segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

AVENTURAS EM MONTEVIDÉU

CAPÍTULO 1 

Chegou o dia, garotão. Pronto para a viagem? Sim, mas com sono. Já está na hora? Daniel, que normalmente enrola, vira para o outro lado, finge que não é com ele e pede só mais dois minutinhos, nem resmungou para pular da cama. Ansiedade. Cinco e meia da matina, escuro ainda. Tudo bem, vou fazer meu leite. Enquanto ele espreguiça, a irmã acelera em quinta marcha. Encontrei Luiza na sala, já mexendo no celular, banho tomado, mala e sacola de mão a postos, elétrica e ligada no duzentos e vinte. Bom dia, pai. Demorou para voltar a luz? Tínhamos terminado a noite de quinta-feira sem energia, recorrendo a lanternas e lâmpadas de emergência, com direito a alguns tropicões no escuro (eu, mané de plantão, fui a vítima principal, claro), para dar conta dos últimos acertos com a bagagem. Sinceros agradecimentos ao governador Geraldo, aquele que está sempre tra-ba-lhan-do pelo bem da po-pu-la-ção. Deve estar até agora com as orelhas bem vermelhas. Ouviu só elogios meus, bem carinhosos. Voltou pouco depois de meia-noite, filha. Eu já tinha me rendido à insônia, quebrando a cabeça para imaginar como faríamos para descer cinco andares com todas essas trancas. Ainda estava me livrando dos últimos resquícios de mau humor quando o taxista, a caminho do aeroporto, ligou a matraca e disparou a explicar o caminho escolhido, por aqui vai fluir melhor, consigo rapidinho acessar a via expressa da Marginal Tietê e escapo do trânsito, vamos pela Dutra, a Ayrton Senna é bem complicada, vou ligar na rádio Sul América, vale conferir também no waze se tem algum acidente. Gesticulava, fazia caras e bocas. Justo, tentava mostrar boa vontade. Ser simpático. Chato estava eu, sem vontade de papo logo cedo, confesso. Não deu liga. Virou monólogo. Na fila para o check-in, a diversão foi encontrar sósias. Elisa viu logo o Fred, atacante do Fluminense, também conhecido como "cone". Achei meia-boca, bem pouco parecido. Em compensação, numa rápida sessão de mesa branca, dei de cara com o escritor chileno Roberto Bolaño, falecido em 2003. Igualzinho!, exagerei. Ela torceu o nariz. Ocupamos a última fileira de cadeiras do avião. Tudo pronto para a partida. Um pai vem então correndo pelo corredor, filho pequeno no colo. Ouvi a aeromoça dizer 'está tudo preparado'. Pela cor da fralda da criança, mais que marrom, percebi logo que a operação seria delicada. O cheirinho característico confirmava a suspeita. Dez minutos. Garoto novamente limpo e cheirosinho. Tripulação, preparar para decolagem. Chewie, propulsores ligados?, perguntou Luiza. Na velocidade da luz!, ordenou Daniel. Que a força esteja conosco. Chacoalhou na subida, tempo chuvoso em São Paulo. Mas foi uma viagem tão suave que até venci o medo, soltei o cinto e fui ao banheiro. Nossa, milagre, emendou Luiza. O papai saiu da cadeira. Com uma hora de voo, foi a vez de uma mãe correr para o banheiro com um niño também em petição de miséria. Daniel tapou o nariz. Fez uma careta. Falou bem baixinho 'que cheiro horroroso. Que serviço foi esse?'. Depois de respirar um pouco, retomou a leitura. Vinte mil léguas submarinas, adaptação de Walcyr Carrasco. Um sobressalto repentino de alegria. Pai, pai, leia aqui, página 278. 'O Nautilus atravessou o estuário formado pelo rio da Prata e logo se encontrou em frente ao Uruguai. Já tínhamos navegado dezesseis mil léguas desde nosso ponto de partida". Tremenda coincidência. Vamos chegar juntos!, brinquei. Tripulação, pouso autorizado. Nosso piloto Han Solo, que até ali tinha conduzido maravilhosamente bem a Millenium Falcom, vacilou. Foi descendo aos soquinhos, quedas bruscas. Frio na barriga. Luiza fechou a cara. Segura forte a minha mão, pediu Daniel. Céu azul, sol e trinta graus em Montevidéu. Nosso hotel fica perto do aeroporto, quase ao lado do Parque Roosevelt, um dos principais da cidade. No entorno, sobrados aconchegantes. Da sacada vê-se o Rio da Prata. Com ondas. O time do Fênix, que ficou em sexto lugar no Torneio Apertura do campeonato uruguaio, está hospedado aqui também. Os olhinhos do Daniel brilharam. Olha lá, pai, aquele deve ser o técnico. Vai querer autógrafo e foto. Certeza. Para o centro da cidade, de táxi, são trinta minutos, vinte e dois quilômetros, seguindo pela Rambla - a avenida da praia. A orla lembra o Guarujá. Todos os prédios têm sacada. São mais largos que altos. Passamos por uma marina, barcos atracados. Salvador, arriscou Elisa. Parece Paraty, preferiu Luiza. É a invasão de Troia!, mandou Daniel. Saltamos na Praça da Independência, a maior e mais imponente de Montevidéu. Nem bem tínhamos começado a caminhar e cruzamos com um senhor que distribuía panfletos de uma loja de couro. Incorporou generosamente o guia turístico. Observem a estátua de José Artigas, meu libertador, meu libertador. Do lado de cá, o Palácio Salvo, com a torre que é um dos símbolos da cidade. Na lateral, a Casa do Governo. Amanhã vocês podem visitá-la. Na outra ponta, a Porta da Cidadela, que dá acesso à Cidade Velha. E não esqueçam de comprar seus artigos de couro! Ficamos bem na esquina! Pai, acho linda essa bandeira do Uruguai, disse Daniel. Concordo. Almoçamos de frente para o Teatro Solís, outro cartão-postal da cidade. A refeição transformou-se numa acirrada e divertida disputa de trapalhadas entre irmãos. Daniel, mãos imundas e gordurentas, derrubou talheres. Luiza não se fez de rogada. Falando pelos cotovelos - qual a novidade? -, mandou a garrafa de água para o chão. Estava vazia. Ainda bem. As chacotas continuaram na visita ao mausoléu de Artigas, heroi da independência uruguaia. A arca com as cinzas do libertador que fazia questão de destacar que 'não há nada mais sagrado que a vontade do povo' está protegida por aqueles soldadinhos quase de chumbo, quase imóveis. Um deles resolveu piscar. Luiza deu um pulo, assustada. Nossa, eles se mexem! Caramba, são de verdade?, emendou Daniel. Gargalhadas. Na saída, Elisa resolveu fuçar o que havia numa valetinha. Saiu correndo, arrepiada. Tinha visto uma barata. Não grite... vamos ser presos. Peripécias dos Marconi Bicudo em Montevidéu. Cruzamos a Porta e entramos na rua Sarandí. Paisagem muito parecida com a do centro de São Paulo - por consequência, com o de Buenos Aires também. Rua Direita. São Bento. Florida. Lavalle. Andamos. Andamos. Para um pouquinho, descansa um pouquinho. Continuamos andando. Andamos pra cacete. Chegamos até o Porto, o mar quebrando nas pedras. Tem trânsito em Montevidéu. Muita gente andando no calcadão da praia no final de tarde de sexta-feira. E vento. Muito vento. De bagunçar os penteados e levantar saias e vestidos. Refresca. Faz lembrar que estamos em férias. E que hoje foi só o primeiro dia. Prazer, Montevidéu. Deixa ventar.


