sábado, 22 de março de 2014

NO MEIO DO CAMINHO HAVIA UM PAOLO ROSSI

"Meu jogo inesquecível de Copa do Mundo"

(*) Eryx Pereira, advogado



Estádio Sarriá – Barcelona/Espanha – 05 de julho de 1982

Em ano de Copa do Mundo, o que mais se vê, se ouve, se discute é: “o seu jogo favorito”, “o melhor craque que você viu jogar”, “o gol mais espetacular”, “a defesa mais impressionante”, “o escrete inesquecível”, e por aí vai.

Normalmente, quando se pensa em algo do tipo “meu jogo favorito”, diria que 99% das pessoas pensam, de cara e sem pestanejar, em uma vitória do seu time. Do meu, por exemplo: 1995, 10 de dezembro de 1995. Pacaembu. Santos 5x2 Fluminense. Vitória, maiúscula, claro.

No entanto, quando Chiquilito sugeriu que escrevesse sobre o meu “jogo inesquecível” de Copa do Mundo, não pestanejei: Brasil x Itália. 1982. Derrota. Como assim? Seu jogo inesquecível é uma derrota da seleção brasileira? É isso mesmo. O jogo que mais me marcou é a doída derrota da espetacular seleção brasileira de Telê Santana para o bom time da Itália, do carrasco Paolo Rossi, mas não só do Paolo Rossi.

Foi a primeira Copa do Mundo que acompanhei e da qual tenho lembranças. Tinha 7, quase 8 anos. E o futebol já era a minha grande paixão. Já jogava (e brigava...) na escola, com os irmãos, com os primos. Já sofria e já chorava por causa de futebol. E, naquela época, embora já santista, o Santos ainda não era o que é hoje. Em 1982, eu era BRASILEIRO. Morria por aquela seleção brasileira. O mundo parava para eu ver Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico, os quatro principais craques daquele timaço. Junior, Leandro, Oscar, Luizinho, Éder, coadjuvantes que seriam craques em qualquer outra seleção do mundo. 

Serginho Chulapa, meu primeiro ídolo de verdade no futebol, na verdade era um grande artilheiro caneleiro, que, infelizmente, destoava naquele esquadrão. Alçado à condição de titular pela triste contusão do Careca, à época do Guarani, às vésperas da Copa, a camisa 9 na Copa pesou demais para ele. Para mim, deveria ter sido reserva do Roberto Dinamite, muito mais jogador que ele. Confesso que não sei por que Telê preferiu Chulapa a Dinamite. E, no gol, Valdir Peres não inspirava a menor confiança. Me lembro de brigar com colegas são paulinos defensores do Valdir, porque achava os dois reservas, Paulo Sérgio e Carlos, muito melhores. Valdir era catimbeiro e sortudo. E vivia da fama dos dois pênaltis que defendeu do consagrado Breitner, em Stuttgart, num amistoso em 1981 que, fez parte de uma mini-excursão feita pela seleção e que apresentou aquele timaço para o mundo. Naquele ano, batemos a Inglaterra em Wembley por 1x0, a França no Parque dos Princípes por 3x0 e a Alemanha (então Ocidental) em Stuttgart por 2x1, com o Cerezo comendo a bola (faltei na escola pra ver aquele jogo, narrado pelo Silvio Luiz, então na Record).

Enfim, Copa do Mundo. Brasil x Itália. 05 de julho. Já tentei puxar pela memória. Não consigo me lembrar se era quarta, quinta, sexta-feira. Sei que era dia de semana. O jogo foi à tarde. Acho que fui à escola. Como estudava no período vespertino, não sei se teve aula e saímos mais cedo ou se simplesmente não fui à escola. Se tivesse que apostar, cravaria na primeira opção, embora, com certeza, a segunda opção, na minha opinião, seria medida muito mais sensata.

