Num desses arroubos de nostalgia, fui reler minha dissertação de mestrado, escrita em 2001, defendida na ECA/USP em 2002, posteriormente transformada em livro ("Caros Amigos e o resgate da imprensa alternativa no Brasil") e publicada pela editora Annablume em 2004. Tomo a liberdade de compartilhar com vocês um trecho da introdução (na verdade, são as três primeiras páginas do trabalho), pois me parecem extremamente atuais. Infelizmente.
------------------
FOLHA DE S. PAULO
REPÓRTER FREE LANCER DE COTIDIANO
A Folha está selecionando currículos de profissionais interessados em trabalhar como repórter free lancer no caderno Cotidiano.
Os candidatos devem ter:
* boa formação cultural;
* experiência na cobertura de administração pública;
* domínio da língua portuguesa;
* conhecimentos de língua espanhola;
* domínio da língua inglesa.
Curso de pós-graduação concluído ou em andamento e conhecimentos do Novo Manual de Redação da Folha são habilitações desejáveis. O processo de seleção inclui testes de conhecimentos gerais, conhecimentos específicos, português e regras de padronização estabelecidas pelo manual, além de entrevistas. Envie seu currículo e um texto de 15 linhas com a descrição das principais contradições entre o discurso do PT sobre a moralidade administrativa e a prática de seus prefeitos eleitos em 2000, até o dia 14 de fevereiro de 2001, aos cuidados da Secretaria de Redação, sob a sigla C-876. Alameda Barão de Limeira, 425, quarto andar - CEP 01202-900, São Paulo, ou pela internet: treina@uol.com.br (Atenção - o currículo deve ser enviado no próprio corpo da mensagem).
O anúncio acima reproduzido foi publicado pelo jornal Folha de São Paulo no início do mês de fevereiro de 2001, no caderno de "Empregos". Ele é ilustrativo e significativo de alguns dos pecados cometidos cotidianamente pela chamada grande imprensa, e que vão desembocar naquilo que classifico como prática de um jornalismo caduco e simplista, mais preocupado com a desconstrução da informação e com a leitura parcial, dirigida, pré-estabelecida, atomizada e fragmentada de mundo do que com a perspectiva de serviço público contextualizador e panorâmico, que deve contribuir com a pluralidade e a multiplicidade de visões e informações.
Ao exigir e impor que o candidato à vaga escreva um texto descritivo, a Folha comete o primeiro pecado, pois pede ao jornalista que assuma uma postura apática e mecânica, que ele simplesmente sente-se ao computador e arrole uma série de argumentos, fatos e elementos do senso comum, que possam apenas comprovar, dar validade e credibilidade pública àquilo que o jornal já pensa e estabelece como verdade absoluta. Impõe-se a forma do produto. A empresa deixa de lado o potencial crítico do seu possível futuro jornalista, não pede que ele crie, corra, vá atrás, procure entrevistar, ler, argumentar, pensar, construir o seu texto. Entre a narração ativa (o jornalista que reporta e conta histórias) e a descrição passiva (aquela que junta e cola falas e frases feitas), a Folha prefere a segunda postura. Grosso modo, simplificando para ilustrar, é a diferença entre o "jornalista da rua" e o "jornalista de gabinete". Trata-se de uma postura política e editorial que se reflete nas notícias que chegam diariamente às bancas e às mesas do nosso café da manhã.
O segundo pecado se manifesta quando a Folha dirige o sentido e o significado do texto, dizendo "eu quero que ele seja assim". Quando afirma que a descrição tem de ser sobre "as principais contradições entre o discurso do PT sobre a moralidade administrativa e a prática de seus prefeitos eleitos em 2000", o jornal traça a linha de corte/recorte e faz a sua seleção política e ideológica, estabelece o seu viés do real. Aqui, determina-se o conteúdo. Em primeiro lugar: por que o PT? O noticiário de todos os grandes jornais, inclusive o da Folha, mostrava que, no momento em que foi publicado o anúncio, o dito mar de lama e as denúncias de corrupção recaiam justamente sobre outros partidos, sobretudo o PMDB e o PFL, com os holofotes voltados para a briga entre o presidente Fernando Henrique Cardoso e o então presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães. Mais ainda: e, afinal, quem não enxergasse ou encontrasse contradições entre a prática e o discurso petistas, quem achasse que eles eram coerentes, que os novos prefeitos eleitos pelo partido estariam fazendo administrações corretas e éticas, sustentadas por outras prioridades sociais? Deveria se considerar, a priori, impossibilitado de participar da seleção, incapaz de trabalhar no jornal? Como ficariam aqueles que pensam de outra maneira? Aliás: será que apenas um mês (os então novos prefeitos haviam assumido seus cargos em janeiro de 2001) seria um tempo suficiente para esse tipo de reflexão ou crítica? A Folha sobe no pedestal, determina e estabelece como verdade absoluta: há contradição entre o discurso e a prática do PT. As portas se fecham para a crítica, a reflexão, o contraditório, o diálogo, a oposição e o embate de idéias. Aceite o dogma e, se quiser trabalhar no jornal, trate de encontrar os "argumentos" para comprovar a tese escolhida. É isso o que diz o anúncio. Trata-se do pecado original da manipulação da informação.
Mas os pecados não terminam por aí: a Folha ainda pede ao candidato que escreva seu texto em 15 linhas. Trata-se de uma ode ao pensamento minimalista. Afinal, apenas para apresentar os seus critérios de seleção, o jornal usou mais que essas quinze linhas. O que eles valorizam e elogiam (concisão e capacidade de ser objetivo), num discurso que também tem seu viés ideológico, eu chamo de texto-relâmpago e fragmentado, que dá a impressão ilusória e a sensação de informar, mas que muito pouco ou quase nada acrescenta ao nosso repertório de conhecimentos e reflexões. Trata-se de endeusar a notícia-pílula (afinal, "o leitor não tem mais tempo para ler grandes reportagens"), numa postura que desconhece (ou faz questão de ignorar deliberadamente) as relações e contradições sociais. É o privilégio de uma linguagem que faz do mundo e das necessidades humanas uma seara desprovida de conflitos, que usa um discurso simplista e linear, superficial, incapaz de alçar vôos panorâmicos que permitam um olhar de mais longo alcance sobre as "coisas do mundo". É possível dizer tudo em uma linha? No limite, é. Resta saber se é saudável, se é justo, se é bom para a democracia e para a sociedade fazer sempre assim.
Jornalista passivo e mecânico, informação manipulada, texto fragmentado e relâmpago, compreensão comprometida ou anulada - eis aqui o samba de uma nota só que dá o tom e dita o ritmo, de maneira hegemônica, da orquestra industrial jornalística, nesse começo de novo século.
---------------------
Voltei. Escrevi tudo isso há dez anos. Minha pergunta é: mudou alguma coisa?
Tudo na mesma! Na verdade as coisas até pioraram, sob certos aspectos, já que depois veio chumbo grosso total já com Lula presidente. Lamentavelmente a descida ladeira abaixo da grande imprensa ainda não chegou ao fim.
ResponderExcluirTudo na mesma. Inclusive para mim. Não leio essa porcaria.
ResponderExcluir