quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

CINCO SEM, DOIS COM. VAI SER ASSIM

Era impossível deixar a porta do banheiro aberta. Desafio insuportável até mesmo para os que se regozijam de ter olfato prejudicado. Os ventos e odores que de lá chegavam não eram nada simpáticos nem traziam notícias alvissareiras. Só merda - literalmente. Manter o ambiente fechado, por sua vez, significava produzir uma super bomba concentrada de cheiros fétidos e pútridos. Experiência química capaz de provocar engulhos, náuseas, ânsias e todo tipo de movimento e barulho estranho em qualquer estômago. Cinco dias sem dar descarga. Número um e número dois - outras cositas mais também, afinal somos todos humanos - devidamente depositados no vaso sanitário, de domingo a quarta, várias vezes ao dia, quatro pessoas ocupando o mesmo teto.Sólidos, líquidos e misturados. Abrir ou fechar a porta? Resolva esse dilema, por favor. Decifra-me ou devoro-te. Complete o dito popular: se correr... se ficar.... Sabe o inferno? Prazer. 'Mãe, estou apertado. Muito. Está pingando'. 'Calma, segura mais um pouco, menino. É o quinto do dia. Assim não dá. Já, já ninguém mais vai conseguir respirar aqui em casa. Já estamos providenciando máscaras. Sua cota de volume morto já deu por hoje. Aguenta aí. Não dá'. 'Ai, já dei nozinho na ponta. Que vontade... Posso então pelo menos tomar um banhozinho? Minha perna está coçando, meu braço está coçando, minha barriga está coçando. Meu pés estão parecendo carvão!'. 'Sem contar esse cheiro azedo de ganso. Que CC! Aff.... Precisa parar de suar, de jogar bola, moleque'. 'Mãe, eu sempre joguei bola'. 'Mas agora são outros tempos, entendeu? Tem até umas casquinhas se formando aqui atrás da sua orelha. Olha só. Que nojo'. Eram crostas grossas, peguentas. Grudentas. 'Vai, tudo bem. É caso de calamidade pública. Banho ou vou ter que interditar você. Mas seja muito breve e econômico. Temos só 30 canequinhas cheias. Use no máximo dez'. O noticiário de TV mostrava uma cidade em polvorosa. Alvoroço generalizado. Hospitais cancelando consultas e cirurgias, pilhas de copos, pratos e talheres sujos nos bares e restaurantes, hoteis com placas 'não aceitamos reservas', lojas fechadas, escolas e universidades em férias coletivas. Nas ruas, moradores com picaretas e marretas fazendo buracos em todos os cantos. 'Achei água aqui!', gritou um. 'Tem um filetinho aqui também. Tragam logo os baldes'. 'Putz, furei fundo nessa porra de esquina, mas veio nada. Seco. Sequinho. Tempo perdido. Vou tentar lá na outra'. O caminhão pipa que estacionou na frente do prédio de luxo foi imediatamente atacado por hordas de godos, visigodos e ostrogodos. O motorista só teve tempo de abrir a torneira. Saiu correndo. Sumiu. Pernadas, ombradas, cotoveladas, gritos, rasteiras, dedos nos olhos (e em outros orifícios). Madames de salto alto e bolsa Louis Vuitton a tiracolo passavam o rodo e distribuíam rabos de arraia. 'Pago condomínio em dia, tenho direito a mais litros. Sai da frente, mocreia. Faz três meses que você não paga. Já falei na última reunião, seu marido é um pilantra, caloteiro'. Nas periferias, seca total. Quem se importa? Que se virem com as sarjetas e o lodo. Só em dois lugares a água não faltava - avenida Paulista, 1313. Sagrado prédio da Fiesp. Para os patrões, claro. Aos empregados, o líquido precioso era terminantemente proibido. Fiscalização e controle totais, câmeras escondidas denunciando violações. Demissões sumárias. Justa causa. O outro lugar? A casa do governador, obviamente. Até a piscina estava cheia. Água limpinha e bem tratada. Foi quando a mãe bateu na porta da área de serviço - nem pensar em tomar banho no pestilento banheiro - e começou a gritar. 'Corre, filho, rápido, Aproveita. Está começando a chover. Traz o sabonete'. O moleque largou a sétima canequinha e saiu voando, enrolado na toalha. Desceram pela escada. A mãe já chegou à portaria só de calcinha e sutiã. Na calçada, já estava nua. Sem pudores, sem constrangimentos. Só alegria. Olhava para o céu, deixando a água cair pesadamente no rosto. Era um temporal. E daí? Ótimo que seja assim. O filho, mãos em concha acumulando a água, pulava e gritava. 'Banho, banho, finalmente um bom banho'. Multidões foram saindo dos prédios e das casas. Todos pelados. Quase em estado de transe. Aproveitando cada pingo grosso da chuva. Muitos se abraçavam. Alguns choravam. Deu até para ouvir alguém gritando 'eu sabia, deus é brasileiro, não iria nos abandonar. Agora o Cantareira vai encher'. Em cinco minutos, eram milhares nas ruas. Uns dez mil, segundo estimativas da Folha de São Paulo. Os banhistas falaram em trinta mil. Quem vinha de carro também não se avexava - brecava o carango, largava as roupas no banco e corria para a festa molhada. 'Por favor, me empresta o shampu?'. 'Claro, é ótimo, para cabelos oleosos'. 'Você trouxe a bucha'? 'Putz, caiu o sabonete'. 'Pode deixar, eu pego para você'. 'Pode esfregar minhas costas?'. Foi o maior banho coletivo em espaço aberto da história da megalópole. Recorde que entrou para o Guinness. Preocupado com a concentração de pessoas, sabem como é, o governador acionou a tropa de choque. Em rede estadual de rádio e televisão, enquanto a chuva caía, sorriso largo de picolé no rosto, movimentando todos os músculos da face, ele garantia. 'A chuva vol-tou. Não há motivo para preo-cu-pa-ção. Estamos tra-ba-lhan-do. Não há ra-cio-na-men-to. São apenas medidas preventivas de con-tin-gen-cia-men-to. Para garantir o a-bas-te-ci-men-to. Em breve, serão seis dias sem água e um dia com'. Ninguém reclamou.

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