O que sei é que naquele dia, só pensei naquela partida. Algo que, aliás, se tornou frequente sempre que se aproxima alguma partida importante de futebol. Brasil x Itália. A repetição da final de 1970, era o que se dizia na época. E, o que se comentava era que se o time de 70 era muito superior ao time italiano, a diferença entre as duas seleções em 1982 deveria ser triplicada. Onze entre dez cronistas brasileiros, pelo que lembro, cravavam: o Brasil passaria pela Itália e iria para a semi-final.

O time era melhor, muito melhor. A campanha era irretocável. O futebol, muito superior. Cerezo, Falcão, Sócrates e Zico. Todos nas melhores fases de suas carreiras. O time jogava fácil. Trocava passes. Envolvia os adversários. Era um rolo compressor. Apertou o jogo? Tinha o canhão de fora da área do Éder. Se o esquema com centroavante fixo não estivesse funcionando, saca o Chulapa, põe o Paulo Isidoro e avança o Sócrates.

E a Itália? Bem...classificada na bacia das almas na primeira fase por ter feito um gol a mais do que Camarões. Três jogos sofríveis, três empates sofridos. Os italianos, que hoje sei são tão ou mais corneteiros do que nós, brasileiros, acabando com o time, com o técnico, com os jogadores.

Enfim, era esse o panorama.

Jogo fácil? Não para mim. Desde aquela época, qualquer joguinho era clássico. Quem me visse ouvindo Santos x Ferroviária pelo Torneio Início do Campeonato Paulista poderia imaginar se tratar da final do campeonato mundial interclubes. E, não esqueçamos: era Copa do Mundo.

Finalmente, o jogo começou. Família toda vendo o jogo na sala do apartamento 61 da saudosa Rua Lisboa, 1128. Luciano do Valle narrando. Marcio Guedes, que eu não suportava e que era (como, aliás, continua sendo) um baita pé frio, comentando. Cinco minutos de jogo. Times ainda se estudando, se aquecendo, tentando entender como seria jogado o jogo. Bola cruzada da direita para a esquerda. Atravessou o campo todo e chegou ao Cabrini, lateral esquerdo da Itália. Bola na área do Brasil. Não deu tempo de gritar “sai, Valdir”. Ele não saiu, ninguém cortou, Paolo Rossi entrou de cabeça, sozinho. Gol da Itália. 1x0 para eles.

Tensão? Nem tanto. Tínhamos saído atrás na estréia, contra a URSS. Viramos. Tínhamos tomado o primeiro no segundo jogo, contra a Escócia. Viramos. Superstição. Vamos virar.

Poucos minutos depois, a superstição se confirmava: passe magistral de Zico, gol de Sócrates, no cantinho. Empate. 1x1. Pronto. As coisas estavam em seu devido lugar. O empate classificava o Brasil. Mas, pensava eu, aquele time não jogava para empatar. Agora os italianos iriam ver o que é bom pra tosse.

Só que não. O jogo não saía. O Brasil, embora não jogasse mal, não conseguia desenvolver o seu toque de bola. A Itália parecia que tinha 22 jogadores em campo. Não tinha espaço. O carniceiro Gentile, que nas horas vagas jogava bola, marcava implacavelmente o Zico. Teve até o famoso pênalti da camisa rasgada. Xingamentos na sala contra o juiz israelense. Naquele distante 1982, ainda não falava palavrões, então o máximo que se escutou foi “idiota, safado, ladrão”. Hoje teria sido bem diferente.

