer, não conseguimos relaxar e aproveitar o filme, nos sentimos culpados. É um estranhamento que não cessa, algo como "nossa, o que estou fazendo aqui, não estou produzindo, sou inútil". Incorporamos definitivamente a máxima do "tempo livre é perda de tempo". O capitalismo agradece.
Há exatamente um ano, em agosto de 2010, li no jornal "O Estado de São Paulo" o artigo "O prazer da leitura sem pressa", de Patrick Kingsley, do jornal britânico "The Guardian", quando fui apresentado ao movimento "slow reading" que, sem negar os benefícios da internet, lembrava também que a rede está nos tornando sujeitos em permanente estado de excitação, cada vez menos atentos e concentrados, com enormes dificuldades de memorização e pouquíssima disposição para enfrentar leituras longas. O texto pedia para "desligarmos os computadores com mais frequência para redescobrirmos a alegria do envolvimento pessoal com o texto físico e a de absorvê-lo integralmente". Em tempo - o jornalista do "Guardian" já citava também o "slow food" e o "slow travel".
Por coincidência feliz, e sinal razoável de que muito provavelmente o desejo do "slow" se esparrama por diferentes frentes da vida cotidiana, li recentemente na "Folha de São Paulo" matéria da repórter Sabine Righetti a respeito do movimento "slow science". Nascida na Alemanha, a iniciativa cobra mais tempo e serenidade para que os cientistas possam desenvolver suas pesquisas, sem ter em suas gargantas a espada do "é preciso publicar, com urgência, para ontem". O texto cita o manifesto lançado pelo grupo, que não deixa dúvidas: "Somos cientistas, não blogamos, não tuitamos, temos nosso tempo. A ciência lenta sempre existiu ao longo de séculos. Agora, precisa de proteção."
Devo confessar que, de alguma maneira especial, provavelmente porque me aproximo dos 40 anos, o tal do "slow" acabou por me cativar e encantar. Menos pé no acelerador - mais pé no freio. É algo que, mesmo a duras penas, com avanços e recuos, vitórias e derrotas, tenho procurado viabilizar em meu cotidiano - tempo para a leitura reflexiva, tempo para a conversa com os amigos, tempo para as risadas com os filhos, tempo para pensar a vida com a esposa, tempo para o futebol, tempo para os almoços com pais e irmãos. Tempo. Arrumar tempo. Não é fácil. Trata-se de uma batalha diária, de conseguir conter ansiedades, de reprogramar cobranças. Mas tem valido - muito - a pena. Por isso, fico cá pensando com meus botões se não seria desejável investir na articulação de todos os "slows" para criar um grande movimento - o "slow life", que poderia ainda estar associado e carregar como lema complementar o "carpe diem", mensagem central inesquecível do filme "Sociedade dos Poetas Mortos".
Talvez um bom começo para a construção desse movimento seja a leitura de textos como os relacionados ao seminário "Elogio à Preguiça", organizado pelo filósofo Adauto Novaes (www.elogioapreguica.com.br). No artigo em que apresenta os princípios fundadores da iniciativa, Novaes cita o escritor francês Albert Camus para lembrar que “são os ociosos que transformam o mundo porque os outros não têm tempo algum” e que "é na vida meditativa que o homem toma consciência da sua condição – seus vícios e virtudes – e cria soluções para seus problemas". Para o coordenador do seminário, "o que importa hoje é propor a luta do progresso contra o progresso; isto é, a valorização do progresso do espírito, a valorização dos valores contra o progresso técnico, esta “ilusão que nos cega”. Eleger a quietude, o silêncio e a paciência para conhecer e aprofundar indefinidamente as coisas dadas".
Porque afinal, como lembra ainda Novaes, é preciso desconstruir e colocar rapidamente por terra os preconceitos que ainda envolvem a preguiça ("o preguiçoso é indolente, improdutivo, nostálgico, melancólico, indiferente, distraído, voluptuoso, incompetente, ineficaz, lento, sonolento, silencioso") para radicalizar seus efeitos transformadores e revolucionários - o silêncio e o fazer conscientemente nada que abrem brechas para a reflexão crítica e criativa, a construção de consciência sobre o mundo, o desabrochar de ideias e projetos, as iniciativas que rompem os grilhões que nos aprisionam à falsa premissa "para além do trabalho não há salvação. Ou dignidade".
