Espíritos dezembrinos. Corações sinceramente abertos a retrospectivas críticas e a caraminholar planos para os 365 dias vindouros. Ventos de uma boa e alegre nostalgia entraram pela janela do quinto andar de um prédio que fica no topo de uma das tantas ladeiras do bairro de Perdizes.
Procura daqui, fuça de lá, não gosta desse, não quero aquele. Nariz torcido e caretinha para vários filmes. Nem pensar em desenho animado, adolescente que já é. Sem muita paciência para escolher, é verdade, como de costume. Mas depois de uns cinco minutos, finalmente Luiza dá um grito de quem ganhou a caça ao tesouro. Pai, posso alugar esse show do Palavra Cantada? Está no NOW, três e noventa. Quero ver. É aquele que a gente foi, tinha o DVD. Eu adorava, o Dani também. Deixa, deixa, deixa, vai.
Devo ter feito cara de espanto. Fui pego de surpresa, confesso. Nada de Harry, Zayn, Louis, Niall ou Liam? Nada de One Direction? Trocados por Sandra Peres e Paulo Tatit? Autorização imediatamente concedida. Quem sou eu para atrapalhar esse reencontro repentino e delicioso com a infância?
Palavra Cantada. A Lui era menininha; o Dani, um bebê. Era uma febre. O tal amado DVD, de um show no Auditório Ibirapuera, rodava várias vezes por dia, sem tréguas. Até quase furar. Com direito a rodas, palmas, danças e coreografias imitadas e inventadas. Tombos, cambalhotas e gargalhadas. "Brincadeira, choradeira, Pra quem vive uma vida inteira. Mentirinha, falsidade, Pra quem vive só pela metade".
Paulo e Sandra são Luiza e Daniel no colo, leite na mamadeira, passeios no carrinho, manhas no berço, nas sonecas das tardes, nos tanques de areia, nas brincadeiras de bonecas e bonequinhos, nos tapetes coloridos de livrarias ouvindo histórias e fuçando prateleiras. Perninhas curtas, braços pidões sempre estendidos. Abraços e beijos estalados. "Rato, meu querido rato. Eu não sou assim de fino trato. Pra selar este contrato. Minha luz é passageira. Fico sempre por um triz. Mesmo quando estou inteira. Vem a nuvem me cobrir. Ela sim, nuvem faceira. É que lhe fará feliz".
Eram os tempos da escola Alecrim, os amigos e amigas inseparáveis, a Lulu, a Sossô, a Julia, a Dani, o Danilo, o Ian, o Ernesto, além das aventuras no cavalão branco, no balanço de pneus, na ponte colorida, na caverna do urso imaginário. Saudades dos banhos de esguicho só com calcinha ou cueca, no ritmo gingado da capoeira e da malemolência dos primeiros toques na bola. "Gosto quando vou brincar na rua. Gosto quando encontro meu amigo. Gosto quando a mãe do meu amigo. Me oferece uma bolacha. De água e sal".
Lembro de termos ido a três shows do Palavra. O primeiro foi comemorativo, o famoso, no Ibirapuera, com o palco se abrindo ao fundo e revelando os encantos do Parque na música final, para deleite das crianças, boquiabertas e sem piscar. O segundo foi uma espécie de acústico, apresentação intimista para pequeno público, na FNAC de Pinheiros. Conseguimos os três últimos lugares, quando os dois já ameaçavam beicinho e faziam menção de começar a chorar, decepcionados. Não foi só: ao final, abraços, beijos, fotos e autógrafos no CD. "Luiza e Daniel, beijos do Paulo e da Sandra". O terceiro, animadíssimo, foi num carnaval, com direito, claro, às canções do CD Carnaval. Sem esquecer os clássicos. "Entre o Oriente e ocidente. Onde fica? Qual a origem de gente? Onde fica? África fica no meio do mapa do mundo do atlas da vida. Áfricas ficam na África que fica lá e aqui. África ficará". Os tambores dessa música são impressionantemente fortes e tocantes. Tribais. Contagiantes.
Eles gostavam muito também dos Saltimbancos, Casa de Brinquedos, Arca de Noé, Plunct-Plact-Zum, cantigas de roda, Hélio Ziskind. Mas não havia quem pudesse concorrer com Palavra Cantada. Quantas não foram as vezes em que se fantasiaram de Paulo e Sandra, na companhia da prima Maristela, e atormentaram a vida da tia-madrinha para que desenhasse a dupla com seus instrumentos musicais. Palavra Cantada é cheirinho de infância saudável e feliz. Gosto de diversão com cidadania. Textura híbrida de ritmos maluca e harmonicamente variados e costurados. É também um tantão do meu aprendizado como pai. "Lápis, caderno, chiclete, pião. Sol, bicicleta, skate, calção. Esconderijo, avião, correria, tambor, gritaria, jardim, confusão. Criança não trabalha, criança dá trabalho. Criança não trabalha..".
Estão lá de novo, grudados no sofá, só no pé com pé e esperando a sopa do neném - a garbosa fã de One Direction, doze anos, e o marrento campeoníssimo boleiro, oito anos. Com quase 43, vou lá me juntar a eles. Saborosa sexta-feira. "Oi, oi, oi... Olha aquela bola. A bola pula bem no pé. No pé do menino. Quem é esse menino? Esse menino é meu vizinho...Onde ele mora? Mora lá naquela casa...Onde está a casa? A casa tá na rua...Onde está a rua? Tá dentro da cidade... Onde está a cidade? Do lado da floresta... Onde é a floresta? A floresta é no Brasil... Onde está o Brasil? Tá na América do Sul, no continente americano, cercado de oceano e das terras mais distantes de todo o planeta".
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