Metade do primeiro tempo. Saída de bola do Brasil. Cerezo, naquele estilo dele meio peladeiro, meião abaixado, cruza a bola na entrada da área do Brasil sem olhar. Qualquer um que joga bola na escola sabe de cor e salteado: “não se cruza a bola na entrada da área”. Pois bem, Cerezo cruzou, sem olhar e, para completar, atrás do destinatário da pelota, Luizinho, que já saia para o ataque (data venia, pqp, porque o quarto zagueiro do Brasil estava jogando tão avançado naquela altura do jogo?). Bola nos pés do Paolo Rossi. Gelei. Sozinho, o italiano, camisa 20, domina, ajeita e fuzila. Gol da Itália. 2x1 para eles. Caramba, nos jogos anteriores que saímos perdendo, não tínhamos tomado o segundo. Embora contra a URSS a virada tivesse vindo só no finalzinho, com dois gols seguidos, não tínhamos ficado duas vezes atrás no placar. Alguma coisa estava errada. Tomar um gol daquele em Copa do Mundo era inadmissível. Jamais perdoei Toninho Cerezo. Não só eu. Meu saudoso avô Eryx, até o fim da vida, não cansou de repetir: “o Brasil perdeu por causa do seu Terezo”!!!

E lá vamos nós para o intervalo. Àquela altura, nervos à flor da pele. Confiança? Claro que tinha. Mas, agora já era certeza: aquele timaço não era imbatível. Podia perder perfeitamente uma partida. Outra certeza: a Itália não era a galinha morta que muitos diziam. Não só porque estava na frente no placar. Mas, porque fazia uma partida parelha, de igual para igual. Marcava duro, com firmeza. E jogava. Era um time cirúrgico. Eficiente. Tinha Bruno Conti, cracaço da Roma, companheiro de Falcão. Tinha Antognoni, da Fiorentina, belíssimo jogador de meio de campo, que hoje seria fácil uma espécie de segundo volante moderno de qualquer time do mundo. Tinha Scirea, que comandava a defesa, jogando como o típico líbero italiano. Tinha Zoff no gol. Marco Tardelli, da Juventus, era eficiente. E, tinha Paolo Rossi. Não tinha feito nada até aquele jogo. Mas ali, já tinha marcado dois gols.

Segundo tempo. Brasil em cima. Itália marcando. E jogando. Não era aquele jogo de ataque contra defesa. Não tinha massacre. Já naquela época, com apenas 7 anos, tive essa percepção. Muitos anos depois, já adulto e após superar o trauma, decidi ver o jogo de novo. Inteiro. Sentado calmamente no sofá, tomando cerveja e comendo pipoca. Calmamente? Que nada! Xinguei o juiz de novo, agora de nomes bem mais feios. Ofendi moralmente o “seu Tereso” pelo passe errado decisivo. “Ah, se o primeiro tempo tivesse terminado empatado”, pensei eu nos meus devaneios. Será que a Itália teria saído mais para o jogo? Será que o Bearzot teria aberto o time? Será que o Brasil teria e saberia explorar os espaços?

Segundo tempo rolando. Nada de sair o gol de empate. A essa altura, o que mais se ouvia em casa eram gritos e choros. Choros compulsivos. Em dado momento, Chiquilito, ao ver uma chance desperdiçada, vai até a cozinha e dá um sonoro pontapé na geladeira. Imediatamente, é medicado por meu pai. Maracujina. Não sei para que. Naquele momento, nem tarja preta resolveria. Só uma coisa adiantaria: o gol do Brasil.

Tenho a ligeira impressão de estar sozinho na sala. Acho que o Chiquinho estava na cozinha, sendo medicado. Não lembro onde estavam minha mãe e o Guto. Anna Sylvia, então, tinha 3 anos e sequer sei dizer se estava em casa naquele dia 05 de julho de 1982. Falcão com a bola, na entrada da área. Ferrolho italiano armado. Espaço zero. Eis que ele, Toninho Cerezo, o “seu Terezo”, como uma bala, passa voando pela direita e pede a bola. Com isso, puxou a marcação de três italianos. Três!!! O ferrolho estava desarmado. Falcão puxou a bola para a perna esquerda. “Chuta, chuta, chuta, chuta, goooooooooooooooooooooooooollllllllllllllllllllllll”. Confesso: ao narrar esse gol, estou chorando. Como em 1982. Festa. Loucura. Gritaria. Rolamos na sala, abraçados. Sim, nós vamos para a semi final. Falcão, o rei de Roma. Golaço. Comemoração linda. Inesquecível. E os italianos colocando as mãos na cabeça, em desespero. O empate é nosso.