CAPÍTULO 2 

Elisa saiu do posto de informações turísticas com um mapa aberto na mão e a cara de plano infalível do Cebolinha. Gente, bem nesse prédio aqui atrás de nós, o da Intendência da cidade, tem um mirante que a mocinha disse que é lindo. Vamos subir? Dá para ver Montevidéu todinha. Não era razoável negar o convite, que animou também as crianças. Bora lá. Viemos aqui para isso. Sem delongas, seguimos as orientações e encontramos o elevador com 'paredes' de vidro. A recepção não foi boa - quase fiquei preso na porta, que fechou bruscamente. Elisa fez força. Conseguiu segurar. Tudo bem, acontece. Apertamos o andar 22. Começou a subir, lentamente. Que legal! Todos muito animados. Passamos a copa de uma árvore. Boa. O topo de um muro de tijolos. Bacana. Continuou a subir. As pessoas lá na rua foram ficando pequenas, minúsculas, quase invisíveis. Eita, que estranho. Não vai parar? Sobe. Luiza deixou de piscar. Olhos arregalados, imóvel. Minhas pernas ficaram bambas.E o elevador subindo. Vertigem. Silêncio absoluto. O maldito não parava. Comecei a ficar com o peito apertado. Para o alto e avante, mais um pouquinho. Caramba, até aonde vai essa desgraça?, deixei escapar, nervoso. Já está bom. Não estou gostando disso. Estava muito agoniado, sem reação. Acrofobia e claustrofobia. Ainda vivemos mais alguns segundos - sei lá quantos - de quase pânico. Até que enfim, o infeliz começou a reduzir a velocidade. Estancou. Deu um tranquinho. Lentamente, a porta se abriu. Saltamos correndo, sem olhar para trás. Minha nossa, minhas mãos estão molhadas de suor. O que é isso, minha gente? Foi a primeira coisa que Elisa conseguiu dizer. Só Daniel estava leve e sossegado e achando tudo muito engraçado. Por curiosidade, perguntei para a atendente que nos deu os bilhetes de acesso ao mirante: quanto subimos? São 135 metros de altura. Eu escrevi cento e trinta e cinco metros. De fato, a cidade vista lá de cima, em 360 graus, é belíssima. O verde chama a atenção - muitos parques, praças e ruas arborizadas. A baía de Montevidéu é cena de outra dimensão. Paz. Admiração. Reverência. Por pouquíssimo tempo. Porque tínhamos de encarar novamente o maldito elevador. Luiza segurou no meu braço, segurei no braço da Elisa, que segurou no braço de Daniel, que resmungou que queria ficar livre. Olhamos os três fixamente para o chão. Dane-se a paisagem. Só Daniel mirava o horizonte. Quando descemos, comemoramos 'chão, chão, viva o nosso chão'. Quem estava chegando ao mirante não deve ter entendido muita coisa. Ainda. O monstro elevador os aguardava. Logo cedinho, Elisa tinha ido correr na praia. Seis quilômetros, desbravando o entorno do hotel. No café da manhã. ouvimos barulho de pratos se espatifando no chão. Daniel fez questão de avisar logo 'não fui eu, não fui eu'. Decidimos passear pela cidade de ônibus. Auto-bus 105. Passa bem na frente do hotel. Esperamos uns cinco minutos. A passagem custa 26 pesos - três reais e vinte e cinco centavos, se considerarmos a cotação de 1 real igual a oito pesos. Atenção, prefeito Haddad, mais barato que a tarifa em São Paulo antes do aumento mais recente. Não tem cobrador. O motorista cumpre dupla função. O ônibus escapa das Ramblas - avenidas da praia - e vai cortando os bairros. Nos primeiros vinte minutos, o que se vê são os meandros dos bairros do Carrasco, talvez o mais privilegiado da cidade, e do Buceo, também de alto padrão. As casas são grandes e imponentes, chaminés e aparelhos de ar condicionado, cercas baixas e telhados em queda, como lados de um triângulo, grades nas janelas e câmeras de segurança. Numa das paradas do ônibus, consigo ler num painel de publicidade: "papel Elite". Ao passar pelo Portones, espécie de terminal rodoviário urbano, a paisagem muda bastante. Montevidéu torna-se mais popular, com casas menores e mais modestas e presença mais intensa de rede de serviços. Avistamos um conjunto residencial onde as habitações eram todas iguais, distribuídas simetricamente pelo terreno. Brinquei: "é o mi casa, mi vida" daqui. Desembocamos na avenida oito de outubro. Comércio. Loja atrás de loja. Barbearias, postos de gasolina, papelarias, açougues, padarias, consultórios médicos e dentários, roupas, sapatarias. Vimos também a Universidade Católica e a sede do Nacional, um dos dois clubes mais populares da cidade. Saltamos na 18 de julho, que presta homenagem à data da promulgação da Constituição do país, bem em frente a uma Igreja Universal. O tempo não é o de Salomão, mais é enorme e suntuoso, com direito a chão de mármore na entrada. Haja pernas. A postos? Caminhamos por uns três quilômetros, sol do meio-dia. Entre a parada na Faculdade de Direito e as fotos na Biblioteca Nacional, uma pomba deu um rasante e soltou aquela bazuca anal eternizada pela canção dos Mamonas Assassinas. A porcaria espatifou-se no chão, a uns trinta centímetros da cabeça da Luiza. Ainda bem. Obrigado, natureza. Imaginem o mau humor. A mocinha apaixonou-se por uma calça vendida numa barraquinha de uma feirinha popular. É bem riponga, explicou. O que significa? Ah, pai, é largona nas pernas, fechada no tornozelo. Bem estilo Oswald (nota de rodapé - Oswald de Andrade é a escola onde ela estuda em São Paulo). Daniel conseguiu encontrar uma loja com camisas oficiais dos times uruguaios. Os preços são proibitivos. Mil e trezentos pesos a infantil, qualquer equipe (cento e sessenta reais). A adulta vale dois mil pesos (250 reais). Paramos rapidamente para sucos de laranja e sanduíches de queijo. O que vocês mais gostaram até aqui?, provoquei. Eu achei sinistro o túmulo do libertador deles, mandou Daniel. A fonte com os cadeados, anunciou Luiza. O MIrante!, decretou Elisa. Eu também. Adorei vê-lo aqui da rua, depois que descemos. Muito bonito e garboso. Numa banca de jornal, a manchete do El País (custa 55 pesos, quase sete reais), um dos principais periódicos daqui, destacava que os ruralistas estão programando para a próxima semana um protesto contra o presidente Tabaré Vázquez, da Frente Ampla, por conta do aumento de tarifas de combustível e de energia elétrica. Do pouco que consegui pescar até aqui, confirma-se o que já me havia sido dito por amigos que visitaram Montevideu nos últimos anos: as elites de cá não digeriram as importantes mudanças sociais vividas pelo país mais recentemente, sobretudo durante a administração de José Mujica. Lembro-me bem da torcida celeste xingando o ex-mandatário do país nas arquibancadas do Castelão e do Itaquerão, na Copa do Mundo de 2014.Nenhuma semelhança com os mais favorecidos do Brasil, que receberam de forma efusiva e de braços e abertos, com elogios, projetos como o Bolsa Família e o Mais Médicos. Você sai do Brasil, mas o Brasil não sai de você. Cruzamos a Praça Independência. Entramos novamente pela Cidade Velha. Mais uns dois quilômetros. Ladeiras vazias e silenciosas. Chegamos ao Mercado do Porto. O prêmio pela perseverança e determinação - almoço de picanha suculenta e super macia, batatas fritas e linguiça apimentada, com cerveja gelada, claro. Um deleite. Era um dos programas que estava no topo da minha lista. Desejo saciado, com louvor. Barriga cheia, pernas exaustas. Auto-bus 104. O embalo do ônibus na volta me fez dar umas cochiladas.


