domingo, 28 de setembro de 2014

GERALDO, DEVOLVA MEU BANHO

Você nem bem começou a entoar, afinadíssimo, aqueles mágicos primeiros versos do clássico do Wando, ‘você é luz, é raio, estrela e luar, manhã de sol...’, e lá vêm aquelas pancadas nada delicadas e que te fazem pular de susto, ‘pow, pow, pow’ na porta do banheiro. O grito de alerta que chega lá de fora lembra a tragédia anunciada. ‘Ei, vai logo, não demora, sem enrolação. Vai acabar a água do Cantareira’. Fato consumado: Geraldo Alckmin alcançou a proeza de colocar ponto final num dos mais humanos prazeres que já fomos capazes de inventar. Nada mais de um bom, reconfortante e demorado banho. Nem pensar em cantar no chuveiro. A ordem agora é ser breve. Brevíssimo. Bravíssimo, Geraldo. Entra, molha, ensaboa, enxagua e sai. Para ajudar a preservar o tantinho que ainda resta de um reservatório moribundo, agonizante, em seus últimos suspiros. Estamos chegando ao volume de cadáver em composição. Porque o morto já foi novamente assassinado. Duplo homicídio. Gerenciamento exemplar, planejamento de dar inveja. Privatiza a empresa que cuida da água, vende ações nos Estados Unidos. Prática de primeiro mundo. Arrebenta. Esgota. Esgoto. Tudo o que for possível. Sem dó. É ano de eleição. Não pára, não pára, não pára. Racionamento? Não, que bobagem. Só contingenciamento, para não acabar com a reserva técnica. Os tucanos adoram eufemismos. Especialistas alertam para resíduos, elementos químicos, tratamento não adequado. Estado de atenção. Doenças. O governador garante que não há perigo. Faz pose para fotos em tempo de campanha. Jura que bebe água da torneira. Selo de qualidade alquimista. Estamos trabalhando. Qualquer dia desses, aliás, no meio de um debate ou da propaganda eleitoral, cuidado, Geraldinho Boa Pessoa vai ter uma distensão buco-maxílica. Sério. Fico preocupado. Porque ele movimenta todos os músculos da face - e mais alguns outros - para dizer sempre que 'esss-ta-mos trrra-ba-llhhan-do peee-lass peeess-ssso-ass'. Impressionante. Fico aqui na frente do espelho ainda embaçado, depois de mais um banho relâmpago, tentando imitar, reproduzir. Não consigo. Deu câimbra. Socorro, acudam, preciso de massagem facial! E de um bom banho. Daqueles de deixar a água cair sem dó enquanto se pensa na vida, sem compromisso, quentinho, fumaça tomando conta do banheiro, sem vontade alguma de sair do box. Frio danado do lado de fora. Seis da matina. Numa cidade bipolar climática como São Paulo, dez de temperatura pela manhã e trinta no final da tarde, tenho saudade também de uma ducha gelada antes de dormir, daquelas de refrescar todos os ossos e músculos do corpo. Sem chances. Agora é só tcheco, tcheco, imita o gato, bacia e canequinha. Rapidinho. Mais grave, dom Geraldo de Pinda conseguiu por tabela estragar um de meus mais produtivos momentos intelectuais. É duro. A falta de água atinge diretamente instantes mágicos de minha criatividade. Sério, já perdi a conta de quantos lides (abres de matérias, no jargão jornalístico) escrevi enquanto tomava banho. Lembro de uma reportagem sobre estudos a respeito de atraso na percepção de objetos que não havia jeito de desencalacrar. Conceitos de Física, modelos matemáticos, circuitos neuronais, córtex cerebral. Um inferno. Anda de lá, anda de cá, revisa anotações, rabisca. Nada. Deixei quieto. Fui tomar banho. Relaxa. Desliga. Eureka! Os parágrafos começaram a aparecer, um a um, bonitos, encorpados, coerentes. No compasso da água que batia no chão. Com o chuveiro funcionando a todo vapor, sem olhar para o relógio, encontro maneiras mais didáticas de explicar um problema de Matemática para a filha, faço as contas dos pontos que faltam para escapar do rebaixamento (que fase, Santos), monto questões de provas de várias disciplinas, organizo o orçamento do mês. Dá até para pensar com cuidado no que responder para aquele sujeito mala que você sabe que, bem cheirosinho, vai ter que encontrar logo em seguida numa festa e que faz sempre questão de dizer em alto e bom som que bolsa-família é coisa de vagabundo e que casamento entre homossexuais é inadmissível, negócio de gente doente. Claro, ele elogia o Geraldo, que considera excelente administrador. Não fosse o governador, jura, a água já teria acabado. Competência acima de qualquer suspeita. Vão vendo. Se estamos assim em setembro, imaginem na Copa, quer dizer, perdão, imaginem no verão. Dezembro de fritar ovo no asfalto. Aquele calor insuportável, reuniões e relatórios em salas fechadas e sem ar condicionado durante todo o dia, corpo grudento e melado. No final do expediente, a vontade inenarrável de ligar o chuveiro e esquecer que existe amanhã. Opa, alto lá, pode parar por aí, só pode banho bem rápido. Manda ver no estilo francês. Perfuminho no cangote. Bota a sovaqueira para arejar. Desodorante 48 horas. E taca-lhe pau. Porque o nível do Cantareira é o mais baixo da história. Quanto mais cai, mais sobem as intenções de voto no governador do volume morto. Reeleição à vista. Em primeiro turno. Ele nada de braçada em águas calmas e cristalinas. A gente fica com a crise de água no colo. Mais quatro anos alquimistas. Cantareira seco, tropa de choque e balas de borracha, estupendos setenta quilômetros de metrô, escândalo do trensalão, professores mal pagos, saúde sucateada, movimentos sociais criminalizados, especulação imobiliária, reintegrações de posse violentas. Sem direito sequer a um banho que se preze, banho de verdade. Mais quatro anos de Tucanistão. Putz, preciso tirar o moleque do chuveiro. Quase cinco minutos. Pow, pow, pow. ‘Chega de cantoria, filho. Sai já daí. Olha o nível do Cantareira. Vai acabar.'

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