domingo, 13 de novembro de 2011

O DATAFOLHA E A PM NA USP

A insônia foi produtiva. Sem conseguir pregar os olhos em plena manhã de domingo (e no meio de um feriadão), recebi logo cedo os jornais do dia. Passei um tempo matutando e pensando sobre a manchete principal da "Folha de São Paulo", que diz que "58% dos alunos da USP apoiam a PM no campus". O levantamento, feito pelo Instituto Datafolha, ouviu 683 estudantes da mais importante universidade do País, em 28 unidades de ensino, no campus da capital. Aproveito para compartilhar algumas ponderações com os leitores:

1) A impressão imediata que fica é que, mais uma vez, o jornalismo infelizmente investe firme na simplificação da realidade, em um reducionismo descontextualizador, ao fomentar um raciocínio binário e resumir um debate complexo e permeado por nuances, sutilezas e tantas outras indagações relevantes à questão "você é a favor ou contra a presença da PM na USP?". 

Será que a pesquisa é auto-suficiente, basta por si só, esgota o assunto, é a pá de cal em um assunto que apenas começa a ter desdobramentos e a ser discutido? Vale lembrar que, de acordo com estudiosos da mídia, como Luiz Gonzaga Motta (Universidade de Brasília) e Raquel Paiva (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o jornalismo alcançou o status de principal narrativa da contemporaneidade. É fundamentalmente por meio dele que travamos contato com os acontecimentos do mundo. 

Como avaliam em reportagem publicada pela revista Pesquisa Fapesp, "o jornalismo é uma espécie de herdeiro do teatro grego, que, na Antigüidade, era o responsável por explicitar e levar para os palcos tragédias e comédias da humanidade. Já na era da globalização, as conquistas e os conflitos são narrados pelo jornalismo - e é por meio dele que promovemos a nossa catarse moderna". No entanto, alertam, em função da velocidade de produção, da rapidez de circulação e das pressões e dos interesses políticos e econômicos que representa, "o jornalismo é volátil e favorece o erro e o discurso do senso comum, que acaba por reforçar estereótipos, preconceitos e exclusões". 

Essa é a mensagem que a matéria sustentada pelo levantamento do Datafolha parece difundir: continuamos transitando pelo terreno perigoso do senso comum. As lentes jornalísticas nos permitem enxergar apenas a ponta do iceberg, desconsiderando todo o bloco de gelo que se projeta para baixo da superfície. Consolida, com essa estratégia, os consensos conservadores.

2) O raciocínio (não tão) subliminar que a narrativa da matéria procura também introjetar na opinião pública é: “como há apoio majoritário da população, constatado pelos irrefutáveis números, então a invasão da USP pela PM foi uma ação correta”. 

Cuidado com os números. Longe de mim negá-los. Mas penso que não é possível simplesmente engoli-los como absolutos, definitivos, prato feito. Antes disso, é fundamental refletir sobre eles, qualificá-los, tentar compreender as histórias que revelam. Primeiro porque, nesses momentos de grande comoção, a tendência é que a racionalidade do debate fique mesmo prejudicada, suscitando posições mais imediatistas. 

Outra: historicamente, o mesmo Datafolha (para ser coerente com a análise) revela que há apoio majoritário da população à adoção da pena de morte no Brasil – em alguns momentos esse apoio chega a ser acachapante (em 1991: 48% a favor x 43% contra; em 1993: 55% a favor x 38% contra; em 2003: 50% a favor x 43% contra; em 2007: 55% a favor x 40% contra; e em 2008, último levantamento disponível: 47% a favor x 46% contra). 

A seguir o raciocínio conservador e reducionista dominante, se há apoio da população, essa seria uma medida correta, adequada. Vamos então, com base nesse “argumento”, adotar a pena de morte como medida de “combate” à violência e à criminalidade no Brasil, já que, insisto, levantamentos indicam que ela registra forte respaldo popular? Parece perigoso, não? 

Não tenho muitas dúvidas também em afirmar que, se fosse realizado hoje um plebiscito no Brasil que perguntasse à população “você deseja continuar pagando impostos?”, a esmagadora maioria responderia com um sonoro “não”. E aí? União, Estados e municípios deixariam de arrecadar? Como ficariam as políticas públicas? Mas essa teria sido a “vontade popular”, revelada por números impressionantes.... O que fazer? 

