domingo, 2 de novembro de 2014

OS ACERTOS DO LULISMO ALIMENTARAM A SERPENTE DO GOLPE

A serpente peçonhenta e golpista que andou rastejando e mostrando seus olhos esbugalhados e dentes afiados ontem na avenida Paulista não quebrou a casca do ovo nem dele escapou empurrada pelos erros e pelos não feitos dos governos Lula-Dilma (que são muitos, muitos mesmo, e devem ser apontados, criticados e combatidos, democraticamente).
A cobra sorrateira encontrou as condições favoráveis de temperatura e pressão para se apresentar publicamente, sem pudores ou constrangimentos, exibindo-se perigosamente, porque foi fortemente impulsionada pelos acertos oferecidos pelos doze anos de administrações petistas no plano federal.
Os avanços garantidos pelo lulismo é que não são tolerados por quem agora sente saudade de tempos horrendos e obscuros. O que a Casa Grande não aceita é uma democracia com presença e cheiro de povo. Morrem de medo do andar de baixo cutucando o andar de cima. Ficam horrorizados quando constatam que espaços até muito recentemente destinados quase que exclusivamente aos filhos das elites foram também justamente ocupados por herdeiros daqueles que consideram uma 'ralé que já não aceita mais seu devido lugar de origem'. O bacana da SUV não se conforma em ter de pedir passagem no trânsito para o 'pobretão do carro popular, comprado por conta de redução de IPI e em suaves prestações'. A madame tem úlceras doloridíssimas quando tromba com sua empregada frequentando a mesma loja, o mesmo salão de beleza, usando o mesmo perfume. É ódio de classe.
O professor Jessé de Souza já escreveu que "é a raiva ancestral de uma sociedade escravocrata, acostumada a um exército de servidores cordatos e humilhados, que explica a tolice dos que compram a ideia absurda de mais mercado no país do mercado já mais injusto e concentrado do mundo. A raiva, no fundo, é contra o fato de muitos desses esquecidos estarem agora competindo pelo espaço antes reservado à classe média, como vimos nos 'rolezinhos', nas reclamações dos aeroportos cheios e na perda da distinção com relação à 'gentinha' não mais tão cordata e humilhada. Sem o ressentimento e o desprezo ao populacho - no fundo, o medo da competição social transformada em agressão -, não há como entender que tanta gente seja manipulada por um discurso hoje tão descolado da realidade como o da virtude do mercado e demonização do Estado". Vale reforçar: para ele, esse sentimento de ódio que se espalha e cria raízes cada vez mais profundas é "o medo da competição social revertido em agressão".
Na esteira desse ressentimento raivoso, e como uma das complexas consequências das manifestações de junho do ano passado, que destravou pautas progressistas tanto quanto escancarou a caixa de Pandora, o filósofo Paulo Arantes aponta o surgimento, no Brasil, de "uma direita não convencional, que não está contemplada pelos esquemas tradicionais da política, interessada apenas em impedir que aconteçam governos".
Esperavam, os endinheirados coléricos, interromper esse processo ainda muito incipiente - não dá para superar 500 anos de exclusões em doze de governo, há muito ainda a avançar e conquistar - no último domingo. Jogaram muitas fichas nessa virada, no retorno triunfal. Como as urnas não lhes foram favoráveis, passaram a apostar fortemente na serpente da instabilidade institucional e do golpe. Pitbulls da mídia, passeata na Paulista, pedidos sórdidos de auditoria em urnas, o silêncio conivente do principal partido de oposição do país, que não tem a dignidade de vir a público para rechaçar com veemência essas aventuras autoritárias (ao contrário, só faz reforçá-las e legitimá-las, para desespero de democratas como Franco Montoro e Mario Covas), vociferações e mimimis em redes sociais...
Para esses iluminados que fazem juras de amor ao Brasil e se enrolam na bandeira verde e amarela (mas que querem mesmo é escapar para Miami, porque lá é tudo mais bacana e moderno) e que berram feito loucos contra uma tal de 'ditadura bolivariana de Cuba' (ao mesmo tempo em que pedem outra ditadura, via golpe militar), vale qualquer negócio ou ação para tirar o PT do poder. Qualquer negócio, insisto. Por consequência, estariam empurrando essa ralé que teve a ousadia de botar as manguinhas de fora de volta para a senzala.
A 'democracia' brasileira voltaria, então, a cheirar bem. Fragrância de patchouli. Com muito orgulho e com muito amor.

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