CAPÍTULO 3

'Vamos ver se a água está gelada!'. Saiu num pinote, desabalada carreira, chutando areia para todos os lados. Ao chegar às primeiras ondas, conseguir dar mais dois ou três passos largos e desabou num mergulho - uma barrigada - de alegria. 'Está uma delícia, mais quentinha que a do Guarujá e a de Salvador", avisou Daniel, sumindo de novo nas águas amarronzadas do Rio da Prata. Tomou caldo, saiu rolando, brincou de pegar jacaré na marola bem mansa, encheu a cabeça de areia só para ganhar motivo para mais um mergulho. Não importa se é salgada ou doce. O moleque adora qualquer água. Sem tirar o olho do boleiro, avistei na areia uma gaivota que se deliciava com um peixe morto. Bicava, arrancava um naco de carne, gastava alguns segundos engolindo o banquete. A cena chamou minha atenção, sei lá razão. Fiz sinal para Daniel alertando 'não passe desse ponto' e comecei a me aproximar da ave comilona. Ela largou a presa. Mexeu a cabeça para lá, para cá. Ressabiada, deu mais uma bicada. Cheguei mais perto. Provavelmente invadi a área de proteção. Presa e predador. Algum alarme nas penas foi acionado. A gaivota largou rapidamente o peixe e saiu voando, não muito alto, em círculos, como se demarcasse território. Afastei-me. Ela pousou. Retomou a festa gastronômica. Insisti na brincadeira com fundo científico mais duas vezes. As reações foram as mesmas. Eu perto, ela voa; eu longe, ela come. A sábia mãe natureza tem suas regras - e uma das mais importantes diz que é preciso estar atento e forte para garantir a própria sobrevivência. Sem vacilar. Era o que a gaivota estava fazendo. Eu era uma ameaça. Parei de encher o saco dela e sentei na areia, sem perder Daniel de vista. Elisa aproveitava o sol, já tinha se esbaldado nas ondas também. Vimos chegar uma excursão de férias, acho. Eram cinco adultos e umas vinte crianças, idades variadas, pequenas e maiores. Depois de breve reunião em círculo para acertar os combinados, dois monitores começaram a desenrolar um novelo de um barbante grosso. Será que vão amarrar as crianças?, brincamos. Logo percebemos que a engenhoca tinha utilidade fundamental - os dois grandões entraram no mar, até o ponto em que estavam com água no peito, caminharam em direções opostas, esticaram a linha e ficaram ali, um de frente para o outro, paradinhos. Até ali era tranquilo, liberado, as crianças podiam nadar e brincar à vontade e sem medos. Mas nada de ultrapassar a fronteira. À beira mar (rio), Luiza estava encafifada com algumas águas vivas mortas. Eram bem pequenas. Ela foi lá conferir. Abaixou, olhou. Examinou. Aquele que parecia ser o coordenador da excursão aproximou-se dela. De onde estávamos, consegui identificar que o senhor gentilmente dava algumas explicações sobre o bicho. Luiza ouvia atentamente. Quando voltou para a esteira, perguntei, curioso: 'o que ele disse, filha?'. Sei lá, não entendi nada, falava muito rápido. Mas acho que era sobre como a água viva queima a pele da gente. Rimos. Só uma coisa nesse mundo tem o poder mágico e imediato de fazer Daniel sair da água. Uma bola de futebol. E a redonda apareceu. O boleiro já pode colocar no currículo que jogou com e contra uruguaios. Valoriza o passe. Permite aumentar o valor da multa rescisória. E o garoto fez bonito, foi pra cima e arriscou nos dribles... cuidado, não conhece a raça celeste. Tudo bem. O amigo uruguaio entendeu o espírito. Só brincadeira de uma manhã ensolarada de domingo. Enterrado na areia, num barranco de areia bem perto de onde estávamos, um aparelho de televisão. Estranha visão. O grande irmão da praia, avisou Elisa. Na faculdade, um professor meu já dizia: quer conhecer uma cidade? Ande de ônibus. Hoje pegamos um com trajeto diferente do que fizemos ontem. Aposta certa. Percorremos mais quatro bairros de Montevidéu: Cordón, com casas a lembrar remotamente o Bixiga e o Brás paulistanos; Rodó, onde está o maior e mais popular parque da cidade, o Ibirapuera deles; Pocitos, que tem cara de lugar do agito e das baladas, talvez uma Vila Madalena da cidade, com prédios mais altos; e Malvin/Punta Gorda, zonas residenciais e aparentemente mais tranquilas, com muitas praças e áreas de lazer. Elisa arriscou comparar com City Lapa. É curioso como estamos sempre buscando essas referências e associações, vivências e memórias mais próximas, nesse desejo gostoso de descobrir, conhecer e decantar o novo. Quando saímos de São Paulo, doze em cada dez amigos que já conheciam Montevidéu nos recomendavam visitar a famosa feira da rua Tristan Narvaja. Obrigatória, diziam. Uma Benedito Calixto com outras ofertas. Referências. Fomos conferir. O passeio é mesmo muito divertido. A feira é um pouco de tudo junto e misturado, tomates e melancias ao lado de camisas de futebol, temperos e batatas dividindo espaço com DVDs genéricos e jogos de vídeo-game, cigarros, brincos e canecas em prateleiras próximas, verduras fresquinhas numa barraca, cuecas e meias na barraca da frente. É preciso ter paciência e fôlego para explorar os dez quarteirões e olhos atentos para encontrar as boas oportunidades. Além do peso, aceitam reais e dólares. Daniel faturou para a coleção, em promoção, três pequenas flâmulas de times uruguaios. Peñarol, Nacional e Defensor. Provoquei o vendedor - qual a maior torcida daqui? Peñarol, certamente, ele cravou, sem titubear. Era o que imaginava. Luiza gostou de brincos, lenços de cabelo e bottons. Era hora do almoço, o cheirinho de churrasco nos acompanhou durante boa parte das andanças. O da marijuana também, vendida legalmente por aqui. Elisa fez troça: 'já sei o que vou levar para casa como lembrança'. E apontou para um enorme queijo redondo. Apetitoso, mas... 'Mãe, não dá', retrucou Luiza. 'Guardo na geladeira no hotel. Fica geladinho. Dá tudo certo', insistiu a mãe. 'Deixa de brincadeira', finalizou a pequena, já nervosa com o rumo da prosa. Mais gargalhadas. Visitei a alameda das barracas de livros. Numa esquina, vocal e guitarra, apresentação de rock uruguaio. A dupla lembrava os barbudos do ZZ Top. Barrigas começaram a roncar. 'Pai, quero comer milanesa', pediu Dani. Sugerimos o "Papoñita", restaurante simpático na esquina da 18 de julho com a Praça dos 33. Primeira pergunta: aceita reais? Si. Segunda pergunta: tem wifi? Porque, se uma adolescente com síndrome de abstinência de celular e necessidade imediatíssima de zapzap com as amigas faz parte da comitiva, é preciso confirmar se há serviço de internet acessível, antes de conferir cardápios e preços. Questão de sobrevivência. Suspense, esperando a resposta do garçom. Si, también tenemos wifi, garantiu. Luiza não precisou de tradutor. Entendeu, sorriu e relaxou. Trezentas toneladas mais leve. O medidor de humor saltou de 'alerta, risco de caretas e cara fechada' para 'tô de boa'. ''Pai, eu precisava'. Entendemos. Entramos. Comida boa, preço camarada. Panças cheias, leseira. A trupe esbodegada e saciada volta para o hotel. Boa notícia: ônibus não demoram a passar em Montevidéu, mesmo no final da tarde de um dia de domingo. Faz de conta que ainda é cedo.