Hora de segurar. Hora de marcar. Hora de dar chutão. Não para aquele time. O Brasil continuou fazendo o seu jogo e seguiu com a bola nos pés, trocando passes. Mas, por apenas 5 minutos. Cerezo (de novo, caramba!!!) recua errado para Valdir Peres, que, embora naquele tempo pudesse pegar com as mãos bola recuada, deixa a bola sair pra escanteio. Sufoco. Tensão. Relógio por volta de 29/30 minutos. Bola na área. Oscar afasta. Ninguém está na cabeça de área do Brasil. Não tinha um cara lá!!! Tardelli rebate de primeira e devolve a bola para a área. Tensão. A bola vai indo e encontra Paolo Rossi, na pequena área, livre, sozinho, ele, a bola e o gol. Gelei. Precisava de um milagre. Ele não veio. Gol da Itália. 3x2. “Impedido”, gritei, induzido em erro pelo braço levantado de Junior. Puta que pariu (me desculpem, mas não dá para evitar), o cara que levanta o braço é exatamente aquele que dá condição para o cara. O que o Junior estava fazendo debaixo do gol. E por que a porcaria do Valdir Peres, quando o Oscar cortou de cabeça, não gritou para a defesa sair? Estava fazendo o que aquele poste? Enfeitando?

Inacreditável. Faltavam apenas 15 minutos. O Brasil tinha míseros 15 minutos para empatar o jogo pela terceira vez e fazer valer aquela suposta lógica. Dali para frente, só chorei. Muito. Copiosamente. Vi muito pouco do resto do jogo. Não vi se o Brasil mexeu no time. Não sei se o Telê colocou alguém. Só chorei. Minto. Parei de chorar por uns segundos. E gritei gol. Alto. Muito alto. Oscar meteu de cabeça. Um tiro. Indefensável. Em qualquer outro jogo de futebol, aquela bola teria entrado. Não em 05 de julho de 1982. Bola forte, no canto baixo, rente a trave. Goleiro algum defenderia. No mínimo, tentaria rebater e daria rebote. Zoff defendeu. E não largou. E, enquanto os brasileiros iam para cima do juiz israelense pedindo o gol, porque era impossível que a bola não tivesse entrado, Zoff se levantou e com toda a calma, com a bola debaixo do braço, fez “não” com a mão. Não, ela não tinha entrado. Não tinha jeito. O jogo tinha acabado.

Também não me lembro de ter visto o apito final. Pouco importa. O Brasil tinha perdido. Aquele timaço não seria campeão do mundo. Não só daquela Copa, como de qualquer outra. Chorei, chorei e chorei. Só isso. Televisão desligada. Deitei na cama. E lá fiquei.

Durante anos se discutiu: o Brasil deveria ter jogado feio. Deveria ter jogado para empatar. Telê Santana deveria ter recuado o time após conseguir o empate. Deveria ter tirado o Zico e colocado o Batista, volantão gaúcho, no seu lugar (ora, o Batista nem no banco estava, tinha se machucado no jogo anterior, contra a Argentina, após tomar um sonoro pontapé na barriga dado pelo Maradona).

Me lembro que alguns meses depois da Copa, ganha pela Itália, surgiu o boato que o Paolo Rossi tinha jogado dopado e que aquele jogo seria anulado. Na inocência dos meus 8 anos recém completados, cheguei a acreditar que realmente fosse verdade. Claro que não era. Paolo Rossi não jogou dopado. O jogo não foi anulado. A Itália ganhou. O Brasil perdeu.


Foi a minha primeira decepção com o futebol. Muitas viriam depois. Mas, aquela, com apenas 7 anos, foi inesquecível. A ponto de se tornar o meu jogo inesquecível de Copa do Mundo.

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