Só para ser um pouco mais provocativo-reflexivo: à época do nazismo, a opinião pública alemã, de forma acachapante novamente, sustentava o extermínio em massa de judeus, ciganos, negros, portadores de deficiências, comunistas, endossando e comemorando o ideal de “raça pura” patrocinado por Adolf Hitler. Eram os números, o apoio popular.

3) O que preocupa sobremaneira, penso, é que o levantamento do Datafolha sugere mais uma evidência do processo de fascistização da sociedade, cada vez mais adepta das soluções fáceis e irrefletidas, do “prende e arrebenta”, da vingança em detrimento da justiça, como procurei discutir no texto “A quem interessa demonizar a USP e os estudantes da USP?", publicado também aqui no Blog. É mais um sinal de alerta para o fantasma do autoritarismo reacionário que vaga por aí – e que encontra nessas situações brechas para se apresentar com muita força, raiva e rancor. 

De outra forma, um olhar interpretativo otimista sobre os números do Datafolha permite respirar o oxigênio da resistência: a Folha obviamente não deu o mesmo destaque a essa informação, a esse número, mas o mesmo levantamento revelou que 46% dos estudantes foram contrários à ação da PM que desocupou a reitoria da Universidade (45% favoráveis). No total, e apesar de todo o bombardeio midiático interessado na criação de consensos, 36% dos estudantes da USP dizem “não” à presença da PM no campus. 

E, se nas áreas de Exatas (77% a favor x 20% contra) e Biológicas (76% a favor x 17% contra) o "sim" aparece com larga vantagem, nas Humanidades a PM é rechaçada por maioria absoluta (54% contra, 40% a favor). Sem criar estereótipos ou hierarquias e sem nem de longe apontar o dedo para culpar esse ou aquele segmento uspiano, o fato é que há espaço, nas três áreas do conhecimento – Exatas, Humanas e Biológicas –, para uma interlocução mais profunda e contextualizadora, um diálogo capaz de quebrar o maniqueísmo “PM, sim ou não?”, para então discutir relações internas e a postura da atual reitoria, democracia na Universidade, espaço público, função social da Universidade, urbanismo, produção científica, assistência, em um movimento cada vez mais amplo, que compreende certamente a importância da segurança pública. Mas que rejeita a presença ostensiva e truculenta de soldados armados no campus. 

Afinal, como lembra com muita precisão e lucidez a jornalista Mariluce Moura, em comentário postado no texto “A quem interessa demonizar a USP e os estudantes da USP?”, é preciso "refletir sobre a origem das tantas vozes do ressentimento contra a USP, a mais importante universidade pública do país. A USP, grande e valioso patrimônio da população paulista e brasileira, precisa ser defendida – e certamente não pela PM".


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EM TEMPO - É um problema que ainda não consegui resolver - muitos dos leitores não conseguem postar comentários por aqui (somem na rede, sequer aparecem para a moderação). Não sei o que acontece, sinceramente. Para tentar minimizar o problema, para os que desejarem, peço por gentileza que encaminhem esses comentários para o meu e-mail (chicobicudo2@gmail.com). Repassarei essas contribuições para cá, com os devidos créditos. Lembrando sempre que não serão liberados comentários intolerantes, agressivos e preconceituosos. Muito obrigado!

2 comentários:

  1. O discurso é raso como apontou. Alguns dados da pesquisa que poderiam ter sido analisados com mais profundidade.
    58% são a favor da PM, mas não há um consenso sobre a ação da PM na desocupação. Isso poderia trazer a uma pergunta: Qual a PM que querem no campus? Uma pergunta que não foi feita na pesquisa.

    Somente 10% já sofreram algum tipo de violência. E note que destes 10%, 7% estão relacionados com furto/roubo de bens.
    58% são a favor da PM no campus, porém 57% acham que a sensação de segurança está igual depois que a PM começou a patrulhar o campus. Ou seja, pode ser que a polícia esteja atuando na melhoria da segurança dos 10%, ou seja na preservação dos bens. Para a maioria a sensação de segurança não mudou e para um grupo piorou.

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  2. Entendo que a PM não deve prestar segurança em nenhuma Universidade, isto cabe a propia Universidade que criará um corpo de segurança diante de suas necessidades zelando pelo bem estar de seu patrimônio e de seus alunos preservando assim a normas disciplinares da boa conduta, criando com isso um clima de satisfação no seu corpo diretivo,funcionários e estudantes.

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