CAPÍTULO 4

Sem fila. Bom dia. O garoto tem nove anos. Paga ingresso?, consultei, ansioso. Não, senhor, é livre. Basta apresentar o documento de identidade dele no acesso ao estádio, respondeu o vendedor. Mostrei o RG. Serve? É esse? Somos brasileiros. Sim, sim. Então são três entradas, por favor, na tribuna olímpica. Qual torcida, senhor? Do Peñarol!, respondemos os quatro, em coro e bem alto. O simpático moço fez uma cara de 'puxa, que pena, fazer o que, tudo bem, tentei'. Era torcedor do Nacional. Quando ele imprimiu e nos entregou os ingressos - Copa Antel, Estádio Centenário, Palmeiras x Libertad e Nacional x Peñarol -, não sei quem tinha a cara de criança mais troncha, feliz e realizada do mundo, eu ou Daniel. Desde novembro estávamos namorando esse torneio, fazendo as combinações, a chance de ver a bola rolar no mítico estádio que abrigou a final da primeira Copa do Mundo, em 1930. O grande clássico da cidade. Lá estaremos nós. A máxima alegria pela conquista boleira ajudou a esquecer um pouquinho a notícia esdrúxula que chegou do Brasil. Li logo cedinho que o mocinho do MBL é agora colunista do portal UOL. Que lástima. Indigência intelectual. Sou de um tempo em que, para se alcançar tão nobre função, era preciso respeitar os valores democráticos, ter ideias e argumentos e conseguir expressá-los. A direita brasileira já foi mais inteligente. Como abominamos qualquer tentativa de golpe - lá e cá, ontem e hoje - e reafirmando sempre o nosso espaço - o das lutas cotidianas pelos direitos humanos -, atravessamos Montevidéu para homenagear os perseguidos, mortos e desaparecidos políticos pela ditadura militar uruguaia. Museu da Memória. Fica distante do Centro, uns trinta minutos de ônibus, já na direção da região das vinícolas. Tinha confirmado, abre às segundas. Quando lá chegamos, no entanto, surpresa: fechado para reparos, até 25 de janeiro (o site não trazia essa informação). Não consegui esconder a decepção. 'Pai, que pena, estamos muito tristes por você. Era um dos lugares que você mais queria visitar', lamentaram Luiza e Daniel. Agradeci, Paciência. Faz parte. Conseguimos ao menos caminhar pelo agradável parque onde está instalado o casarão, que foi construído em 1878 e pertenceu a Máximo Santos, que governou com mão de ferro o país no final do século XIX, entre 1882-1886. Numa das alamedas, exposição de fotos marcando diferentes momentos e personagens dos tempos sombrios de terror e das lutas pela redemocratização. Imposta ao país em 27 de junho de 1973, depois de um golpe dado pelo presidente Juan María Bordaberry, que decretou o fechamento do Parlamento em nome da 'doutrina de segurança nacional' e para 'combater o comunismo', a ditadura mergulhou o Uruguai num período de prisões arbitrárias, torturas, exílios e assassinatos de militantes de esquerda. São ainda 174 os desaparecidos políticos, de acordo com levantamentos feitos por entidades de direitos humanos. O principal grupo de resistência - inclusive armada - à ditadura foram os Tupamaros (referência a Tupac Amaru, último líder do Império Inca). O povo reconquistou as liberdades democráticas em 1985. É preciso sentir profundamente cada injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, ensinou Ernesto Guevara. Ali, no silêncio respeitoso do parque, nossos pensamentos de gratidão e reverência abraçaram os companheiros uruguaios que tombaram sonhando com um mundo mais justo. Não esqueceremos. Não perdoaremos. Voltaremos para conhecer o museu. Pela manhã, segundona ensolarada em Montevidéu, já tínhamos conhecido outro Parque, o famoso Rodó, enorme área verde (são 42 hectares de extensão, acabei de consultar aqui no site oficial) com lagos, fontes, largas alamedas e atrações como um parque de diversões e pedalinhos. Estava praticamente vazio. Não tem cercas ou portões - ou seja, em tese, recebe visitantes 24 horas por dia. Caminhávamos sem compromisso, falando besteira e jogando conversa fora, desfrutando das sombras, quando, muito sem querer, nada planejado mesmo, demos de cara com o estádio do Defensor, o time uruguaio que tem espaço privilegiado no coração do Daniel. É um típico campo de bairro, cercado por casas populares, com arquibancadas baixas pintadas de roxo (a cor do time) e sustentadas por estruturas de ferro, capacidade para 18 mil torcedores e portões de ferro enferrujados a proteger as entradas. Viva a rua Javari! Salva de palmas para a rua Comendador Sousa! Uma campainha no estádio. Insólito. Tocamos. Nada. Fomos rodeando as arquibancadas. Encontramos uma porta aberta. 'Não, aqui é o clube de férias, não há acesso ao campo'. Não desistimos. Descemos a rua transversal. Outro portão. Com cadeado. Com campainha. Um senhor com toda pinta de comissão técnica abriu. Viu minha camisa do Santos, Daniel com uniforme do Valencia da Espanha. Matou a charada na hora. Foi muito educado. 'Me desculpem, não é possível visitar o estádio hoje, estamos em concentração. Sinto muito. Me desculpem'. Bem, tentamos. Agradecemos. Queríamos visitar o Museu de Artes Visuais. Fechado também. Não foi fácil encontrar lugar para almoçar. Novamente sem querer, acabamos parando na sede social do Defensor. A simpatia dos funcionários nos conquistou. 'Sim, claro, fiquem à vontade'. Depois de rápido passeio pelo clube (piscinas, sala de musculação, quadras), matamos a fome com empanadas na lanchonete. Sim, tinha wifi. Luiza se esbaldou. Conversou com as amigas e levantou as informações sobre a casa onde Dado Villa-Lobos, guitarrista da Legião Urbana, viveu quando criança aqui em Montevidéu. Não foi tempo perdido. Estamos planejando visitá-la na quarta-feira. Luiza, aliás, disse que Montevidéu fez milagres com o pai dela. 'Você fez exercício sem ser jogo de futebol, foi ao banheiro do avião, brincou num balanço, tomou água e até dormiu cedo!'. Até subi num mirante maluco, completei. Hoje, aliás, passamos mais uma vez na frente daquele elevador do terror. 'Olha o que eu fui fazer', falei bem baixinho. As trapalhadas da trupe Marconi Bicudo não acontecem apenas nas alturas. Ontem, depois do jantar no restaurante do hotel, eu e Daniel marchávamos escada acima, rumo ao quarto, quando ouvimos Luiza e Elisa gritarem, histéricas e desesperadas. Saíram correndo, arrepiadas. Pula de cá, pula de lá. 'Uma barata, uma barata'. O funcionário da recepção correu para acudir. E quem disse que, na aflição do encontro com o inseto nojento, elas conseguiam explicar? 'Una barata... ali', apontavam. Último recurso, Elisa arriscou colocar os dedinhos na cabeça, como se fossem antenas, e fez cara de nojo e pavor. Nada de lembrar da 'cucaracha'. O rapaz finalmente decifrou o enigma e encontrou a bichana. Dona baratinha passou desta para melhor. Com receio de ressurreição e vingança, mãe e filha ainda acharam mais apropriado e seguro dar a volta no hotel e chegar ao dormitório por outro caminho. Agora passam bem, muito mais tranquilas. Obrigado pela preocupação. Amigos e amigas, ônibus às seis da tarde em dia útil também é lotadaço na capital uruguaia. Empurrões e esbarrões. Pacotes e sacolas. Segura firme. Por aqui, uruguaio que é uruguaio espirra de verdade, para limpar até a alma. E não é ATCHIIIIIIIM. É ATCHUUUUUUU, com "U" final grave e proloooongaaaado. Fui acordado por um desses hoje cedinho. Delicadamente.