Também participante do seminário, a filósofa Marilena Chauí reforça que "não é demais lembrar que a palavra latina que dá origem ao nosso vocábulo “trabalho” é tripalium, instrumento de tortura para empalar escravos rebeldes e derivada de palus, estaca, poste onde se empalam os condenados. E labor (em latim) significa esforço penoso, dobrar-se sob o peso de uma carga, dor, sofrimento, pena e fadiga". E Oswaldo Giacoia Junior escreve que "uma antiga sabedoria oriental considerava sábios aqueles homens simples, que mantinham-se ocupados o dia todo, e, no entanto, nada faziam. Isso porque a sabedoria deles consistia na consciência de que, em meio à mais intensa atividade, impera o repouso, por força do qual os homens agem, sem agir".
Não se trata de negar as tecnologias e as profundas transformações no mundo do trabalho - mas, ao mesmo tempo, não se deve aceitar com resignação o fato de sermos reféns do sistema. Se não dá mais para encostar a nuca em uma pedra para contemplar o firmamento, brincar de ligar os pontos e desenhar as constelações, como faziam os gregos, é fundamental resgatar e explicitar o potencial político da preguiça - não um pecado, mas um direito. Como afirma Novaes, em tom de brincadeira verdadeira, "é hora de criar uma Internacional da Preguiça".
Portanto: preguiçosos de todo o mundo, uni-vos!
Ótimo texto, professor. Parabéns! Ademais, seria interessante divulgar os programas citados por Patrick Kingsley que podem ajudar aqueles com dificuldades de concentração na hora de ler um texto na internet. São eles o Freedom, que, ao ser programado, desliga sua conexão com a internet durante um determinado tempo, e o leitor offline Instapaper, que remover anúncios e outras distrações da tela do PC. Fica a dica! Abraços
ResponderExcluirO problema de criar uma "Internacional da Preguiça" é a chance do racha: "Rede ou Tatame?" Aí se criaria a Segunda Internacional...
ResponderExcluirAbração.
Depois de um domingo no cinema com os 3 sobrinhos, tivemos tempo para conversar, brincar e ainda tomar um sorvete no domingo gelado de São Paulo. Hoje acordei pensando de como é bom ter tempo para as crianças que fazem parte da minha pequena família e que mesmo sendo pequena não consigo ter tempo suficiente para ela. Muitas vezes minha mãe reclama que não a vejo muito, e fico pensando...tenho que arranjar mais tempo para ela. Com sua preciosa indicação nosso livro da Universidade que lê neste semestre é "Hiroshima", e tenho exatamente uma semana para terminar o livro. Gostaria muito de ter mais tempo para apreciar essa leitura tão rica. Sempre tento convencer meu marido de aproveitar o ócio, ele sempre me repreende por simplesmente ficar deitada no sofá pensando, mas eu gosto demais de fazer isso. Aprendi desde criança que é necessário parar, pensar e daí proseguir. Se o movimento dos preguiçosos tem uma adepta "sem vergonha", esta sou eu.
ResponderExcluirAluna orgulhosa Rosângela
Tenho pensado muito que esse pé no freio permite também uma vida mais, digamos, simples. Sem tantos penduricalhos tecnológicos e comprados no tal mercado. Ter espaços em branco na agenda entre uma atividade e outra, por exemplo, que eu vá de ônibus (e não de carro) aos compromissos. E se vou de coletivo, posso ler mais, ouvir mais música, pensar mais na vida... Adorei, Bahiano Chico!
ResponderExcluirÉ muito bom ler e saber que, finalmente, meu filho, você está pensando e procurando agir de uma forma mais "light" em sua vida.Conte muito com nosso apoio e, sempre que achar um tempinho venha tomar um café conosco, eis que, somos quase vizinhos.Um grande beijo deste que muito o quer e muito o admira,
ResponderExcluirseu pai.
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ResponderExcluirTudo tem a sua hora para acontecer. A sua hora chegou. Ainda bem! Antes tarde do que nunca. Ótima sua idéia de "brecar", de "tirar o pé do acelerador". A vida é curta, filho. Assim, CURTA A VIDA, e tudo que ela te oferece.Viva a vida! Ratifico o convite para um "cafizinho", para "prosear" ou, simplesmente para NÃO FAZER NADA e sim JOGAR CONVERSA FORA.
ResponderExcluirParabens pela decisão de ser mais livre, leve e solto. Beijos da sua fão n°000
Peguei umas vias para distribuir entre meus colegas de trabalho. Muitos estão precisando rever seus conceitos...
ResponderExcluirValeu pela reflexão!
O grande cientista cearense Expedito Parente, criador do biodiesel, falecido em 13 de setembro deste ano, em e-mail enviado ao seu amigo Dr. Antero Coelho, falava exatamente deste tema. Ele disse: "Lamentavelmente o tempo é bem não renovável, a menos que a gente invente o BIOTEMPO..."
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