CAPÍTULO 5 

Cheguei de leve, suave, pé ante pé, para não assustar. A camisa celeste amassada, marcas de terra ainda visíveis, número cinco vermelho nas costas. Respeito. O busto de Obdulio Varela, conhecido como 'El Negro Jefe', o capitão uruguaio que levantou a Taça Jules Rimet em 1950, em pleno Maracanã. Olhar altivo, firme, imponente. Um vencedor. Bravo guerreiro. Volante das antigas. Jogar contra ele não deve mesmo ter sido fácil. Assusta. A oportunidade era única. Não podia perdê-la. Ali, tão perto, achei por bem ter uma conversinha ao pé do ouvido. De boleiro para boleiro. Falei bem baixo, quase sussurrando. Capitão, antes de mais nada, minha admiração. Você faz parte do Olimpo do futebol. Sou Chico Bicudo, brasileiro apaixonado por esse esporte jogado com os pés, santista de coração. Isso mesmo, o Santos de Pelé. Concordo. O maior de todos os tempos. Você gostaria de tê-lo enfrentado? Duelo de titãs. Sabe, Obdulio - posso chamá-lo assim? -, não discuto a justiça do título de 50. O Uruguai foi merecedor. Não importa se foi na catimba, amarrando o jogo, com cusparada na cara do Bigode, farta distribuição de pontapés, faltas a granel, retranca para segurar o poderoso ataque brasileiro, jogadas rápidas e certeiras pelas pontas para resolver a peleja. Tecnicamente, talvez a nossa seleção fosse melhor, mais habilidosa. Mas o salto ficou muito alto. Exageramos. Entramos em campo com a faixa no peito. Achamos que vocês não seriam páreo para Zizinho e Ademir Menezes. A torcida foi arrogante nas arquibancadas. Vocês fizeram valer a velha garra uruguaia. Genial aquela sua ideia de esperar para entrar em campo no exato momento em que o escrete amarelo também o fazia, para aproveitar os aplausos e os fogos e escapar das vaias. Tudo isso é história. Mas minha pergunta é: precisava ser naquele 16 de julho? Justo no Maraca? Doeu. Feriu de morte a alma brasileira. Cresci ouvindo a saga do Maracanazo. O fantasma celeste nos assombra até hoje. Tudo bem, você tem razão, o monstro que mais atormenta atualmente o futebol brasileiro veste a camisa da Alemanha. Precisava lembrar? Como? Não entendi... vocês falam muito rápido. Ah, sim. Eu sei, eu sei, já ouvi dizer e li que você ficou profundamente chocado depois do jogo, quase arrependido quando andou pelo Rio de Janeiro e encontrou uma cidade vazia e aos prantos.Desculpas? Nada disso, campeão. Assim é o futebol. Feito de glórias e de traumas. Foi só um desabafo mesmo, aproveitei que estávamos aqui em Montevidéu, Museu do Futebol, você aí sozinho, livre e à disposição para um papo. Tudo certo. E pena que você não jogou no meu Santos, na década de 60. Jogar com Pelé, não contra ele. Muito melhor. Já imaginou? El Negro Jefe abriu um sorrisão. E recitou, sem tropeças ou gaguejar - 'Zito e Obdulio. Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe'. Não me contive. Puta merda, que time é esse! Tasquei-lhe um abraçaço. Ele retribuiu, efusivamente. Fica bem, capitão. Até a próxima. O busto de Obdulio Varela - e várias outras referências feitas ao herói nacional - estão entre as principais atrações do Museu do Futebol, que fica debaixo das tribunas olímpicas do Estádio Centenário. É mais tradicional e menos tecnológico e interativo que o irmão do Brasil, que fica no Pacaembu. Por aqui, encontramos flâmulas, camisas, chuteiras e bolas de jogos históricos, réplicas de taças conquistadas pela Celeste, o cartaz original da Copa de 1930 e fotos, muitas fotos - algumas em enormes painéis em preto e branco - que preservam a memória boleira uruguaia. É também possível acessar as arquibancadas do estádio. Para um torcedor apaixonado, estar nas cadeiras do Centenário é algo mágico, transcendental. Seria como poder tocar o sabre de luz de Luke Skywalker, para um fã de Star Wars, ou manipular a varinha das varinhas, no caso de um potter maníaco. Foi só o aperitivo. Amanhã estaremos de novo no estádio, para ver Peñarol x Nacional, o grande clássico da cidade. Obdulio estará sentado ao meu lado. Combinamos de ver juntos. Vamos comentar a partida. E cornetar. Sempre de auto-bus, chegamos à Cidade Velha. A parada seguinte foi no Museu Gurvich, para conhecer e apreciar de perto a obra do pintor e ceramista José Gurvich, nascido na Lituânia e que chegou ao Uruguai com cinco anos, em 1932. São quadros, murais, artesanato e trabalhos em madeira que retratam o cotidiano do Cerro, um bairro operário e de imigrantes onde ele viveu, além de referências aos valores e tradições do judaísmo. Luiza e Daniel gostaram muito de um quadro chamado "Os sete pecados capitais", explosão misturada e caótica de imagens de seres humanos e animais a representar gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e vaidade. 'Pai, a gente pode sempre fazer essas viagens internacionais legais', sugeriu Daniel. Tomara que sim, filho. Final da tarde, estivemos ainda no Museu Torres Garcia, um dos pioneiros das artes contemporâneas uruguaias, mestre de tantos outros artistas locais, incluindo Gurvich. A obra dele mistura pinceladas do universo greco-romano com traços modernistas e está preservada num casarão antigo com quatro andares, a poucos metros da porta de entrada da Cidade Velha. 'O que mais me chamou a atenção foram as pinturas e desenhos sobre Nova Iorque", registrou Luiza. É mais um passeio recomendadíssimo para quem visita a capital uruguaia. Para descansar as perninhas (como andamos por aqui!), entre um museu e outro estacionamos a caravana no Café Brasileiro, o mais antigo da cidade, fundado em 1877, e onde o escritor Eduardo Galeano tinha mesa cativa, grudada num dos janelões com vista privilegiada para a rua. Pedi um capuccino. Brisei, como dizem os meninos. Fui longe. Vi Galeano chegando e tomando assento. Acenou para o garçom, velho conhecido. Pediu 'o de sempre, por favor'. Abriu um caderninho e começou a fazer anotações. Acho que ele percebeu minha inquietação. Com sutil movimento de cabeça, convidou-me a sentar com ele. 'Olá, boa tarde, sou Chico Bicudo, brasileiro e admirador de sua obra'. Amenidades, para começar. Depois de uns dez minutos falando sobre o tempo, as belezas de Montevidéu, a seleção brasileira, o Santos, criei coragem e dei vazão ao sangue jornalístico. 'Mestre, perdão, mas são muitas minhas dúvidas. Angústias, na verdade. O ciclo das esquerdas está mesmo chegando ao fim na América do Sul? Viveremos nova onda neoliberal? O fascismo está avançando? E a crise na Venezuela? Macri na Argentina? A tentativa de golpear Dilma do poder Foram experiências sociais que vamos perder?'. Ele ouviu tudo com muita atenção. Fechou o caderno, colocou a caneta de lado. Pousou a mão no meu ombro. Respirou fundo. 'A conversa é longa. Tens paciência? Tempo?'. Ajeitei-me na cadeira. 'Garçom, por favor, uma cerveja. Bem gelada'. Silêncio. Galeano começou a falar pausadamente sobre as veias abertas da América Latina. As antigas e as novas.


CAPÍTULO 6

Em assembleia extraordinária, com ata devidamente registrada no tribunal familiar revolucionário, o coletivo popular e democrático Marconi Bicudo deliberou por unanimidade que a militante Luiza teria a prerrogativa de escolher a programação da manhã da quarta-feira na cidade de Montevidéu. Nada de questões de ordem ou de encaminhamento. Ela mandou de primeira, três dedos e muita precisão - quero visitar a rua Francisco Vidal, onde Dado Villa Lobos, guitarrista da Legião Urbana, morou quando era criança, no início dos anos 1970. É tudo de bom! É vida! É um sonho! Era a vontade de costurar redes de pertencimento com a banda que ela idolatra. Não temos tempo a perder. Depois de mais uma vez recorrermos ao auto-bus 104, já nosso amigo de longa data, e com Elisa pilotando o mapa, encontramos facilmente a calle tão desejada. Fica bem na entrada do bairro de Pocitos, a poucos metros da avenida da praia, numa das regiões mais nobres da cidade. Morava bem esse rapaz, hein? Olha só. Tudo prédio chique, alto padrão, casa de gente fina e bacana. Muito bem de vida, provocou a mãe. O pai dele era diplomata e trabalhava no Banco do Brasil, mãe, retrucou Luiza, já subindo nas tamancas, rangendo os dentes e ameaçando cuspir fogo pelas ventas. Você me diz que seus pais não te entendem, mas você não entende seus pais. No livro 'Memórias de um legionário', escrito pelo músico, há uma foto de Dado ainda adolescente debaixo de uma placa com o nome da rua. A mocinha quis repetir a imagem. Perfeitamente. Mas qual era a placa? Apontou para um prédio na primeira esquina. 'É ali'. Parada obrigatória da excursão. Fotos. Surto de alegria. Comemorações. Filha, você lembra mesmo? Tem certeza que era aqui? São perguntas que jamais devem ser feitas a uma geminiana. Olha, analisa, pensa, compara. 'Bem... acho que erramos. Me desculpem, é lá, naquela outra casa'. Lá vamos nós. Mais fotos. 'Agora tenho certeza'. Ou não. Já morei em tantas casas que nem me lembro mais. No quarteirão seguinte... 'quer dizer, ai, gente, não era lá, é naquele predinho de tijolos. Agora é mesmo'. Uma senhora estava na janela. Pedimos permissão. 'Claro, por favor'. Mais fotos. No fim das contas, por medida de segurança, posou para as fotos em quase todas as placas com o nome da rua. Verdadeiro ensaio fotográfico. Virou meme familiar. 'Lui, vai ali naquela placa'. Na volta a São Paulo, quando ela confirmar no livro, saberemos finalmente qual é A imagem. Aguardem. 'Vou mandar todas para o Dado. Ainda tenho o e-mail dele'. Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração. E quem irá dizer que não existe razão. Se a irmã levitava nas nuvens graças ao prêmio legionário alcançado, Daniel era só azedume, merecedor do troféu limão. Passou a manhã de cara fechada. Está bravo por quê? É sono? Quer fazer outro passeio? Só se dava ao trabalho de chacoalhar a cabeça e responder negativamente. Nem mesmo uma banquinha que vendia camisas de futebol foi capaz de fazer sumir a carranca do boleiro. Os resmungos rabugentos continuaram. No almoço, matou um bife à milanesa enorme, daqueles de deixar uma sucuri satisfeita por uma semana, com direito ainda à porção de batatas fritas e uma quase jarra de suco de laranja, além de umas bicadas numa tortinha de doce de leite. Deu-se então a transformação. O moleque desandou a falar, a contar piada e rir. Voltou até a encher o saco da irmã, tirando sarro por conta das mil fotos tiradas. O mal do garoto tinha quatro letras: fome. Agora está dormindo. Concentração total para as partidas de logo mais no Centenário. Pegamos tempo nublado e uma chuva fina pela primeira vez em Montevidéu. Vento no litoral. Mas é claro que o sol vai voltar amanhã.


CAPÍTULO FINAL

Quando contamos a Javier, guia que nos pegou no hotel para o passeio em Colônia do Sacramento, que tínhamos rodado a cidade usando o auto bus 104, ele fez cara de espanto e assobiou. 'Uou, puxa, então vocês conheceram mesmo Montevidéu. Porque essa linha anda, anda e anda. Passa por vários bairros. De onde estão até o Centro demora perto de uma hora'. Admirado com nossa disposição andarilha, quis saber quais os lugares que tínhamos visitado. Comecei a lista pelo Centenário, que ainda estava fresquinho na memória. 'Visitaram ontem o estádio? A que horas?'. Fomos ver a Copa Antel, o jogo do Palmeiras contra o Libertad do Paraguai e o clássico local. 'Bem, vamos mudar de assunto. Nada de futebol. Vejam como o tempo está bonito. Abriu sol de novo', emendou, cheio de ironia. Javier é torcedor do Peñarol, derrotado ontem por 3 x 1 pelo arquirrival Nacional. Já conto essa história. A viagem até Colônia leva cerca de duas horas. São quase 200 quilômetros, atravessando as periferias e a zona rural, onde ficam as vinícolas e as fazendas de gado. Segundo a guia, que se chamava Rosário, passamos perto da casa do ex-presidente Mujica. Salve, camarada! Um abraço. Antes do desembarque em Sacramento. paramos no Museu das Coleções. Simples e gracioso. Nele estão muito bem preservadas e guardadas as maiores coleções de chaveiros (achei até um do Santos), de lápis e de cinzeiros do planeta, oficialmente reconhecidas pelo Guinness. Ao lado, uma lojinha com produtos típicos uruguaios. Degustação de doce de leite. Perdição. Alguém me segura. 'É agora que o papai vai se acabar', anunciou Luiza. Mandei uma colherada, daquelas bem recheadas. É de lamber os beiços. Dei uma voltinha na mesa, entrei de novo na fila, fingi que era a primeira vez. Mais uma colherada. E outra. Virei uma criança sem limites, me lambuzando com o doce. Fiquei com medo de acabar com a vasilha e passar vergonha. Comprei um potão para levar para São Paulo. Mais civilizado. Sacramento foi fundada por portugueses em 1678. O centro histórico da cidade lembra muito Paraty (eu e as minhas referências e memórias afetivas), com as ruas de pedras conhecidas como pé de moleque e os paralelepípedos, as calçadas estreitas, as ladeiras que terminam no Rio da Prata, as casas que guardam as lembranças dos domínios de Portugal e Espanha (a cidade foi disputada pelas duas nações até o final do século XVIII, sofrendo ainda influências inglesas). Na entrada, as ruínas de uma muralha que servia para protegê-la dos invasores. Na rua do Suspiro estão as residências mais antigas, construídas logo após a chegada dos lusitanos. Com a chuva - rápida, mas forte -, o chão ficou ainda mais escorregadio e traiçoeiro. Duas jovens passaram ao nosso lado pedalando bicicletas. Corajosas. Outra chegou empurrando o carrinho de bebê. Feito ainda mais heroico. Uma garota, apoiada em muletas, também cruzou o portal junto à muralha. Essa merece o troféu de campeã da ousadia e alegria. Fiquei pensando onde poderia ser instalada a Tenda dos Autores numa eventual festa literária internacional de Sacramento, a FLICS. A praça central é bem ampla e charmosa. Daria boa combinação. No almoço, papo animado na mesa ao lado, sobre o rebaixamento do Vasco no Campeonato Brasileiro. Liguei as antenas. Pescoço de girafa e ouvidos atentos. A senhora tentava se lembrar do nome de um treinador com breve passagem pelo time cruzmaltino. ‘Foi campeão com um time do interior’... Eu dizendo baixinho “Doriva’. ‘O nome fugiu, jogou no São Paulo’.... Eu me segurando muito para não atravessar a conversa. ‘Era um nome curto...’. Foi provocação demais. Incentivado pela Elisa, que já tinha entendido que eu estava quase me contorcendo e mordendo a mão, pedi licença e mandei ver. ‘Doriva. Foi campeão pelo Ituano em 2014, contra o Santos’. Respirei tranquilo. Cerveja gelada. Eles agradeceram e continuaram animadamente a resenha boleira. A mesa-redonda casual me jogou de novo para o Centenário, noite de ontem. O estádio em que foi disputada a primeira final de uma Copa do Mundo, em 1930. O campo onde o Santos de Neymar abriu caminho para a conquista da terceira Taça Libertadores da América, em 2011, quando suportou a pressão de um caldeirão lotado e de um Peñarol empurrado pela fanática torcida aurinegra. Acompanhei aquele jogo pelo rádio, agachado sozinho num canto do terraço da universidade, noite gelada de 15 de junho, temperatura perto de dez graus e um vento de cortar os ossos. Garantimos o zero a zero. Na finalíssima, num Pacaembu de mar branco inesquecível, vencemos os uruguaios por dois a um. Eu estava nas arquibancadas. Os torcedores do Peñarol marcaram bela presença. Ainda sou também capaz de escutar os uruguaios cantando ‘soy celeste’ nas arquibancadas dos estádios da Copa do Mundo, em 2014. Ontem, na tribuna olímpica do Centenário (que fica acima do Museu do Futebol), pude entender um pouquinho mais o que o futebol significa para eles. Pura paixão. Adoração. Adrenalina. Festa. Azul, vermelho e branco dos tricolores do Nacional à minha direita. Preto e amarelo dos carboneros do Peñarol à esquerda. Bumbos. Chapéus. Bandeiras. Fumaça. E cantos, muitos cantos ensaiados, melodias diversas. Que pena que não temos mais no Brasil clássicos com duas torcidas dividindo ao meio as arquibancadas. Elisa entrou na dança e pulou com os carboneros, para quem torcemos. Luiza estava hipnotizada pela beleza do atacante Diego Forlan. Daniel não se cansava de dizer que era mais um sonho realizado e fazia as vezes de comentarista. ‘O Nacional toca mais a bola. O Peñarol não tem meio. É só balão para a frente’. Eu? Olhava tudo, em quase transe. Tentava registrar cada cena, para nunca mais esquecer. E me divertia. Os tricolores saíram na frente, falta ensaiada. No gol de empate do Peñarol, um maluco que estava no setor de cadeiras mais próximo do campo abriu um guarda-chuva preto e amarelo e, sem camisa, nem se preocupou em acompanhar a comemoração do time. Saiu correndo para a corda que separava as torcidas, a berrar impropérios e fazer frenéticos gestos obscenos para a galera adversária. Depois de uns dois minutos de loucura total, voltou para o lugar calmamente, como se nada tivesse acontecido. O Nacional ainda faria mais dois – um golaço de fora da área, no ângulo, e o terceiro no final da partida, em jogada individual de Nicolás López, bem na nossa frente. 3 x 1 Nacional, para tristeza do Javier, nosso guia. O time uruguaio fará a final da Copa no próximo sábado contra o Palmeiras, que venceu o Libertad por 2 x 0 (vimos o segundo tempo e os dois gols). Em nossa primeira passagem pelo histórico Centenário, vimos dois jogos e seis gols. Espetáculo. Acompanharemos a decisão pela ESPN Brasil, já de volta a São Paulo. Com saudades de Montevidéu. Elisa escolheu como os três programas mais queridos da temporada correr na praia, andar pela Cidade Velha e Colônia do Sacramento. Daniel elegeu o jogo no Centenário, a Cidade Velha e os cachorros que passeiam pela capital. Luiza listou a visita à rua onde Dado Villa Lobos viveu quando criança (vamos tirar uma foto naquela placa?), a Cidade Velha e uma feirinha permanente que funciona numa esquina da 18 de julho. Eu? Vou de clássico no Centenário, picanha com cerveja gelada no Mercado do Porto e o mausoléu de José Artigas na Praça Independência. Quando nos despedimos, na volta de Sacramento, Javier confessou ao Dani: “Não gosto do seu Santos. Nos tirou a Libertadores de 2011”. Era mais uma simpática brincadeira. “Nada. Aproveite o título. E boa viagem”.

Um comentário:

  1. Como é que se lê textos sem um único parágrafo? Amigo, seus relatos parecem ser bem interessantes, mas comecei a ler, me perdi no meio do primeiro texto e nunca mais encontrei o ponto onde parei... Como é que se lê textos sem um único parágrafo?

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